Passou uma semana desde o último post. A mania de contar o tempo pertence-nos. Ignoro se inscrita no ADN ou fruto de aprendizagem. Verdadeiramente, parece-me que o tempo não é de passar e somos nós quem dentro dele começa e acaba. Nós o inventámos para contar a brevidade da vida, alinharmos afazeres, conversarmos assentes sobre os tempos de haver tempo: passado, presente e futuro; esta estratificação do que em si mesmo não é senão um continuum, organiza-nos o discurso, orienta-nos o pensamento simples e a reflexão mais elaborada, situa-nos.
Sei. É tempo de escrever. Mas nestes dias de tudo, de uma guerra iminente, da inércia culpada ou das hesitações que apontam a pérfida fraqueza e o desejo de colo, nestes tempos em que o continente mais antigo se porta como uma criança, mas não é senão um velho senil agarrado a sonhos impossíveis, confesso: perco a vontade.
Fico-me a olhar a gata que é seta disparada na minha frente e lembro o mercado biológico na Herdade de Freixo do Meio, o pão de bolota que nem aprecio, mas tem muita freguesia e é feito por alguém com forte acento estrangeiro; a senhora – possivelmente inglesa - que vende colares e gargantilhas tão bonitos e baratos, garantindo que não faz dois iguais; os vendedores de mel e de batata doce que lhes apregoam a doçura; o holandês que vende queijos da sua produção artesanal; as meninas com olhar de poço profundo junto às essências, vestindo árabe discreto, altas, um moreno estonteante. E singram lindas, num admirável roçagar de sedas, pulseiras em braços de serpente misteriosa. Também o público que compra detém elementos insólitos: aquele senhor de farto rabo de cavalo que chega descalço, a dama que usa um colar que lhe chega aos joelhos, os garotos de pés nus e perna ao léu que se refrescam livremente no tanque que foi bebedouro de bestas. E mais.
Almoçamos: mesas e bancos corridos, dois pratos em escolha prévia e sempre de produtos da herdade. Gosto destes almoços em que parecemos conhecer-nos uns aos outros por refeiçoarmos juntos. O certo é que, mesmo sentados lado a lado, não estamos senão com aqueles que trouxemos. A dar o tom ao almoço, o grupo de cante da minha terra - um dos elementos junta-se comigo na peixaria e quando fiz referência ao mercado adiantou, “estamos sempre lá; a gente gosta daquilo”. Ali pontuam alunos que tive há mais de vinte anos e onde já os filhos fazem uma perninha. Há até uma raridade que poucos conhecem: um francês reformado que veio há poucos anos viver por cá e canta alentejano como os melhores; diz ele que foi a forma de aprender a língua. Espero eu que o seu português seja diverso do de minha cunhada, inglesa de gema, que chama o filho mais velho de Joséi.
Aos solavancos na estrada de terra, a última surpresa: o bambi dos desenhos animados despedia-se olhando-nos fixo e sem surpresa, estátua plantada nas suaves curvas da savana empoeirada do Alentejo. Uma meiguice líquida no olhar, como que a prometer, até à próxima.
Não sei do futuro, tento pensar que só o presente existe em verdade e circunstância. Sei que particularidades desta natureza me agradam e sustentam num mundo de homens cada vez mais alienados do seu ser.