domingo, 14 de setembro de 2025

Um Dia Atrás do Outro

 

        Passou uma semana desde o último post. A mania de contar o tempo pertence-nos. Ignoro se inscrita no ADN ou fruto de aprendizagem. Verdadeiramente, parece-me que o tempo não é de passar e somos nós quem dentro dele começa e acaba. Nós o inventámos para contar a brevidade da vida, alinharmos afazeres, conversarmos assentes sobre os tempos de haver tempo: passado, presente e futuro; esta estratificação do que em si mesmo não é senão um continuum, organiza-nos o discurso, orienta-nos o pensamento simples e a reflexão mais elaborada, situa-nos.

        Sei. É tempo de escrever. Mas nestes dias de tudo, de uma guerra iminente, da inércia culpada ou das hesitações que apontam a pérfida fraqueza e o desejo de colo, nestes tempos em que o continente mais antigo se porta como uma criança, mas não é senão um velho senil agarrado a sonhos impossíveis, confesso: perco a vontade.

        Fico-me a olhar a gata que é seta disparada na minha frente e lembro o mercado biológico na Herdade de Freixo do Meio, o pão de bolota que nem aprecio, mas tem muita freguesia e é feito por alguém com forte acento estrangeiro; a senhora – possivelmente inglesa - que vende colares e gargantilhas tão bonitos e baratos, garantindo que não faz dois iguais; os vendedores de mel e de batata doce que lhes apregoam a doçura; o holandês que vende queijos da sua produção artesanal; as meninas com olhar de poço profundo junto às essências, vestindo árabe discreto, altas, um moreno estonteante. E singram lindas, num admirável roçagar de sedas, pulseiras em braços de serpente misteriosa. Também o público que compra detém elementos insólitos: aquele senhor de farto rabo de cavalo que chega descalço, a dama que usa um colar que lhe chega aos joelhos, os garotos de pés nus e perna ao léu que se refrescam livremente no tanque que foi bebedouro de bestas. E mais.

        Almoçamos: mesas e bancos corridos, dois pratos em escolha prévia e sempre de produtos da herdade. Gosto destes almoços em que parecemos conhecer-nos uns aos outros por refeiçoarmos juntos. O certo é que, mesmo sentados lado a lado, não estamos senão com aqueles que trouxemos. A dar o tom ao almoço, o grupo de cante da minha terra - um dos elementos junta-se comigo na peixaria e quando fiz referência ao mercado adiantou, “estamos sempre lá; a gente gosta daquilo”. Ali pontuam alunos que tive há mais de vinte anos e onde já os filhos fazem uma perninha. Há até uma raridade que poucos conhecem: um francês reformado que veio há poucos anos viver por cá e canta alentejano como os melhores; diz ele que foi a forma de aprender a língua. Espero eu que o seu português seja diverso do de minha cunhada, inglesa de gema, que chama o filho mais velho de Joséi.

        Aos solavancos na estrada de terra, a última surpresa: o bambi dos desenhos animados despedia-se olhando-nos fixo e sem surpresa, estátua plantada nas suaves curvas da savana empoeirada do Alentejo. Uma meiguice líquida no olhar, como que a prometer, até à próxima.

        Não sei do futuro, tento pensar que só o presente existe em verdade e circunstância. Sei que particularidades desta natureza me agradam e sustentam num mundo de homens cada vez mais alienados do seu ser.

domingo, 7 de setembro de 2025

Manhã de Domingo

 

        Não sei que agradável dor nos invade às primeiras chuvas do verão que, tranquilo, se despede. Este é o tempo em que deslizam rosto abaixo doces lágrimas de nuvem, alegria líquida e mansa que nada iguala. E se a cinza do céu é desejada, a melancolia, essa, infiltra-se sem apelo por toda a fresta humana. Como se o ar a produza ou apenas cumpra o destino, satisfaz os deuses descendo sobre a tristonha penumbra que aterrou na manhã. Os domingos são dias desabitados, salas vazias e sem voz que lhes quebre o jejum. São os dias do Senhor, razão suficiente para que nunca nos pertençam, somos visita sempre tolhida e estranha. Estamos neles sem à vontade, abúlicos, canhestros. uns monos. Dos domingos aproveita-se o descanso e pouco mais.

        Lá fora, a poeira assentou e nos campos os animais retoiçam com vigor redobrado, o cheiro a terra molhada a entrar-lhes pelas ventas. O gado gosta de chuva, não se constipa, não resfria.

        A cidade é flor suspensa em hipnose de vácuo, quieta, isenta de som. Quem sabe a rotação e translação da Terra, arrastando fadiga de séculos, também descansem nos domingos. Não há o tracejado de uma conversa de passagem, ruídos de quem bole pelos quintais, um motor que acorde a estrada. Que mistério guia as manhãs de domingo e as faz tão silenciosas. 

        E o que acontece dentro das casas, por detrás dos olhos fechados das janelas?! Muitos aproveitam e dormem, descansam; abençoado seja o seu sono. Há os que fazem o amor de domingo, com tempo e bom humor; e benditos sejam por conservarem e animarem a chama. Mas há os que não têm domingo, trabalham por turnos e folgam quando calha, fingem domingos às quartas ou sextas feiras, a vida gira-lhes ao contrário da outra gente; oxalá se habituem ou apenas encontrem novo emprego, sem diacronias com o resto do mundo. Alguns estarão a ler, outros no telemóvel ou nas redes sociais a cuscar. Muitas mães estão a pé ou já estiveram – puseram a máquina da roupa a lavar, alimentaram os animais, fizeram uma sobremesa, engomaram as peças que os filhos desejam vestir. Há os que velam, são os anjos da guarda dos humanos. Não são bombeiros de piquete, nem médicos de Banco, nem trabalham por turnos. São os que dormem pouco e contam as horas até ser manhã; pensam-se talvez inúteis, mas a inutilidade de uns é a utilidade de outros. Eles formam a teia protectora que abriga e mantém os adormecidos deste mundo. O seu desejo de adormecer condensa no sono dos outros.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Busca de Sentido

 

        Gasta-se a vida em busca de sentido. Do sentido que temos dentro dela. Não do sentido da vida em geral, mescla de seres animados e inanimados que povoa este mundo que para muitos é de Deus e para tantos será outra coisa. Sentido que nos pertença como homens, o sentido de cada um no mundo pequeno que lhe coube, ou conquistou, ou. E que foge. Se transmuta. Perde-se e readquire-se. Em cada mutação há um florescer por entre pedras, progressiva força ou debilidade, mas sempre afirmação vital. Quanta gente cresce e envelhece sem que a questão lhe aflore a mente. Há uma ignorância feliz, robusta, que se nega o mais que pode ao sofrimento alheio. E vêm as desculpas, não posso ver; sou muito sensível; faz-me mal. Acontece muito com a experiência da morte ou a sua proximidade. Mas quem vê, quem “sabe” do sofrimento alheio; quem, por bem querer, assiste filhos, pais, cônjuges, amigos, gente que se não despega do afecto. Esses, que sentido encontram, que processo os levará a refazer o círculo sempre incompleto do sentido?! Não sei, mas é certo que hão-de levantar-se; depois da tempestade, a bonança.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Tempus Fugit

 

        Se colocamos em perspectiva os males de ontem, parece-nos quase sempre que os de hoje, que doem e fazem mossa no presente, são mais fortes, piores, crescem-lhes garras e cadeias de tormento. Ora, ainda que diverso disto, um dos grandes males de sempre é a luta insana e contra relógio que comanda a vida dos homens. Acontece demasiadas vezes a toda a gente. 

        Andava eu a apreciar as novas entradas no CAM, a experimentar entrar e sair; a sair para observar em pormenor o tecto da célebre pála, dando um soslaio para as várias cadeiras de plástico branco espalhadas na clareira em frente e onde algumas pessoas descansavam concentradas em si e parecendo satisfeitas com isso; e ia eu entrando de novo e descendo as escadas de mármore tão bonito agora tapadas com um metal que deve estar na moda, já que a entrada da Casa da Música também assim é, eu ressoando escada abaixo e aqueles bancos de pedra corrida a virem-me à memória - ainda estão no mesmo lugar -, eu sentada perto de adultos com crianças que comiam bolachas ou só vinham perguntar alguma coisa e retornavam à relva e à brincadeira; onde pares de namorados paravam para atacar os sapatos, ou apenas decidir se iam à biblioteca ou se estendiam na relva. Pensava nisso e nas cadeiras plásticas. A sério: apetece-vos ir para a Gulbenkian sentar numa cadeira plástica que podem mover no sol ou na sombra do terreiro?! Talvez apeteça ter uma peça móvel para sentar em modo unipessoal, já que várias estavam ocupadas. Retomando o assunto, é claro que no final da escadaria não estava o wc de sempre, mas outra coisa qualquer. E subi, pom, pom, pom. Fui comprar a entrada no museu e salta-me o jovem, a senhora quer mesmo entrar? É que daqui a um quarto de hora o museu fecha. E eu para dentro, mas quem me manda a mim andar a passaricar sem ver as horas?! Do lado de fora, sorri-lhe à simpatia e prometi voltar noutro dia. Ainda não era o dia de convívio com Paula Rego. Ora bolas!

        Semanas passadas, lá me pespeguei. Lembrada de que não encontrara o wc, resolvi investigar-lhe o paradeiro. Não sei se consigo encontrá-lo de novo, tanto corredor branco baralhou-me, senti-me, ao vivo, num filme de ficção científica - julgo que tudo em mármore, mas preciso confirmar, atordoei um bocado. Com ajuda, atingi o objectivo. Satisfeita a primeira condição, marchei contente ao museu. Ia disposta a sentar-me em contemplação, Paula Rego é alguém que admiro e gosto-lhe dos temas. Mas qual contemplação?! Os quadros estavam lá na sua inteira realidade, na feiúra bela em que Paula os concebeu. Algumas figuras parecem querer sair da pintura, apostrofar-nos; aquelas mulheres-homens cheias de músculo, o sofrimento de tantas, a ingenuidade daquela, a amargura nos vincos de rostos endurecidos. E o simbolismo de tudo: Portugal a derramar-se sem espartilho. Enfim, eu queria mesmo era ver em pormenor e com tempo – fui cedo e tudo. Mas não havia onde sentar-me e a minha acção contemplativa não transige: só funciona na posição de sentada. É forçoso. Portanto, vi-os sim senhor, mas não contemplei. Gostei da sensibilidade que soube juntar Paula Rego com Adriana Varejão, gerações diferentes e parecidas. Admirei os rasgões de Adriana lembrando carne lacerada e outros golpes. Até achei bonita a disposição das pinturas em pequenas salas de faz de conta. Mas quem é que, num museu reconstruído, se lembra de expor pinturas e lhe retira o sentar?! Será também uma nova técnica?! É que o único banco que vi, curiosamente, estava nas costas das paredes onde as obras estão instaladas, espaço que, a bem falar, já não é exposição. O que pensaria disto Rui Mário Gonçalves, crítico de arte e professor universitário, que, como primeiro trabalho, pedia aos alunos que olhassem um quadro do MAC durante meia hora para depois escreverem as suas impressões.

        Será que a concepção da exposição, ao preferir as divisões de casa falsa, retira a distância necessária à contemplação? Pode ser preconceito, conservadorismo elevado à última potência, mas ausência de todos os assentos?! Todos, todos?!

domingo, 24 de agosto de 2025

Tempus Fugit

 

        Durante anos visitei com regularidade o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Penso que o descobri por mim, nem sei como; imagino que através de referências sobre as pinturas de Amadeo, por exemplo. Levei lá carradas de alunos. Gostava-lhe da situação e tinha preferência pelo serviço de restaurante. Envelheci com aquela gente: no princípio dominava em nós o tom natural de cabelo, sobrancelha, bigode (havia um senhor muito simpático e de bigode) e terminámos grisalhos ou atintados. Coisas. Não que os visse muito, mas havia naquela sala alguma coisa de familiar que me atraía. Seria a simpatia na recepção, a qualidade do atendimento que não se eximia de sugerir se nos descortinava indecisão, o conforto de mesas e cadeiras, a cultura de falar baixo, a diversidade de pratos quentes e frios, os sumos naturais e a variedade de sobremesas, a eficiência delicada na retirada de tabuleiros. E, lógico, a qualidade de tudo. Ali estive com amigos(as) e tanta vez só, para lanche ou almoço. Próximo do meu local de consultas e de um cinema, havendo tempo, passava para olhar o verde no meio da cidade, sentir o trânsito lá fora, sentar-me num banco a contemplar a vida em câmara lenta, o cheiro a relva molhada oferecendo certezas simples. Todos os sentidos à superfície. Só depois rumava ao destino, alma leve.

        Amei com vigor o museu, vulgo CAM. Quando a entrada era gratuita para professores entrava sempre e geralmente ficava-me pela primeira sala. Sentava-me a olhar os quadros de Amadeo e o fabuloso retrato de Pessoa axadrezado em vermelhos, branco e negro, divina pintura de Almada Negreiros. Fazia-me bem ao espírito contemplá-los. Punha um pé na Gulbenkian e o meu eu diário suspendia.

        Entretanto, aconteceram as obras no CAM e o covid, amplas restrições aos passeios pela Gulbenkian. Não que os deixasse de todo. Mas o ponto que mais me interessava manteve-se demasiados anos encerrado ao público. Vi exposições no museu do edifício principal, assisti a concertos e conferências, sentei-me no mesmo banco a observar o vagar com que a vida por ali se derrama. E os muros altos continuavam a cercar o CAM. Até que foi notícia de telejornal: o CAM reabrira. Não fui a correr. Sou a cada dia mais conservadora e saudosista, parou-me o receio de não gostar da célebre pála e nem do resto. E depois fui adiando, adiando, quase até ao esquecimento. Adiei tanto que deixei mesmo de passar nos jardins de que tanto gosto, tenho devoção contemplativa por Gonçalo Ribeiro Teles um dos criadores daquela maravilha. E nem é preciso citar que o senhor Gulbenkian tem lugar cativo no meu coração.

        Bom. Há cerca de dois a três meses enchi-me de coragem e fui ao Centro de Arte Moderna. E sucedeu o que pensara: não achei que a célebre pála merecesse o dinheiro que ali se gastou. Mas pronto, está lá, tem um ar moderno, deve ser obra de arquitecto iluminado. Espreitei o restaurante. Oh! Perdeu todo o ar familiar. Ganhou individualismo minimalista e perdeu em qualidade. Talvez tenham um chef ou algo parecido, mas espreitei as iguarias e não só não apareceram, como faltava sedução aos arranjos(taças de inox?) em que se encontravam alguns alimentos. Bom, junto à janela panorâmica ainda há resquícios de antigamente (para os saudosistas), mas tudo ocupado. Da empresa e da simpatia eficiente dos funcionários de antes não há sinais. O mundo está sempre a mudar. Aceito. Só receio que esta actualidade severa e cool não deixe memórias. Mas a minha amiga dilecta está encantada com a mudança e mais sua beleza; portanto, será inadaptação da minha pessoa, cuja perdeu um lugar de almoços e lanches. Paciência.

        O mais que me aconteceu conversamos noutro dia.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

À Beira da Cal

 

        Estudei que a memória nos carimba a identidade, possibilita o conhecimento qualquer que ele seja, permite recordar voluntária ou involuntariamente episódios, pessoas, o que ouvimos ou vimos, reconhecer cheiros, paladares, enfim, satisfaz um inumerável de necessidades humanas. E eu que retomo lentamente - muuuuiiito lenta e com vastas falhas – o hábito antigo de caminhar um pouco no fresco da manhã, sigo ainda em peregrinação. Sei o lugar de onde avistava o velhote e os dois sítios onde nos encostávamos ou sentávamos falando de nada. Passo onde o vi pela última vez, admirada do incomum onde se sentara extenuado. Atravessei a estrada e sentei-me a seu lado. E ele, é o coração, vim mais cedo, pela fresca, e deixei a cadela em casa; mas isto cansa-me, tive de parar aqui. E eu que já não o via desde o acidente e soubera que uma filha o levara consigo para outra cidade, eu que nem julgava voltar a vê-lo por ali, não perguntei se estava melhor, disse parvamente que já tinha saudade dos nossos encontros. E ele virou-me olhos de impotência onde li também saudade. Perguntei se queria ajuda para chegar a casa e abanou a cabeça, isto vai. Ficámos um bocadinho a olhar o silêncio da manhã com ovelhas ao fundo. Quando lhe notei intenções de partir, pus-lhe a mão no ombro e saiu-me uma mentira sem graça, tem de descansar o resto do dia e amanhã cá estamos. Ele, olhinhos mirrados no fundo de um poço de rugas, pele baça e amarelada, levantou-se trôpego e descrente de todo, e silabou, pois, amanhã. E eu colaborando, até amanhã. Atravessei a estrada e virei-me a olhá-lo na subida, passinho de bebé. Para nós dois não havia outro dia. Isso sabíamos.

        Entretanto, faço caminho. Passo pelo gato preto adormecido ao sol ligeiro, o cão que me refila possivelmente do outro lado da casa. Na beira de estrada ressalta a brancura cuidada dos muros caiados no estio, e na zona de vivendas há mudanças, os novos proprietários têm outra concepção de casa. Numa delas há um letreiro “vendem-se ovos”. É uma vivenda em tons laranja, barras brancas e várias paredes de vidro. Apesar do muro, vislumbro o conforto e até bom gosto de uma das salas. Um dia destes vou saber a razão de a senhora vender ovos. Talvez comprar alguns.

        À esquina do caminho de terra batida, um campo de ovelhas. São muitas e de idade diversa: carneiros velhos e gordos que se deslocam como reis, a passo, e ovelhas de igual porte; mas a maior parte do rebanho é constituído por animais jovens correndo lestos, aqui e ali; e há a ternura saltitante dos cordeiros novos, contentes da vida. Digo-lhes olá da estrada e eles, cada um em seu passo, aproximam-se a balir, e chegam à rede de arame que nos separa. Ficam ali balindo e faz de conta que somos velhos amigos que se reencontram depois de longa ausência. A quem os oiça e não conheça a espécie, não parecerá que acabámos de travar conhecimento. Dou-lhes as costas e eles com o focinho meio fora da rede, em cacho cerrado, mééé, mééé, mééé. E logo me vem à memória meu pai. Mal ouvia o nome de x, cuja incompetência detestava, saía-lhe escarninho, é uma ovelha, uma ovelha é o que ele é. E se nós, ó pai deixe lá isso, ele mastigava convicto e vingativo, uma ovelha, mais burro que uma ovelha.

        Dado o que me foi presente, meu pai tem razão acerca da inteligência dos ovinos. Mas que querem! Soube-me bem a corrida à rede apenas por cumprimentar. O que quer que lhes diga, acorrerão. E depois?!

domingo, 17 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        O predomínio do trabalho feminino no tecido social não é novidade. Na vida como no livro, o bem estar caseiro sempre dependeu das mulheres. Na casa dos outros como na sua, se havia buraco a que chamar seu. Nem sempre sucedia, as criadas eram como as coisas, permaneciam no local de trabalho. Dos objectos, que apenas cumpriam a sua função, digo que, caso pensassem, seriam os mais felizes. Que elas estavam para todo o serviço e disponíveis a qualquer hora. Como é que esta gente que sustinha uma casa com o corpo, e trabalhava da alvorada até noite alta, não era bem paga?! Mas não era. Tudo que conquistaram foi à dentada (força de expressão; por muito que lhes apetecesse, não mordiam ninguém) e por força braçal. Que eu saiba, os excessivos de limpeza e zelo não as enriqueceram, antes perpetuaram a pobreza.

        O teu livro, Eliane, escorre suor de fêmea sem tempo para sexo ou amores, exala cansaço de mulher e um imenso nojo do cheiro dos brancos. Também cheira ao bafo masculino a aguardente, vulgo cachaça. A cachaça iguala os homens e só o trabalho os distingue. Há os que trabalham e bebem depois; e os que só bebem. Todos fazem mau viver caseiro. Tia Olma convicta, “os maridos sempre são um peso na vida da gente, os homens são sempre um peso na vida da gente”. Se a vida era/é aquilo, está coberta de razão.

        E depois fazes enumerações sem vírgulas, Também elides alguns pontos, e encomendaste a Deus palavras que o dicionário não tem e expressões como “pés enferidados”. Para além da junção de palavras que tanto utilizas para referires membros da família louceira. Por exemplo, minhatia; o expaimeu. Num repente, escreves em espanhol  - vivias/vives(?) na fronteira Brasil Uruguai. E li que usas também o iorubá (serão as expressões e vocábulos que sublinhei e para que não encontro resposta). Desta mistura que adoças com o sotaque brasileiro, sai escrita bem original e interessante. Outra nota de diferença é o nome das cidades onde viveste ou viveram os teus cacos ora partidos – são a cidade com nome de santa; a cidade com nome de ana; e por aí. Nem uma cidade surge com o seu nome natural.

        Há mesmo uma referência a Pessoa (ou julgo eu que o seja) entre as páginas 197/198. Não me parece lisonjeira, mas é bem capaz de ter alguma verdade quanto ao que está encerrado na sua arca que nunca mais esgota. Acho eu que é arca sem fundo. És crítica, muito crítica mesmo; e não só acerca dos negros. Fazes referência a livros e não li sequer um deles; dizes estar enfartada das palavras dos brancos e mudaste a agulha para as dos negros. Mas a literatura é uma só e não tem cor, tem sim particularidades do autor e do que conhece, além do modo pessoal de interpretar a vida que escreve singularmente. Ou talvez eu esteja por demais habituada à leitura de escritores brancos. Mas tu és de cor. Negra. E gostei muito de te ler. Faz de conta que me bateste à porta com este livro e eu digo cá dos fundos, Avante!


Dois excertos a lembrar o teu jeito:


Nenhuma geração negra foi ou é completamente livre. A lei que libertava o ventre do corpo determinava que as crianças permanecessem em poder dos senhores de suas mães até os oito anos de idade. Depois poderiam entregá-las ao governo com direito a indenização ou utilizar seus serviços até os 21 anos. Também nunca aconteceu. Temos senhores ainda hoje. Dentro de nossas próprias casas”


aos dez anos tia Firmina foi internada pela minhavó numa instituição para crianças tortas na cidade do chapéu. (…) Tratava-se de um orfanato. Sinto vergonha de dizer que minha avó que me levava leite e bolachinhas na cama pela manhã, mandou minha tia para um orfanato onde as freiras exigiam que ela fosse uma menina quieta cristã tímida resignada silenciosa ordeira limpa disciplinada ingénua submissa, que fosse um não alguém ou alguém que desejasse viver o mínimo e morrer o máximo. Os desejos que o expaimeu desejava a mim, as freiras dirigiam à tia Firmina.”