A
pena que eu tenho de ser portadora de um ímpeto rasgador que se refastela
naquele som de papel que não pode mais e se cinde a contragosto, desfazendo a
unidade de si mesmo num términus violento e ruidoso. Era esse ruído de
laceração que me impelia a destruir os escritos dos verdes anos e seguintes; “não presta”. E truz, tudo em fanicos antes
que algum cusco casual desse de caras com os meus estados de alma. A bem dizer,
só a velhice me fez poupar alguns escritos e creio que o mérito cabe quase
inteiro ao mundo digital onde não nasci – e juro, achei-o mais estranho que o
sabor da coca-cola - mas que entranhei
num ai.
Porque
comecei cedo a escrevinhar. Desde os bilhetinhos para garotos da escola
primária que nunca se dignaram sequer olhar-me e portanto dobrava, dobrava e saíam do bibe em fanicos, à correspondência
das minhas avós onde espraiava romantismos de cordel em gente que apenas
imaginava e era decerto bem diversa do meu ideário, passando pelas redacções
onde tentava à viva força enquadrar palavras e expressões do sôfrego mundo dos
livros. Cedo compreendi que conversar era uma coisa e fazer uma redacção,
outra. As redacções eram um mundo específico e agradável e fugiam ao linguajar
conhecido. Assim uma espécie de almoço de Páscoa ou ceia de Natal encriptada.
Essa ideia divertia-me sobejamente, era como se eu falasse esperanto com a
professora. Quanto mais desconhecidos os termos, mais os olhos dela me sorriam.
De modos que eu esmerava-me. Todos gostamos de agradar.
Mas
o meu ponto alto foi a adolescência. Nessa época de infinda tristeza, comecei a
escrita em cadernos. Sem ordem ou propósito, além da vontade de fugir de casa
para não voltar. E só não fugi por palpitar que teria medo de atravessar o
pinhal que via ao longe - a minha mente tem a particularidade de não aceitar o
alcatrão e foge pinhais fora, fuga que
se preze não quer estradas –, vexada de ser encontrada pelos guardas
republicanos. Imaginava-me perdida no meio do pinhal, trazida a casa no jipe da
guarda e a encaixar uma valente sova a seguir. Convenhamos, arrasa qualquer coragem
adolescente. E é claro que, vezes sem conta, me apetecia morrer. Havia semanas
de infortúnio: nos dias mais negros, viajava no banco da frente da carreira,
podia haver a sorte de um acidente. Não calhou. Não morri. Mas fui escrevendo e
deitando fora a enxurrada lacrimejante. As lágrimas caíam em cima das linhas,
faziam poça, o fio azul escorregava um bocadinho para baixo e nascia-lhe uma
barriga à medida que o papel enfolava no redondo da lágrima empapada. E depois
não podia escrever naquele lugar porque borrava. Por vezes, insistia e rasgava-o.
Quando acontecia, cobria o caderno e a folha furada com irritações cheias de
unhas a riscar no vidro, assoava-me, lavava a cara e ia olhar o longe do pinhal
a discorrer, se fugisse de manhã e fosse sempre em frente e a correr, certamente
saía do pinhal antes de ser noite. Mas de manhã ia para a escola e não me
lembrava de ser tétrica. Selectiva, a tristeza visitava-me às tardes e fins de
semana. Ou durante férias. Estou em crer que não mudei nada, as manhãs exploram
o meu melhor. Mas pronto, talvez seja conveniente dizer que sim. Acrescentar
que cresci, amadureci, pus travão ligeiro à imediatez.
Entretanto,
lancei-me a escrever a todos os amigos e não amigos. Por conhecê-los. Ou porque os queria conhecer. Através do
serviço dos correios, mantinha contacto com meio mundo. Os carteiros
desconhecem, mas contribuí de forma activa para a sua continuidade. Claro que
não fazia rascunhos. Se os fizera, não havia necessidade de fechar missivas com
fita cola e de algumas chegarem multadas por excesso de peso. O meu mínimo assentava
em três folhas de bloco de carta. Que a norma eram nove. Nove folhas escritas em frente e verso, com recados na margem superior. Não me lembro de seguirem
assinadas. A minha vida era escola-casa, casa-escola, o que contaria em dezoito
páginas?! Mas o prazer que eu sentia se uma destas missivas me chegasse às mãos...