quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Pequenas Coisas Como Estas

 

        Finalmente vi “Pequenas coisas como estas”. Um dos poucos filmes de que antes li o livro, no caso, escrito por Claire Keegan. Gostei do livro. Comprei-o cerca de um mês antes do Natal de 2023 e ofereci-o a uma amiga. É um livro pequeno, julgo que não terá cem páginas, e a escrita recupera certo ambiente dos contos antigos em que as personagens são gente humilde, simples e de boa índole, com vidas a condizer. Filme e livro centram-se numa família de muitas filhas, sustentada pelo trabalho do pai – carvoeiro – que, a pulso, criou a sua pequena firma, empregando até alguns rapazes. Em casa, o pai é cooptado pela mãe, senhora de importância menor na história. Tudo acontece na escura e chuvosa Irlanda dos anos oitenta (mas poderia ser no Portugal de Salazar), em época natalícia. O carvoeiro tem casa acanhada e a mesa das refeições é mesa de tudo: ali se come e se estuda; se cose e se brinca; se pratica o acordeão e se reza. Mas há amor entre eles, um amor forte, simples, são. Fazem em conjunto os bolos de natal, uma das filhas ajuda o pai com os pedidos de carvão e respectivas anotações e perpassa na história a sintonia familiar com que sonhamos. As crianças são felizes. Apesar de nele haver tristeza, não é um livro/filme triste. De acordo com o ambiente dos contos, evidencia a crueldade – as pessoas más que atazanavam o imaginário da infância num misto de repulsa e atracção. Tanto nas palavras como nas imagens há uma contenção admirável, líquido revelador do evoluir da crueldade na trama. Subentendida e nunca vista ou lida textualmente, presentifica-se em pequenos-grandes sinais. E a consciência de um homem que entende, por saber de experiência feito, a dimensão feroz do poder, a impiedade e a importância do “Yes, minister” que ali é “Yes, mother” (sim, madre). Também ele as sofreu na infância que revemos em curtos e repetidos flash backs

        Sente-se no livro – e também um pouco no filme - qualquer coisa do maravilhoso das histórias que nos contam na infância: o privilégio de existir alguém que, a despeito do que possa vir a suceder, obedece à sua consciência e faz o bem. E é ironia propositada (e bastante natalícia) que o bem e o sentido moral morem numa casa humilde e venham de um carvoeiro; enquanto que o mal, a crueldade, a frieza, habite as freiras dominadoras, refasteladas em aposentos de riqueza e conforto enquanto as mães futuras e passadas trabalham e esfregam. As religiosas eram soberanas temidas e respeitadas no ensino escolar, na igreja e na reeducação de mães solteiras que ali entravam grávidas e a quem, como hoje se sabe, retiravam os filhos para os darem (venderem?) a famílias abastadas que os não tinham.

        Alguém me disse que o filme é muito parado, mas fazia o meu género. Faz o meu género pela simplicidade, pela história que conta e como a conta - seguindo o livro. Também pelos actores – Cillian Murphy e Emily Watson – de quem gosto bastante e têm desempenho à altura da sua qualidade. Talvez prefira filmes parados onde o que se adivinha é mais do que aquilo que se vê. Ou, pelo menos, outro tanto.

        Caso curioso, encontrei alguma semelhança entre este livro/filme e a escrita de Elisabeth Strout. Em nenhuma obra específica, mas presente em todas. Será provável matéria de um post.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A Doçura das Manhãs

 

        Havia um silêncio rodeando a casa quando minha mãe me acordava brandamente. Sentia-lhe a mão passando de leve no meu rosto, candeeiro a petróleo pousado na mesa de cabeceira. De seguida, “filha, são horas de estudar”. E era assim todos os dias da semana, exceptuando domingos e feriados.

        Talvez o inverno fizesse ouvir o vento no pomar ou agitasse por demais o damasqueiro que beirava a janela do meu quarto e de que não pressenti, nem uma única vez, murmúrios ou fúrias, o cansaço a tesourar-me as noites. Talvez a chuva me lembrasse a molha futura, o vento dobrando-me a fragilidade - a bicicleta, nas subidas contra o vento, pesava mil quilos e, por mais que forcejasse nos pedais, a roda dianteira parecia colar no alcatrão. Nesses momentos de esforço supremo, um carradão de livros e lancheiras no suporte a desequilibrar, lembrava-me dela e do tanto que fizera e pedira para me manter no colégio. Então, reunia tudo o que me restava e, mau grado intensa dor nas pernas de aranhiço, a roda movia-se: a contragosto, o pneu começava a descolar e percorria em vacilantes passinhos de bebé o meio metro de incentivo que decidia o resto da subida. Por isso, enquanto estudava junto ao calor da chaminé, o vento encanando em assobio que nos enchia a cozinha de fumo, por entre lágrimas involuntárias e fumarentas, pedia a Deus a mercê da sua ausência na travessia. Que a chuva matinal  incomodava ao longo do dia, na viagem fazia-se refrescante, tocava-me a pele e escorria rosto fora, seguindo pescoço abaixo até onde. E idem para as pernas, a capa de chuva extravasava desculpas, lágrimas em fio, não consigo mais, queria tapar-te toda mas não dá. E eu, olhos de chuva pestanejante, atenta à estrada e ao trânsito, já me atrasei, não estou a encontrar os automóveis do costume. E tentava acelerar. Mas saia e bata coladas nas pernas ditavam o avanço dos pedais. Então, preocupava à lembrança da querida amiga que me aguardava, decerto já de portão aberto e toalha pronta a enxugar rosto e cabelo.

        Chegava. E, enquanto eu me enxugava em rompante atabalhoado, ela desatava-me o material do suporte da bicicleta. Logo após, a nossa corrida até ao colégio e o aviso de sua mãe a fazer-nos ligeiras, ai filhas tão atrasadas que estão. Nós duas estrada fora, assolapadas de livros e guarda chuva. Eu, desarrumada de todo, a desviar dos olhos uma catrefa de cabelos húmidos, e uma cambulhada de livros e cadernos sacolejando na mala à dependura do ombro. Quanta ternura de aconchego devo a essa menina-mulher e a seus pais que, sem paga ou moeda de troca, sempre me acolheram e deram a mão em tempos de voz áspera. Foram a minha segunda família e nunca saberão quanto lhes invejei o viver harmonioso. Era o tempo da inocência egocêntrica.

        Guardo dessas manhãs comovida recordação: durante duas horas, estudava e tomava o pequeno almoço enquanto minha mãe apenas se ocupava de mim – fazia o desjejum das duas e o meu almoço, passava a ferro de brasas o meu fato de ginástica e, nos dias em que eu estudava até ao último minuto, atava-me a pasta e o saco do almoço no suporte da bicicleta e retirava-a de casa, trazia-me a bata e ajudava a abotoá-la, segurava a bicicleta para que a montasse, beijava-me com os olhos que só ela tinha e eram meus, e com eles me seguia até que eu, aos esses no caminho, equilibrava na descida do monte e fazia a curva já senhora do veículo.

        Não ficam em branco os defeitos que já me dardejavam irreflectidos: vezes existiam em que pedia a minha mãe para acordar mais cedo a fim de estudar; ela prometia, mas acordava-me à mesma hora aduzindo que fora ao quarto e eu dormia tão profundamente que lhe faltara a coragem. E eu não conseguia ver o amor por detrás, invectivava, quase chorava, culpava-a por um possível decréscimo no resultado do teste. Em suma, feita estúpida, aborrecia-me com ela. Não via o amor subentendido. Fazia-me ignorante de que ela sim, acordava duas horas mais cedo, duas horas que roubava ao descanso e lhe encurtavam as noites, cento e vinte minutos que me consagrava quase inteiramente. Como os filhos podem ser cruéis, ainda que o não desejem ou sequer notem. Sobretudo por nem sequer o notarem.


domingo, 16 de fevereiro de 2025

Murmúrios Primaveris

 

        Existem já pequenas nuances de primavera. Chegam tímidas e a medo se insinuam e fazem presentes. Assim as frésias delicadas me perfumam o quarto em subtis eflúvios. As corolas juntas espreitam a vida no cimo de hastes finas. E permanecem. Repousam em pose que empalidece a arte da bailarina mais perfeita. Contudo, são flores humildes, conjuntos de pequenas campainhas de cores variegadas, hastes tanta vez entrelaçadas e cujo donaire materializa em jarra breve.

        Lá em baixo, a magnólia. Sobrevivente da poda, só agora oferece ao mundo as primeiras flores, asa aberta em fúcsia escurecido. Beleza que emerge, não se sabe como, de tronquinhos finos e envelhecidos sem sombra de folha ou rebento verde. Como cantou Gedeão e não me canso de lembrar, “virtude vegetal viver a sós/ e entretanto dar flores”.

        Não que sejam semelhantes, mas, pela beleza frágil das hastes florindo a medo, associo ambas ao início da primavera. Existem nessa identidade de arabesco indefeso e comovente que nos percorre o olhar. A vida é um continuum.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Salvé, 14 de Fevereiro!

 

        Não me debruço sobre eles, mas por vezes atravessam-me. Falo dos amores incompletos, dos gostos que deram em nada, por isto ou aquilo. Do que foi muito sendo pouco e me salvou as manhãs e “as horas pardas da melancolia” que existem muito para além das margens do Arno. Talvez deva esse ânimo a mim mesma; se for o caso, viva eu. Ou antes seja grata ao objecto do meu sentir, cujo, estando vidrado nesse dito objecto, continua a ser minha pertença. Portanto, biso, viva eu.

        Parece uma perspectiva muito solipsista. Mas o que vinco, aquilo que (me) importa, não está no resultado - se analisar resultados fico sem naipe e não vou a jogo. Ainda assim, arrisco a secundarização do resultado. E não apenas por conveniência ou conivência com imagem que me proteja. Houve um tempo presente para os meus amores e descaminhos do passado. Um tempo em que projectei neles todos os sonhos, em que bastava pensar na correspondência entre quem se gosta – sempre ajuizada como directa -, para sentir o conforto específico do sentimento.

        Ah, pois é, devo a esses amores anões, a essas pendências inauditas e sem pernas para andar, a dose de vitalidade que me assombrou sem fazer sombra - que antes me cresceram no sangue e fizeram florescer. Sou-lhes grata por esse imenso de pequenos de nadas com que me vesti ou me vestiram (que importa?!).

        Pois que sejam em algum lugar e com quem queiram ou possam. Ainda que saiba de fonte segura que alguns se deram à terra em pressas de tempo e desamor, quem sabe se fartos da vida e reféns de incógnitos vícios. De todos os meus pequenos amores guardo o carinho que nos embalou e a alegria que me chegava da mera lembrança de me existirem. Bem sei, do que neles fui não posso saber. Mas não há paga para a benesse da companhia.

        Bem hajam, meus imperfeitos amores.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Ensinar a Aprender

 

        A participação pro bono numa academia senior pôs-me em contacto com a única faixa etária que me faltava conhecer no ensino. Bom, também não ensinei a aprender no jardim de Infância e tampouco na creche; logo, continua a faltar-me alguma coisa:).

        São duas horas por mês versando sobre autores portugueses – uma por semana - e que sempre esticam para três por distracção de je, moi-même. Quando comecei na academia, era das mais novas; hoje, sou das mais velhas. À época, perante a minha reticência acerca de matérias e metodologias de aula, fui elucidada sobre o quanto as mesmas serviam de catarse aos “alunos” e eram muito participadas com histórias pessoais, confissões e queixas próprias da idade, temas de saúde e doença, questões ligadas ao fim de que todos nos aproximamos. Que não me preocupasse, a hora ia passar num instante, havia muita conversa a propósito. Ouvindo isto, ocorreu-me: a propósito ou não, que as conversas são como as cerejas; imaginar tal perspectiva não me descansou, deixou-me até de orelha arrebitada. Mas enfim, aceitara a incumbência. Deitei mãos ao trabalho.

        Devo confessar que, para nosso bem ou nosso mal, na parte que me toca, poucas confissões surgem e queixas de saúde não houve até hoje. No final de cada tema dedicamos uma hora à discussão do que foi dito acerca do/a autor(a) estudado(a) e lido(a) por todos – o que mais os impressionou, o que desconheciam, o que lhes ocorreu pensar de novo sobre o/a escritor(a), sugestões acerca de dificuldades sentidas. Devo dizer que após estes anos ainda verifico a relutância dos “alunos” - na sua maioria professores do primeiro e segundo ciclos – em falar das aulas numa perspectiva crítica e que nos permitiria melhorá-las. Pode que estejam a caminho.

        Um destes dias a minha aula coincidiu com um dilúvio. Grosso modo, os dias da nossa aula têm sido de tempestade: se chove apenas um dia na semana, é no nosso. Quando no fim da aula referi o facto, aduzindo que não esperava senão ter uma ou duas pessoas a ouvir-me, as colegas reagiram, “a chuva não nos impede, vimos de carro; além disso estar aqui é melhor que estar em casa; em casa estamos sempre”. E outra, “venho arejar a cabeça, pensar noutras coisas faz-me bem”. E ainda aqueles a quem me desculpei de gastar sempre a meia hora do intervalo, “não te preocupes, temos tempo e gostamos destes bocados”.

        Portanto: posso não ensinar tanto, nem tão bem como gostaria. Pois posso. Mas há, sem dúvida, um objectivo que consegui: o de não se lembrarem das doenças e do fim próximo; o de “esquecerem” os problemas caseiros e embarcarmos todos no conhecimento de alguém que era para nós apenas um nome ou o início de um poema, descobrindo nas suas palavras ou na sua pintura a maravilha que criaram.

        Como dizia Eugénio em diverso sentido, “no mais fundo de ti eu sei que traí”. Mas toda a interpretação é, de certa forma, uma traição. O que tento preservar e sublinho quanto posso, é a arte presente, aquela partícula de eternidade que os distingue e de que comungam os que permanecem na maravilha das obras que nos legaram.

        E que não se diga que não tentamos.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Hoje e Sempre

 

        Morreste no mês do teu nascimento. Há assim coisas. Acasos que a vida transporta e faz coincidir. E eu que nunca gostei de Fevereiro, guardo-lhe diversos cambiantes: a memória traz-me datas e dias felizes e tão irrepetíveis que a impossibilidade age como agulha e lâmina de doer. E apresentam-se outras horas que, por motivo inverso, só terão fim quando sucumba ou deixe de pensar e ser eu. São macabros dias, a crueldade impávida e mecânica dos acasos infelizes a tiracolo. Arrasadores. Dois conjuntos de carga contrária postos frente a frente como o poeta cantou de certos painéis, “quem pôs assim os homens frente a frente…”. Anualmente cumpridor, o calendário compraz-se em mostrar-me o que foi. E eu, a de memória que escasseia, recordo-os um a um, chegam-me de um fundo borbulhante e que não se me dava esquecer – boas e más horas. Desapertava-me do rigor dos dias que se viram para trás e são sem refrigério. Mas não podemos ser outros; nem mesmo se o julgamos possível. A identidade só por patologia se perde, vive de nós, colada ao que fazemos e pensamos, à forma como agimos a sós e com os outros. Lembro as palavras de um professor criticando Sartre, “l’infer c’est le moi”.

        Não me iludo. É humanamente impossível que gente como tu absorva a longevidade. Sofrias de excesso de substância, eras demasiada em cada momento e breve te esgotarias. Diz-se que partem cedo os que Deus ama. Afirmo que nem poderia ser de outro modo. Até ao fim sou grata à vida pelo tempo claro da tua existência tocando a minha. Contigo, nada me faltava.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O Bem Amado

 

        Este ano o inverno encomprida: enrola, desenrola, e, em teimosia de onda, volta de novo. Talvez esta constatação seja fenómeno de Fevereiro e não a realidade. Que nem as temperaturas mínimas foram além do previsto para a estação; nem a chuva foi demasiada; nem a neve caiu em lugares virgens de tal friúra. Tampouco o calendário foi atraiçoado. O inverno cumpre os trâmites legais.

        Chega-nos um dia de sol e quem pode curte-o por jardins e ruas, lança-se a uma esplanada, banha-se de luz e calor bendizendo a súbita conjunção favorável. Quem não pode, se a tem, trabalha espiando, aqui e ali, a janela; entretém-se a planear almoço rápido e passeio ligeiro, anseia sentir-se vivo na claridade e inveja de boa mente os que dão o rosto à brisa. Ou prefere sentar-se também numa esplanada a aquecer a alma olhando a vida que passa. Na província, a roupa festeja pelos quintais: baloiçam mangas de camisa em arco íris, pernas de calça discretas, pijamas fofos num desafogo, peças íntimas enrubescidas da exibição. Escancaram-se janelas e um ar jovem insinua-se disfarçado de brisa. Casas fora, todas as coisas embebem em contentamento, alegria mansa de serem quietas e desanuviadas, enfim libertas do tom cinzento e frio que mais inibe que propicia. Nasce na alma dos homens uma vontade de nem sei quê, apetites de fuga ao quotidiano, um corolário de impossíveis que só a veemência solar põe de pé. Os mais crédulos julgam que o inverno fechou portas e chegam a conceber o dia seguinte ligeiro de roupas. A juventude passa num abraço alheio à efeméride temporal, casacões à dependura e botas da tropa. Ninguém como eles para abraçar o futuro que não sabem e tanto preocupa os mais velhos.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Deus na Escuridão

 

        Possuo vários livros de Valter Hugo Mãe. Tinha prometido a mim mesma deixar o uso exclusivo deste verbo a minha tia, a única senhora que ouvi a declinar a posse de flores, "já possuí esta flor" ou "também possuo flores destas" e ainda, "ah, pois, já possuí, já; mas perderam-se, sabe; não me ficou nem uma semente". Depois de aberta esta excepção, e voltando ao assunto, acrescento que a maioria das obras me vêm das primeiras publicações que me fizeram sua leitora. Ofereci livros do escritor várias vezes. E também os recebi. É autor que obedece às minhas exigências: gosto do que e de como escreve. Mas acontece que tenho também outras preferências de leitura e até vários prazeres para além dela. E ainda me aplico em incursões por escribas não experimentados. Isto para justificar as ausências que lhe tenho feito.

        Chegou-me há dias uma prenda de Natal atrasada, um livro do Valter. E que bem me soube o “Deus na escuridão”, as restantes prendas já lidas e arrumadas.

        Neste livro com sotaque madeirense (de início julguei-o brasileiro e logo me irritei com o escritor) a voz é de uma criança, é ela quem conta a história. E a criança madeirense, inocente e crédula, de raciocínio simples, alterna com o escritor que tece raciocínios adultos e perspicazes e vai, em simultâneo, plantando poesia que floresce linhas fora. De modos que o livro se lê com muito agrado, quase sem que o leitor dê por esse jogo que o autor joga o livro inteiro entre ele mesmo e a criança que inventa ou mais naturalmente morará dentro dele e basta dar-lhe voz. A quem lê pouco interessa onde a vai buscar, interessa senti-la, saber da sua inocência e bondade (é um anjo, o garoto), dos seus sonhos que dão em nada, da vida a pique que vive a população mais pobre da ilha da Madeira, da ironia mascarada de inocência quando o tema é uma baronesa que também entra na história.

        Gosto do escritor pelo que já assinalei. Mas também por criar personagens que não lembram ao diabo e nos caem no goto. É impossível não nos ligarmos ao irmão mais novo, ser que nasceu incompleto no que ao sexo diz respeito – não tem sexo. Que cresce enfermiço e sempre protegido pelo mais velho e pelos pais, o Pouquinho. Contudo, casa. Tem mesmo uma profissão sem que a tenha procurado. E o mais terão de ler, contar tudo não tem graça.

        Curiosidade fora de contexto: hoje li num blogue sobre formar grupos de escrita, gente que se junta para escrever textos sobre um tema e publica, suponho que no mesmo ou noutro blogue. Não faço esta referência por ser algo de extraordinário. Tenho colegas e conhecidos que fazem o mesmo ou idêntico e há que tempos. Não acho bem nem mal, é com cada um. E se lhes apetece, por que não? Ninguém sai prejudicado, muito pelo contrário. O que estranhei, foi a pessoa em causa - a que escreveu o post -, encontrar que tal actividade – que não tira nem põe - é quase uma façanha, uma espécie de conquista, um risco (arrisca o quê?!). E depois (é antes), ela que parece uma menina esperta, mais esperta que os telemóveis espertos, descreve-se como quem não arrisca nada e foi treinada para não arriscar e tal e tal. E portanto, arrisca fazendo parte de um grupo de escrita criativa ou como lhe queiram chamar. A montanha pariu um rato. Mas está bem.

        Tudo a correr bem para ela e para nós, não é mesmo?!