Dia 28, mercê de um inadiável, desloquei-me à capital. Havia greve de comboios. Fui cedinho para fugir ao trânsito redobrado das segundas em hora de ponta. Correu bem; estava no local com saliente avanço e optei por tomar o segundo pequeno almoço enquanto lia os contos de Eça. Sabe bem ler o Eça. Resolvi os compromissos antes do horário previsto e na hora do suposto atendimento já eu saía resoluta e cheia de projectos. Rumei à Baixa. Propunha-me experimentar os almoços da macrobiótica, passar pela loja e comprar o lanche. E depois, cinema. Ao fim do dia havia um curso que me interessava.
Mas o homem põe, e a corrente eléctrica dispõe. Safei-me de ficar presa no Metro por ter madrugado. Puro acaso. Ora, estava eu num provador achando estranha a pouca luminosidade e a pensar comigo que o comércio quer poupar em tudo, quando reparei que não ouvia um som: nem passos, nem vozes, nem o som dos cabides a entrarem e saírem dos suportes. Nada. Espreitei. A loja deserta. Vesti-me atabalhoada de pressas, carreguei as roupas e a menina no balcão, cabeça baixa e tão entusiasmada com o telemóvel que nem deu por mim. Comecei a repor as peças no lugar e perguntei, somos só nós duas? Ela meia assustada, mas eu já fechei a loja, onde é que a senhora estava? Eu apontando com o cabide, ali. E ela sem mais, não há luz, não posso vender nada; recebi ordem para fechar a porta.E os meus olhos confirmaram: estava fechada. Eu contristada, então... mas tenho aqui um vestido de que gosto... ela, bom, se tiver o dinheiro certo, posso vender. Ou passa cá logo à tarde, talvez já haja luz. E justificando a atenção ao telefone, estou a tentar ligar para a chefe, mas não consigo.
Estava eu no quid pro quo da compra e ela a ensaiar nova ligação, chega o colega que entrava às doze. Um brasileiro extravagante e simpático, com o sotaque que conhecemos e me eximo de escrever, xiii, gente, parece que a luz apagou em três países, Portugal, Espanha e sul de França - e eu para mim, logo à tarde ainda não há luz e as lojas vão, de certeza, fechar todas. Optei pela compra e julguei melhor regressar a casa. Mas não havia Metro. E autocarros não estavam visíveis. Táxis, todos ocupados; e o uber, sem a aplicação, não funcionava. Não consegui falar com ninguém.
Subi a Avenida da Liberdade julgando (era assim nos meus tempos de faculdade) que no início da Fontes Pereira de Melo havia duas ou três paragens de autocarro. Ilusão. As paragens e um rio de pessoas estavam lá, os autocarros não. Durante duas horas à soalheira observei a Rotunda do Marquês cheia de trânsito bem como todas as ruas que ali confluíam. Havia um comboio de veículos em cada faixa de circulação e quase não se movia, razão porque os autocarros não chegavam e, se sim, seguiam sem paragem, pejados de gente que invejávamos. Naquele posto vi de tudo: o civismo e o seu contrário; e não sou tão optimista como o primeiro ministro acerca do povo português, assisti a muita fealdade. Toda a gente queria chegar a casa. Era segunda feira e entre as doze e as treze houve confluência: os serviços encerraram. À mesma hora, um mundo de gente coincidia nos caminhos. Sem semáforos (não seria muito diferente se eles existissem). Os passeios abarrotavam de pedestres forçados - gente de fato e gravata, pasta de couro a dar o retoque; mulheres com perfil de secretária e sapatos de salto agulha pisando esforço, mas sem perder a compostura; jovens de mochila descontraída; mulheres carregadas de sacos plásticos, um mundo de ruelas e desesperança nas rugas do rosto, lábios descorados e encolhidos, uso dos esquecidos de si. Dei graças a Deus por ter calçado as botinhas baixas e fui peregrinando com eles. Passava meia hora das quinze, e trouxera de casa uma garrafa de água. Entretanto, descobri duas barritas de cereais no bolso da mochila. Deviam ser velhas de nem sei quando, mas comi uma com satisfação e fui-me dessedentando pelo caminho. Vencida pelo cansaço, voltei à ilusão e aguardei uns quinze minutos numa paragem do Campo Grande. Mas os autocarros mantinham o princípio: não passavam ou fingiam que não viam e seguiam imperturbáveis. Portanto, continuei a pé.
Finalmente, pisei a rua onde deixara o carro. Sentei-me por ali num banco de pedra e, enquanto descansava, abri a mochila e dei sumiço à última barrita. Vi as horas, arrumei o estojo e viajei de volta na paz dos anjos, a segunda circular, por comparação ao movimento habitual, um sossego.
Não havia luz nem água quando regressei a penates. Jantei à luz da vela, estendi-me na cama e adormeci no imediatamente que não uso. Também há inesquecíveis desta natureza.