quarta-feira, 30 de abril de 2025

28 de Abril de 2025

 

        Dia 28, mercê de um inadiável, desloquei-me à capital. Havia greve de comboios. Fui cedinho para fugir ao trânsito redobrado das segundas em hora de ponta. Correu bem; estava no local com saliente avanço e optei por tomar o segundo pequeno almoço enquanto lia os contos de Eça. Sabe bem ler o Eça. Resolvi os compromissos antes do horário previsto e na hora do suposto atendimento já eu saía resoluta e cheia de projectos. Rumei à Baixa. Propunha-me experimentar os almoços da macrobiótica, passar pela loja e comprar o lanche. E depois, cinema. Ao fim do dia havia um curso que me interessava.

        Mas o homem põe, e a corrente eléctrica dispõe. Safei-me de ficar presa no Metro por ter madrugado. Puro acaso. Ora, estava eu num provador achando estranha a pouca luminosidade e a pensar comigo que o comércio quer poupar em tudo, quando reparei que não ouvia um som: nem passos, nem vozes, nem o som dos cabides a entrarem e saírem dos suportes. Nada. Espreitei. A loja deserta. Vesti-me atabalhoada de pressas, carreguei as roupas e a menina no balcão, cabeça baixa e tão entusiasmada com o telemóvel que nem deu por mim. Comecei a repor as peças no lugar e perguntei, somos só nós duas? Ela meia assustada, mas eu já fechei a loja, onde é que a senhora estava? Eu apontando com o cabide, ali. E ela sem mais, não há luz, não posso vender nada; recebi ordem para fechar a porta.E os meus olhos confirmaram: estava fechada. Eu contristada, então... mas tenho aqui um vestido de que gosto... ela, bom, se tiver o dinheiro certo, posso vender. Ou passa cá logo à tarde, talvez já haja luz. E justificando a atenção ao telefone, estou a tentar ligar para a chefe, mas não consigo.

        Estava eu no quid pro quo  da compra e ela a ensaiar nova ligação, chega o colega que entrava às doze. Um brasileiro extravagante e simpático, com o sotaque que conhecemos e me eximo de escrever, xiii, gente, parece que a luz apagou em três países, Portugal, Espanha e sul de França - e eu para mim, logo à tarde ainda não há luz e as lojas vão, de certeza, fechar todas. Optei pela compra e julguei melhor regressar a casa. Mas não havia Metro. E autocarros não estavam visíveis. Táxis, todos ocupados; e o uber, sem a aplicação, não funcionava. Não consegui falar com ninguém. 

        Subi a Avenida da Liberdade julgando (era assim nos meus tempos de faculdade) que no início da Fontes Pereira de Melo havia duas ou três paragens de autocarro. Ilusão. As paragens e um rio de pessoas estavam lá, os autocarros não. Durante duas horas à soalheira observei a Rotunda do Marquês cheia de trânsito bem como todas as ruas que ali confluíam. Havia um comboio de veículos em cada faixa de circulação e quase não se movia, razão porque os autocarros não chegavam e, se sim, seguiam sem paragem, pejados de gente que invejávamos. Naquele posto vi de tudo: o civismo e o seu contrário; e não sou tão optimista como o primeiro ministro acerca do povo português, assisti a muita fealdade. Toda a gente queria chegar a casa. Era segunda feira e entre as doze e as treze houve confluência: os serviços encerraram. À mesma hora, um mundo de gente coincidia nos caminhos. Sem semáforos (não seria muito diferente se eles existissem). Os passeios abarrotavam de pedestres forçados - gente de fato e gravata, pasta de couro a dar o retoque; mulheres com perfil de secretária e sapatos de salto agulha pisando esforço, mas sem perder a compostura; jovens de mochila descontraída; mulheres carregadas de sacos plásticos, um mundo de ruelas e desesperança nas rugas do rosto, lábios descorados e encolhidos, uso dos esquecidos de si. Dei graças a Deus por ter calçado as botinhas baixas e fui peregrinando com eles. Passava meia hora das quinze, e trouxera de casa uma garrafa de água. Entretanto, descobri duas barritas de cereais no bolso da mochila. Deviam ser velhas de nem sei quando, mas comi uma com satisfação e fui-me dessedentando pelo caminho. Vencida pelo cansaço, voltei à ilusão e aguardei uns quinze minutos numa paragem do Campo Grande. Mas os autocarros mantinham o princípio: não passavam ou fingiam que não viam e seguiam imperturbáveis. Portanto, continuei a pé. 

        Finalmente, pisei a rua onde deixara o carro. Sentei-me por ali num banco de pedra e, enquanto descansava, abri a mochila e dei sumiço à última barrita. Vi as horas, arrumei o estojo e viajei de volta na paz dos anjos, a segunda circular, por comparação ao movimento habitual, um sossego. 

    Não havia luz nem água quando regressei a penates. Jantei à luz da vela, estendi-me na cama e adormeci no imediatamente que não uso. Também há inesquecíveis desta natureza.


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Minudências

 

        Ao invés do que muito se afirma, que somos felizes sem o saber, que só a posteriori, rememorando ou apenas definindo esse sem memória infantil, nos damos conta da felicidade que então possuíamos, sublinho que a felicidade - ou os momentos que temos com ela – é consciente de si em acto. Não nomeio felicidade esse estádio em que não pensamos nela e somos inconscientemente “felizes”. Persevero no princípio de que toda a sensação, sentimento e emoção só tem existência plena se pensado. Por tal, considero que a infância, embora cimente e nos cole o futuro que seremos, não pode ser, cabalmente, um estádio de felicidade. Por outro lado, tendemos a considerar felizes os períodos da nossa vida particular em que possuíamos saúde física, mental, ou económica; ou aqueles onde ainda não faltavam as pessoas de quem gostamos. Avento eu que esses períodos considerados felizes a posteriori, também não reúnem as condições. É certo, podemos, por recordação e comparação com o tempo presente, onde as faltas se apresentam irremissíveis, pensar que lá atrás fomos felizes. Apenas questiono: quanto vale essa felicidade ao retardador, se comparada com a consciência que temos de estar a viver um momento de felicidade. Ou vários. Posto isto, é por demais evidente que nos considero perdulários quanto a momentos felizes. A felicidade dos portugueses merece a actualização que eles lhe negam de cada vez que a situam no passado. Ora bolas, o passado é apenas memória a cimentar-nos a identidade e uma ferramenta a usar no futuro. A felicidade, tal como a entendo, é do presente e das condições que ele oferece e nos cabe transformar, recusar ou aceitar sem desvirtuarmos quem somos. É nessa escolha que nos projectamos e nos sentimos mais ou menos felizes. Dizem-me, ah, mas então e os outros?! Os outros que nos barram o caminho, nos embaraçam os propósitos, que ocupam o espaço do indivíduo (nosso) e que, num repente, se torna plural. Ah, pois é. Os outros. O grande desafio é sermos felizes com eles e apesar deles. Chama-se vida humana.

        Vem este arengar, caro(a) leitor(a), ao encontro do passeio que fiz pelo Parque Natural Terra Nostra. Foi lá, nessa hora exactíssima, que fui feliz. E não o sei de hoje, soube-o desde os primeiros passos na ponte, a água correndo sem parar e eu vidrada no acontecer dos três tanques. Já contei da planta aquática e morceguenta que floresce uma vez por ano. Imaginei mesmo a bacanal, vagarosa de talvez doze horas, com os polinizadores presos no interior da corola. Mas pronto, dessa planta exótica e tímida que só a noite e os noctívagos vêem, conheci o lugar e nada mais. E avançámos.

        O parque, para além da beleza própria de plantas e árvores bem tratadas, tem zonas de encanto exclusivo. Estão neste âmbito a floresta (nome meu) de bambus, lugar onde nos sentimos irreais e liliputianos. E assim as ruas de camélias floridas de que destaco a tímida camélia amarela que desabrocha virada para o interior da planta e é uma raridade com nome que esqueci; são tantas camélias e todas tão bonitas que até se lhes perdoa o facto de não terem odor perfumado. Ali fui uma espécie de fidalga passeando em seu jardim. Fomos ainda ao chamado açucareiro, um miradouro cuja forma lembra o dito objecto e que tem particularidades específicas quanto à percepção do som que ali chega. E a alameda das Gingko Biloba tão bonita mesmo que inda quase nua; sentei-me a imaginar o outono da alameda, antevendo o amarelo denso das suas folhinhas recortadas, a imaginar quantos por lá se sentaram comovidos de tanta beleza, unida a eles e aos muitos que sei que nunca viram uma gingko biloba durante a vida. A imaginar-te comigo como se não houvera morte nem impossíveis. Estivemos lá, é tudo - e é muito -  que posso afirmar e agradecer.

(cont.)

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Minudências

 

        Do Hotel, mau grado diferenças pessoais e até colectivas que por ali se espraiam, é difícil que alguém desgoste. A sala de refeições tem, muito a propósito, paredes envidraçadas por forma a que os hóspedes se sintam parte do verde circundante e não profanem o asseio e limpeza de espaços exteriores – ver os troncos despidos de árvores seculares desenhados no azul em prece de gratidão, comove. Não transpiravam o desespero silencioso que encontramos noutros ramos desnudos, mas a espera confiante, um advento natural em anseios de primavera. E havia a festa dos pássaros saltitantes, gratos pela vida em lugar de eleição. Eram aves incógnitas, mas a nomenclatura que domino é escassa e não garanto que sejam autóctones. Quem sabe são espécies que fazem ninho nas alturas do azevinho do quintal (não sei como conseguem ter casa em sítio tão inóspito). Os meus pássaros, orquestra das manhãs, afinal não nos abandonaram; acompanham sempre. Ainda que mais escassos no inverno, decuplicam nas restantes estações. Acordo, e logo estão chilreando; ou, irmanados e em silêncio, esperam comigo os alvores do dia.

        Outro gosto é o desjejum, ainda que, por via do bem estar, já pouco aproveite, o que deveras me contrista. E amei a varanda onde permaneci feita lady da sucata, recolhendo o sôfrego sol que faltara no continente, Camilo por companhia - gosto deste escritor intemporal. E eu ali, eu despreocupada de ementas e outros afazeres necessários que atazanam a maioria das mulheres. Levantava os olhos e, na claridade, árvores, e relva, e pássaros, distribuindo júbilo. Aquela varanda não virava ao mar, mas era igual portento.

        Fizemos a visita guiada ao Parque Terra Nostra. Era logo ali. E, passando a ponte airosa, o som da água fez-se companhia. Observámos os três tanques de água aquecida que abrigam o raro nenúfar gigante (um por tanque), ou, como prefiro chamar-lhe, a Victoria Cruziana – lembra-me navios em viagens compridas - flor que abre de noite e dura apenas 48 horas. Tem a particularidades de, na primeira noite, ser muito perfumada e atrair os polinizadores fechando-os dentro de si; na noite seguinte abre de novo, agora com uma cor rosada que, garantiu a guia, é de encantar, e liberta os polinizadores; e não há terceira noite. A natureza é do necessário e não da vontade nem do desejo. É assim.

        Impressionaram-me os riachos, regatos, viadutos de água feliz e aos saltinhos sobre pedras que limou, criança travessa divertindo-se. Que maravilha é observar a liberdade da água percorrendo a ilha. A água doce que tanto escasseia nos verões alentejanos e em S. Miguel é abundância. Quem me dera poder encaminhá-la à terra seca e poeirenta de meus pais, aliviar a sede congénita daquele solo que lhes guardou o esforço suado e amo de paixão,  sem distinguir onde ele acaba e eu começo (estou em crer que somos um só).

        Demos a volta ao grande tanque termal nascido onde as laranjeiras proliferavam. E vimos o exterior da casa. Enquanto no Porto os ingleses vigiavam vinhas e zelavam pela boa viagem do vinho do Porto; em S. Miguel, Thomas Hickling, um americano que chegou a ser vice consul dos Estados Unidos, fazia o mesmo com os laranjais e as laranjas que existiam numa propriedade das Furnas que adquiriu dedicando-se a alindá-la e à exportação do fruto para Inglaterra. Quem diria que o Parque começou por ser um enorme laranjal com uma casa de férias que inda existe remodelada e com função que não recordo, mas será para grandes acontecimentos.

        Muito perto do enorme tanque de água férrea que encontrámos vazio, perdura teimosamente o velho carvalho que o primeiro Thomas plantou no que então chamou de "jardim com um tanque de águas termais", facultando livre trânsito aos residentes da ilha. Que excelente pessoa e delicada alma seria este senhor que se apaixonou por S. Miguel e as Furnas. Ali viveu e morreu. E eu, atrás da história, seguindo a guia qual ratinho de Hamelin atraído pela flauta mágica - mas sem final trágico. Saliente-se que a dama era simpática qb.

(cont.)

terça-feira, 15 de abril de 2025

Minudências

 

        Chegámos às Furnas ao fim da tarde quando já os verdes se ensombravam envoltos em tons escuros e as cores esclarecidas abandonavam o olhar retirando ao mundo a definição. A lagoa, a meus olhos enorme e a primeira que vi em S. Miguel, brilhava em amarelos pálidos de fim de tarde, pronta à pausa nocturna que descia com vagar pelas sombras disformes das árvores. Admirei-a no tão sem fim do caminho plano que a coroava toda a volta, percurso certo dos peregrinos da natureza ajudados por ténis infalíveis. Um ou outro automóvel curioso, motor ronronando de enlevo, entrei no reino dos deuses. Por momentos, senti-me a respirar o ar que cheira à água e aos montes, a ervas pisadas e árvores rescendendo sol e clorofila; julguei ouvir o coaxar de rãs e a fuga resmalhada de lagartos, lagartixas e outros bicharocos temerosos. Mas outro era o nosso destino. Num relance, notei, lá bem no fundo, igreja antiga tomando conta da paisagem, sentinela do espírito virada às águas. Ah, se eu desse a volta à lagoa! Se pudesse tirar um dia e perder-me nos seus caminhos, palmilhar aquela beleza coroada. Visitaria o templo. E pedia ao Deus que ali vive, o prazeroso regresso. Que um Deus da beira de água é mais afável e pronto a humanos favores. Mas já a lagoa me desaparecia e mergulhávamos na penumbra esverdeada do caminho escurecido por copas frondosas. Aqui e ali a brancura das azáleas, véu esquecido na beira de estrada, cortando a atonia dos valados que mediam o anoitecer. Uma rapidez de asas fazia tremer a folhagem, um talvez coelho célere atravessava o alcatrão. Os naturais do lugar recolhiam a penates e levavam pressa. Tudo na descida para as Furnas era bom prenúncio.

        A minha curta geografia apenas percebeu a rua do hotel e a igreja encimando a outra ponta; o templo imóvel, branco e gracioso em suas barras cinzentas, braços estendidos para o interminável caminho descendente, vinde a mim. Reparei que a torre sineira exibia um cata-vento bastante vulgar que me trouxe lembranças. Pernoitar num hotel em pleno parque natural é maravilha que não tinha sonhado viver. Mas vivi. Há bens que nos vêm dos outros e, desajeitados de tais graças, nem sabemos como agradecer. Assim me aconteceu. Talvez afinal seja bom o desábito de atenções extra, sente a gente uma alegria e gratidão maior, o coração expande.

        Quem não gosta de ser bem tratado, ter quarto limpo e boa cama onde dormir sem que a faça ou lave lençóis, de se sentar à mesa do pequeno almoço e ter tudo à mão, de, apaziguado, saber que não há trabalho em espera, que pode degustar sem pressas, o dia nada exigindo. Quem é que pode não gostar de viver alguns dias desta natureza, quem?!

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terça-feira, 8 de abril de 2025

Minudências

 

        Penso algumas vezes que se a intensidade do sentir pesasse, a haver mensurabilidade para ela, seriam frequentes a substituição da minha cama e vários arranjos de carpintaria. Imagino que, caindo nela despedida como caio, o cansaço a faria ceder e pumba(!), a mobília assarapantava com o estardalhaço, que é isto, os pés da cómoda num desassossego, não conseguimos fugir, acudam. E a pobre de mim com os costados no chão, ou talvez em plano inclinado, enquanto o colchão se desculpava num sussurro de molas ensacadas, perdão, não me fizeram a contar com a canseira dos corpos. Escrevo eu isto por ser conhecida verdade que quem vê caras… e em S. Miguel, suponho, ninguém é o que exterioriza. Dizemos, Lindo(!), e triplicamos o ponto de admiração, mas não há pontos admirados que cheguem a este espanto estético que é de certeza diverso e superior ao dos primeiros filósofos - o meu interesse pela filosofia nasceu desse espanto lido que não entendia; o espanto não me levava ao pensamento, antes me inibia a capacidade de juízo. O meu espanto não era profícuo, mas um solitário ele que me imbecilizava. Ter estudado filosofia não me fez mais sábia, mas aprendi a génese do espanto filosófico (vá lá, ao menos isso). Com boa vontade e muita prosápia, posso limpar a imagem admitindo no espanto experimentado outra natureza.

        O que sabemos é tão só  a intensidade com que a beleza nos atravessa e o que em nós provoca: emudece-nos no exterior enquanto internamente tudo exulta e rejubila. E quanto mais desvanecemos, todas as fibras sensíveis activas, mais nos suspendemos na admiração,  reféns dos sentidos por inteiro. S. Miguel não é o cozido, nem o polvo, nem os peixes e mariscos que ali se servem como iguaria. S. Miguel - desculpem-me as almas citadinas - não são as cidades nem as igrejas. Nem. S. Miguel é a variegada coloração marítima, são as rochas e o ilhéu de Vila Franca do Campo onde, a prumo e desafiando perigos, nadou meu filho, a criança espreitando o adolescente. S. Miguel é a areia preta e escaldante das praias e o vento infatigável. É o inequívoco privilégio de, beirando o crepúsculo, ver a Lagoa a encerrar-se em névoa como quem puxa a coberta antes de adormecer. E é sair em silêncio, pé ante pé, deixá-la repousar da canseira de ser esmiuçada por tantos olhares, doente de inúmeros pés e vozes a corroerem-lhe os corredores; é abandoná-la à solidão desejada, certificando a imperturbada quietude remansosa. Quem sabe, deuses imemoriais a protegem desde o completo fundo das águas. Ou, como pensa Bettips, lembramos Atlântida, o continente perdido envolto em nevoeiro num fundo de mar, e que amei de paixão nos livros de banda desenhada de meu tio. S. Miguel tem muito sonho na sua realidade, motivo que nos paralisa. E toca. E comove.

        Disse-me quem habitou a ilha: num dia podem existir as quatro estações. Tal não me aconteceu. Houve, isso sim, dias de primavera feliz, um dia de chuva com muitas abertas, e dias primaveris que oscilaram entre nuvens carregadas e sol doente. O frio era, em tudo, semelhante ao do continente.

(cont.)

sexta-feira, 4 de abril de 2025

A Droga das Sextas

 

        Hoje é sexta!!! Bebo a minha bebida e fico outra de mim. Aflora-me essa que olha a realidade com benevolência e intui caminho nem por isso difícil (palavra que não sei como é que isto acontece, o mundo está a virar-se do avesso...). Torno-me aquela a quem os problemas não fazem mossa, acho que porque os ignoro. Só pode. Às sextas fico jovem de espírito (de corpo já não consigo), faço planos arrojados para a mulher quotidiana que sou nos outros dias e é bom esgotar as energias na limpeza, ou isto de ser jovem sem destino fixo, ainda dava mau resultado. Claro que só à sexta arrisco um toque no jardim. Nos outros dias sou sugada por afazeres dementes e deixo-me ir, sem tempo para flores ou podas ou o que seja. Também é verdade que a minha parca actividade de jardinagem se eclipsa nesta selva que o inverno e a primavera tecem dia a dia e gota a gota. Mas pronto, estou bem disposta e hoje a selva até me parece bem. Chove, mas não me importa. Estou só, mas agrada-me (nunca estou só, tenho as minhas companhias inventadas que nas sextas me estendem a mão). O vidro da janela está exaurido de gotas, mas acho-as bonitas e a paisagem alinda se vista através de gotículas iridiscentes (de vez em quando faz sol). À sexta apetece-me escrever sem destino, mas, mesmo com alma jovem, não posso permitir-me tanta liberdade; portanto, o mais que faço é, num bocadinho livre, botar uma linhas e dar-me ao luxo de postar, as palavras atropelando-se umas atrás das outras e eu a querer dar conta do recado, “péra aí, péra aí”. Às sextas sou alegre e buliçosa (lá está a juventude de espírito a fazer das suas) e nada comparável com a outra que tem a mesma cara, mas a meu ver é tão distinta.

        A verdade é que deixei de ter fins de semana apesar de continuar a desejá-los por aqui. E não, a vida de reformado/a não é toda fim de semana, é antes o contrário, preenchida com entupidos dias de semana. Agora tenho as sextas. Todas as sextas até à morte. É bastante tempo, o que me alegra; ou, por pensá-lo numa sexta feira, assim me parece :).

        Devia continuar a escrever sobre S. Miguel não é? Pois, mas não me apetece. E à sexta faço alguma coisa que me apeteça. Portanto, desculpinhas, S. Miguel não perde pela demora. Ainda hei-de ficar toda delicodoce a pensar naquela ilha que tanto me entrou no profundo. Hoje, a sexta feira tem-me inteirinha. E um tudo nada palerma. A boa disposição deixa-me assim, querem o quê?!

        Bom fim de semana


terça-feira, 1 de abril de 2025

Minudências

 

        Os lugares que visitamos são bastante diferentes do que imaginámos. O desconhecido imaginado é incapaz de coincidência com o real. E é sempre grata surpresa verificar que a realidade suplanta o imaginário. Foi assim que S. Miguel me apareceu: inédita ilha originária.

        Ignoro o ponto alto da viagem e admito-lhe vários cumes que não consigo medir ou posicionar em escala gradativa. O belo, é belo sem grau. E eu, que jamais pisara solo de ilha - sou mais peninsular -, gostei daquele mar que nos acompanhou a maior parte do tempo e que mudava de cor consoante a exposição solar. Vi-o tão azul e resplandecente como imagino o Mediterrâneo e tão esverdeado como o mar que melhor conheço; mas nas horas nubladas carregava-se de tons cinza e chegou a ser vasta escuridão, luto móvel que pode ser terrífico espelho negro. Pela primeira vez, cheirei a maresia ainda em Março. Fazia vento. Na ilha, a constância do vento impressiona. A constância e a velocidade – abrimos a porta do carro e ela voa-nos das mãos (vi jeitos de entregar o carro sem portas). Foi privilégio inalar o odor marítimo, sentir próximo o cheiro da minha praia, aroma suave e não a essência fortemente masculina que o mar impõe noutros lugares. Espreitei esse Atlântico familiar em cada miradouro, debruçada e esparvecida para a beleza da paisagem que, em recato natural, aguarda o viajante. Em S. Miguel matei parte da saudade que me faz desejar o verão ano após ano. E é libertação matar a saudade, mesmo se parcial. Alijamos algum peso. Aconteceu-me. E pensei em ti. Como penso sempre. Em ti mãe; em ti avô; em ti pai; em ti, em ti. É assim que a sós me sinto acompanhada. E vivo por todos a beleza do mundo, os olhos saturando em cada crepúsculo. O prazer também dói. Dulcíssimo, mas dói.

        Eu vi a Lagoa das Sete Cidades em verde e azul. Sob a chuva e sob o sol. Vi bancos de névoa a formar-se sobre a Lagoa do Fogo na humidade do crepúsculo, vi as árvores perfiladas como batalhões de soldados verdes que ombro a ombro protegem a sua dama na Grota do Inferno. E ouvi o sussurro suspirado do vento balançando na altura das árvores, senti as gotas da humidade saturada caindo como lágrimas no silêncio penumbroso da floresta onde os passos soam a profanação de santuário.

        E, sobre a beleza natural, dei conta da mão do homem que limpa, alinda, poda, alisa e protege. Soube que cada miradouro tem um jardineiro próprio e vi-os pondo em prática a sua arte, cuidando dos lugares como se deles fossem. Reparei que as bermas das estradas, por mais secundárias e de cabras, estavam limpas; que não havia buracos no alcatrão; que os parques são amplos e com qualidade; os caminhos de terra bem ordenados. Dirão que é por via do turismo. E depois? No continente também existem zonas de muito turista. E que diferença! Há que aprender com os açorianos.

(cont.)