Finalmente vi “Pequenas coisas como estas”. Um dos poucos filmes de que antes li o livro, no caso, escrito por Claire Keegan. Gostei do livro. Comprei-o cerca de um mês antes do Natal de 2023 e ofereci-o a uma amiga. É um livro pequeno, julgo que não terá cem páginas, e a escrita recupera certo ambiente dos contos antigos em que as personagens são gente humilde, simples e de boa índole, com vidas a condizer. Filme e livro centram-se numa família de muitas filhas, sustentada pelo trabalho do pai – carvoeiro – que, a pulso, criou a sua pequena firma, empregando até alguns rapazes. Em casa, o pai é cooptado pela mãe, senhora de importância menor na história. Tudo acontece na escura e chuvosa Irlanda dos anos oitenta (mas poderia ser no Portugal de Salazar), em época natalícia. O carvoeiro tem casa acanhada e a mesa das refeições é mesa de tudo: ali se come e se estuda; se cose e se brinca; se pratica o acordeão e se reza. Mas há amor entre eles, um amor forte, simples, são. Fazem em conjunto os bolos de natal, uma das filhas ajuda o pai com os pedidos de carvão e respectivas anotações e perpassa na história a sintonia familiar com que sonhamos. As crianças são felizes. Apesar de nele haver tristeza, não é um livro/filme triste. De acordo com o ambiente dos contos, evidencia a crueldade – as pessoas más que atazanavam o imaginário da infância num misto de repulsa e atracção. Tanto nas palavras como nas imagens há uma contenção admirável, líquido revelador do evoluir da crueldade na trama. Subentendida e nunca vista ou lida textualmente, presentifica-se em pequenos-grandes sinais. E há a consciência de um homem que entende, por saber de experiência feito, a dimensão feroz do poder, a impiedade e a importância do “Yes, minister” que ali é “Yes, mother” (sim, madre). Também ele as sofreu na infância que revemos em curtos e repetidos flash backs.
Sente-se no livro – e também um pouco no filme - qualquer coisa do maravilhoso das histórias que nos contam na infância: o privilégio de existir alguém que, a despeito do que possa vir a suceder, obedece à sua consciência e faz o bem. E é ironia propositada (e bastante natalícia) que o bem e o sentido moral morem numa casa humilde e venham de um carvoeiro; enquanto que o mal, a crueldade, a frieza, habite as freiras dominadoras, refasteladas em aposentos de riqueza e conforto enquanto as mães futuras e passadas trabalham e esfregam. As religiosas eram soberanas temidas e respeitadas no ensino escolar, na igreja e na reeducação de mães solteiras que ali entravam grávidas e a quem, como hoje se sabe, retiravam os filhos para os darem (venderem?) a famílias abastadas que os não tinham.
Alguém me disse que o filme é muito parado, mas fazia o meu género. Faz o meu género pela simplicidade, pela história que conta e como a conta - seguindo o livro. Também pelos actores – Cillian Murphy e Emily Watson – de quem gosto bastante e têm desempenho à altura da sua qualidade. Talvez prefira filmes parados onde o que se adivinha é mais do que aquilo que se vê. Ou, pelo menos, outro tanto.
Caso curioso, encontrei alguma semelhança entre este livro/filme e a escrita de Elisabeth Strout. Em nenhuma obra específica, mas presente em todas. Será provável matéria de um post.