O predomínio do trabalho feminino no tecido social não é novidade. Na vida como no livro, o bem estar caseiro sempre dependeu das mulheres. Na casa dos outros como na sua, se havia buraco a que chamar seu. Nem sempre sucedia, as criadas eram como as coisas, permaneciam no local de trabalho. Dos objectos, que apenas cumpriam a sua função, digo que, caso pensassem, seriam os mais felizes. Que elas estavam para todo o serviço e disponíveis a qualquer hora. Como é que esta gente que sustinha uma casa com o corpo, e trabalhava da alvorada até noite alta, não era bem paga?! Mas não era. Tudo que conquistaram foi à dentada (força de expressão; por muito que lhes apetecesse, não mordiam ninguém) e por força braçal. Que eu saiba, os excessivos de limpeza e zelo não as enriqueceram, antes perpetuaram a pobreza.
O teu livro, Eliane, escorre suor de fêmea sem tempo para sexo ou amores, exala cansaço de mulher e um imenso nojo do cheiro dos brancos. Também cheira ao bafo masculino a aguardente, vulgo cachaça. A cachaça iguala os homens e só o trabalho os distingue. Há os que trabalham e bebem depois; e os que só bebem. Todos fazem mau viver caseiro. Tia Olma convicta, “os maridos sempre são um peso na vida da gente, os homens são sempre um peso na vida da gente”. Se a vida era/é aquilo, está coberta de razão.
E depois fazes enumerações sem vírgulas, Também elides alguns pontos, e encomendaste a Deus palavras que o dicionário não tem e expressões como “pés enferidados”. Para além da junção de palavras que tanto utilizas para referires membros da família louceira. Por exemplo, minhatia; o expaimeu. Num repente, escreves em espanhol - vivias/vives(?) na fronteira Brasil Uruguai. E li que usas também o iorubá (serão as expressões e vocábulos que sublinhei e para que não encontro resposta). Desta mistura que adoças com o sotaque brasileiro, sai escrita bem original e interessante. Outra nota de diferença é o nome das cidades onde viveste ou viveram os teus cacos ora partidos – são a cidade com nome de santa; a cidade com nome de ana; e por aí. Nem uma cidade surge com o seu nome natural.
Há mesmo uma referência a Pessoa (ou julgo eu que o seja) entre as páginas 197/198. Não me parece lisonjeira, mas é bem capaz de ter alguma verdade quanto ao que está encerrado na sua arca que nunca mais esgota. Acho eu que é arca sem fundo. És crítica, muito crítica mesmo; e não só acerca dos negros. Fazes referência a livros e não li sequer um deles; dizes estar enfartada das palavras dos brancos e mudaste a agulha para as dos negros. Mas a literatura é uma só e não tem cor, tem sim particularidades do autor e do que conhece, além do modo pessoal de interpretar a vida que escreve singularmente. Ou talvez eu esteja por demais habituada à leitura de escritores brancos. Mas tu és de cor. Negra. E gostei muito de te ler. Faz de conta que me bateste à porta com este livro e eu digo cá dos fundos, Avante!
Dois excertos a lembrar o teu jeito:
“Nenhuma geração negra foi ou é completamente livre. A lei que libertava o ventre do corpo determinava que as crianças permanecessem em poder dos senhores de suas mães até os oito anos de idade. Depois poderiam entregá-las ao governo com direito a indenização ou utilizar seus serviços até os 21 anos. Também nunca aconteceu. Temos senhores ainda hoje. Dentro de nossas próprias casas”
“aos dez anos tia Firmina foi internada pela minhavó numa instituição para crianças tortas na cidade do chapéu. (…) Tratava-se de um orfanato. Sinto vergonha de dizer que minha avó que me levava leite e bolachinhas na cama pela manhã, mandou minha tia para um orfanato onde as freiras exigiam que ela fosse uma menina quieta cristã tímida resignada silenciosa ordeira limpa disciplinada ingénua submissa, que fosse um não alguém ou alguém que desejasse viver o mínimo e morrer o máximo. Os desejos que o expaimeu desejava a mim, as freiras dirigiam à tia Firmina.”