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domingo, 17 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        O predomínio do trabalho feminino no tecido social não é novidade. Na vida como no livro, o bem estar caseiro sempre dependeu das mulheres. Na casa dos outros como na sua, se havia buraco a que chamar seu. Nem sempre sucedia, as criadas eram como as coisas, permaneciam no local de trabalho. Dos objectos, que apenas cumpriam a sua função, digo que, caso pensassem, seriam os mais felizes. Que elas estavam para todo o serviço e disponíveis a qualquer hora. Como é que esta gente que sustinha uma casa com o corpo, e trabalhava da alvorada até noite alta, não era bem paga?! Mas não era. Tudo que conquistaram foi à dentada (força de expressão; por muito que lhes apetecesse, não mordiam ninguém) e por força braçal. Que eu saiba, os excessivos de limpeza e zelo não as enriqueceram, antes perpetuaram a pobreza.

        O teu livro, Eliane, escorre suor de fêmea sem tempo para sexo ou amores, exala cansaço de mulher e um imenso nojo do cheiro dos brancos. Também cheira ao bafo masculino a aguardente, vulgo cachaça. A cachaça iguala os homens e só o trabalho os distingue. Há os que trabalham e bebem depois; e os que só bebem. Todos fazem mau viver caseiro. Tia Olma convicta, “os maridos sempre são um peso na vida da gente, os homens são sempre um peso na vida da gente”. Se a vida era/é aquilo, está coberta de razão.

        E depois fazes enumerações sem vírgulas, Também elides alguns pontos, e encomendaste a Deus palavras que o dicionário não tem e expressões como “pés enferidados”. Para além da junção de palavras que tanto utilizas para referires membros da família louceira. Por exemplo, minhatia; o expaimeu. Num repente, escreves em espanhol  - vivias/vives(?) na fronteira Brasil Uruguai. E li que usas também o iorubá (serão as expressões e vocábulos que sublinhei e para que não encontro resposta). Desta mistura que adoças com o sotaque brasileiro, sai escrita bem original e interessante. Outra nota de diferença é o nome das cidades onde viveste ou viveram os teus cacos ora partidos – são a cidade com nome de santa; a cidade com nome de ana; e por aí. Nem uma cidade surge com o seu nome natural.

        Há mesmo uma referência a Pessoa (ou julgo eu que o seja) entre as páginas 197/198. Não me parece lisonjeira, mas é bem capaz de ter alguma verdade quanto ao que está encerrado na sua arca que nunca mais esgota. Acho eu que é arca sem fundo. És crítica, muito crítica mesmo; e não só acerca dos negros. Fazes referência a livros e não li sequer um deles; dizes estar enfartada das palavras dos brancos e mudaste a agulha para as dos negros. Mas a literatura é uma só e não tem cor, tem sim particularidades do autor e do que conhece, além do modo pessoal de interpretar a vida que escreve singularmente. Ou talvez eu esteja por demais habituada à leitura de escritores brancos. Mas tu és de cor. Negra. E gostei muito de te ler. Faz de conta que me bateste à porta com este livro e eu digo cá dos fundos, Avante!


Dois excertos a lembrar o teu jeito:


Nenhuma geração negra foi ou é completamente livre. A lei que libertava o ventre do corpo determinava que as crianças permanecessem em poder dos senhores de suas mães até os oito anos de idade. Depois poderiam entregá-las ao governo com direito a indenização ou utilizar seus serviços até os 21 anos. Também nunca aconteceu. Temos senhores ainda hoje. Dentro de nossas próprias casas”


aos dez anos tia Firmina foi internada pela minhavó numa instituição para crianças tortas na cidade do chapéu. (…) Tratava-se de um orfanato. Sinto vergonha de dizer que minha avó que me levava leite e bolachinhas na cama pela manhã, mandou minha tia para um orfanato onde as freiras exigiam que ela fosse uma menina quieta cristã tímida resignada silenciosa ordeira limpa disciplinada ingénua submissa, que fosse um não alguém ou alguém que desejasse viver o mínimo e morrer o máximo. Os desejos que o expaimeu desejava a mim, as freiras dirigiam à tia Firmina.”




sábado, 16 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        De forma nada original, o meu aniversário acontece uma vez em cada ano. Casualmente, tive uma surpresa agradável: deram-me “Louças de Família”, o primeiro livro de Eliane Marques, uma linda e cuidada mulher Afro-brasileira. As escritoras de hoje são assim: reúnem beleza, talento e aptidões várias. Esta jovem, que ganhou um prémio com a obra, é poeta, tradutora, psicanalista e coordena duas editoras. Como arranja tempo para tanto, só ela sabe.

        “Louças de família”, portentosa denúncia da subalternidade do mundo negro, narra a inglória vida das mulheres negras desde o presente racista e musculado até recuadas épocas de escravatura das tetravós. A trama, por analepse e outras figuras de estilo, desenrola a genealogia da trabalhosa e humilhante negritude familiar por lado de mãe e pai; e os homens ficam muito mal na fotografia. Tal condição bastaria para despertar o meu interesse. Reconheço o talvez preconceito: agradam-me obras de mulheres que denunciam a bota masculina sempre pronta a espezinhar (a despropósito, lembrei o quadro de Paula Rego onde uma criança de olhar meio perverso limpa a bota do pai, um possível GNR). Mas Eliane faz mais, muito mais que dar a ver o que ela julga pertença da relação masculino-feminino entre negros e é afinal coisa muito mais vasta e espalhada pelos quatro cantos do mundo, qualquer que seja o credo ou a cor da pele. O benefício sempre escolhe o lado do mais forte, é da História.

        O título, “Louças de família”, recorda uma telenovela brasileira, “Laços de família”. E induz em erro: a gente repara-o e pensa em louças talvez bonitas e valiosas, uns limoges de estimação, por exemplo; ou, em ímpeto nacionalista, peças de Vista Alegre com pergaminho e as inevitáveis rachaduras a fazer pendant; os monárquicos pensarão em loiça fina, heráldica - brasonada ou mesmo com coroa, onde um possível rei teria arrotado bifes do lombo e outras mordomias de ignaro nome. Nada disso. As louças de família são as empregadas pretas que passam de pais para filhos. Ai Eliane, Eliane, pensas tu que só às negras acontecia. Sabes lá o que se passava no mundo só de brancos de que tanto escarneces - ignoras mesmo, ou é assunto extra livro?!; sabes lá tu quanto branco de obediência feito fica fora desse coágulo de senhorinhas e doutores que nada fazem além de mandar e ser senhores. A “loiça” de Eliane são as negras que vão junto com o enxoval, se e quando a “menina” ou o “menino” casam. “Loiça”, são essas criaditas que nasceram na casa (ou quase), filhas legítimas ou ilegítimas de criadas mais velhas, seres que crescem sem escolaridade, mas vão buscar os meninos ao colégio e aprendem cedo a obediência à tirania infantil como se a dos senhores não bastasse. Utensílio imprescindível, seguem com eles para a vida de casados. Ocupadíssimas a criar filhos e filhos de filhos, muitas ficam solteiras. Dão por si velhas, os patrõezinhos mais novos crescidos e sem as quererem por perto que só estorvam. Mas elas, que nunca foram mães, guardam no coração os ternos momentos em que eram para eles o que as mães não foram. Algumas não guardam nada, Eliane, vê tu a perfídia que a tua colega escritora concebeu emCanção Doce”.

        Curioso é a protagonista do teu livro ser também uma odienta, uma insatisfeita que cresce do lado da fuga, do não querer ser como as outras mulheres da família. Mas não é uma “Canção Doce”, antes denuncia e rema contra toda a corrente que acarrete a sujeição humilhante de que foge desde cedo. Matar um pai asqueroso não é igual a matar duas crianças inocentes. Digo eu.

        Posso estar enganada, mas encontrei tanta semelhança entre as tuas negras e as minhas brancas que não sei mesmo, se igual dom nos bafejasse, qual de nós duas faria a história mais pungente sobre as mulheres que lhe pertencem. Tu inventaste as tuas. Eu vivo com as minhas.

(cont.)

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Dulce Maria Cardoso

 

        De novo fui ouvir Dulce Maria Cardoso. Quando a conheci no CCB, fazia par com Fernando Pinto Amaral e já não recordo o assunto que estava sobre a mesa. Dulce vestia cetim, tinha um ar muito cuidado, o cabelo bastante curto; parecia uma mulher-garota de luxo. Então, julguei-a uma menina-bem que eu distinguia nas letras portuguesas aceitando-lhe sem reservas a qualidade. A assistência era minimalista, quase tive pena dos oradores. A Dulce que agora escutei era outra: o cabelo grisalho e meio ondulado e a pele limpa e sem rugas espelhavam a humanidade próxima que não conseguira detectar no nosso primeiro encontro. Acresce que transpirava serenidade. Digo sem certezas, pareceu-me ter laivos de nostalgia.

        Anos volvidos, a Dulce voltou à minha vida, publicava de vez em quando na Visão a sua “autobiografia não autorizada” que comparei às crónicas de Lobo Antunes e me agradavam da mesma forma. Era outro estilo, mas luzia nelas a qualidade de primeira água. Guardei ambos em dossiers antigos que antes serviram a testes e lições. Um dia, se para tanto haja tempo, vou relê-los.

        Bom, em verdade, a Dulce não me abandonava. Comprava-lhe os livros e a minha amiga dilecta ofereceu-me um (falta-me o primeiro). E ficava a braços com mulheres tão iguais a nós, tão cheias de serem comuns, corriqueiras, tão eu noutra pele, a vulgaridade sempre presente. Confundia-me a sua capacidade para recriar ambientes que conjugavam na perfeição com gente de carne e osso que cruzamos nos corredores da vida. Comovia-me a análise desapaixonada, certeira nos gestos como no pensamento, a descrição de lugares onde cabemos, de pessoas em que defeitos e manias estão sempre de mão de fora. Comovia-me e ainda me comove. Os livros da Dulce são um exercício do sofrimento feminino acerca do qual não faz conversa, mas plasma em escrita corrida de quotidianos repletos de mas. Quase tudo que conheço na obra da Dulce me soa a denúncia e desencontro. Ah! O sonho! Sempre o sonho de quem quer endireitar o mundo pela palavra.

        Desta vez, entrevistada por Maria Flor Pedroso, a Dulce foi muito crítica – parece-me até que a veia crítica lhe aguça o engenho para melhor descrever as suas mulheres e os problemas que as extravasam, quiçá as originam tal como são. Ser sujeito crítico exige ampla visão de conjunto, e ela tem-na. Instada, discorreu sobre a impreparação do povo para a democracia que foi “à portuguesa” e cujos frutos são hoje mais ou menos amargos. Contou uma ou outra história engraçada como é de tom fazer em sessões desta natureza. Inquirida sobre um novo livro, respondeu apenas que não faz livros a metro, não é uma autora de muitos livros. Que, embora “Eliete” suponha uma continuação, ela ainda não existe, vai ter de pensar tudo de novo, já que, no interregno, o mundo mudou e os seus personagens são do mundo. E justificou, “acompanhar a mãe com demência, ser sua cuidadora até à morte, não é compatível com a escrita de um livro; depois disso, eu mesma tive que me recriar, viver a situação, esgotou-me” (lembrei o termo exaurida). Julgo ter entendido melhor o olhar que a Dulce tem agora e é tão mais bonito.

        Foi uma sessão extraordinária. A autora apresentou sem subterfúgios o seu modo de ver o mundo e abordar os problemas; tocou brevemente em algumas memórias bem humoradas; mostrou-se humana e íntegra. Já não encontrava isto há tanto tempo!


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Martha Freud (?)

 

        Bom. Depois do balde de água gelada que foi, para alguns, o resultado das eleições. Depois de os benfiquistas o sofrerem duplamente (sim, a clubite futebolística em Portugal é tão ou mais rotunda que um resultado de eleições desta natureza). Depois de me habituar – de novo – a ser doente e, mais ou menos, deixar de me preocupar com isso. Depois da lei seca que foi não escrever ou escrever o mínimo. Depois de treinar com afinco a mão esquerda e verificar o fraco resultado. Depois de pormenores que não cabem num post. Depois de tudo isso, resolvi-me pela retoma de actividades. E seja o que Deus quiser.

        Portanto...andava eu às voltas com Martha Freud quando fui abalroada. Antes de continuar, devo garantir que preferia não ter lido este livro. Parece-me preferível uma suposição sem fundamento palpável (Freud não seria flor que se cheirasse) a uma quase certeza de tanto defeito numa única pessoa. Ah! É claro que poderão dizer-me banalidades como “ a verdade acima de tudo”. Qual verdade?! Quem é que pode impedir-me de, em determinadas circunstâncias, preferir a ficção à verdade. Ninguém pode. E nem eu deixo. A ficção salva-nos da crueza e mesmo crueldade do real. Se não fora o poder da imaginação, não sei o que seria de nós. De mim, pronto. A realidade tem um sinal mais tão possante que poderia destruir-nos, partir-nos em pedaços sem conserto possível. E é verdade que nos destrói e faz em cacos que só o imaginário pode colar. O imaginário é a nossa aura de luz, uma ressurreição dos mortos que nos eleva da terra tal qual vimos no catecismo católico; a única possível nesta vida.

        Digo eu que esta Martha é uma mulher ressabiada, já nada em Freud lhe agrada. Mulheres existem que guardam dos homens com quem viveram uma vida, memórias gratas e ingratas. Parece-me isto natural, ninguém está incólume, o bem e o mal não existem separados pertencem ao que é humano. Porém, das teorias freudianas, passando por filhos e amigos, até à relação matrimonial, tudo fracassa. Freud é um pai desligado e com filhos preferidos e o oposto; segundo Martha é causa do transtorno de alguns e sempre lhe calhou (a ela) a educação e vigilância dos filhos ainda que, pelo que conta acerca das viagens que fez, entendamos que nem ela esteve tão presente na vida dos filhos quanto seria desejável. De qualquer modo, o que Freud nos diz sobre o casamento com Martha é redutor, “tem a casa em ordem, trata dos filhos e poucas vezes esteve doente”; portanto, conclui que teve sorte. Aos amigos parece que acabou por atraiçoar afirmando como suas teorias formuladas por eles em primeira mão. E, segundo ela - que afirma não concordar com as teorias freudianas -, as grandes e íntimas amizades de Freud eram de teor homossexual ainda que sem expressão física. É forte esta afirmação. Surge-me descabida e contraditória em quem não crê em teorias sobre a importância da sexualidade! Mas é um facto que Freud se indisponibilizou com vários amigos que antes lhe pareciam almas gémeas. De tudo o que li, abismou-me que o caso de Ana O, sobejamente conhecido e relatado nos manuais escolares, não tenha sido um caso de Freud, mas apenas contado por ele. Não abona o psicanalista; nem a pretensa Martha (julgo que a verdadeira Martha foi muito mais digna que a do livro: nada escreveu).

        E depois há as adições. O vício do tabaco que viria a matá-lo; a cocaína que inalava supondo-se que seria para estudo de si mesmo sob tal efeito; ou para lhe dar não sei que poderes. Não posso deixar de pensar no que me disse um amigo de longa data, “há muito psicólogo e psiquiatra que ingressa no curso porque pretende estudar-se a si mesmo”. Admito que possa ser uma razão. Aceito que a compreensão pessoal seja porta para a compreensão dos outros. Mas parece-me um tanto esquizofrénico imaginar o solipsismo profissional como único interesse.

        Hoje não me parece que os psicanalistas sejam uma espécie de deus para os pacientes. Será que Freud se sentia um deus durante as consultas?! Mas não gostaremos todos de ser um deus em ponto pequeno para alguém?! Não sei, por exemplo, se um professor não gosta de experimentar esse poder sobre os alunos. Porém, a Martha do livro retira o tapete ao psicanalista quando analisa os casos que teve e lhes atribui – pelo menos à maioria - mau fim. As suas pacientes suicidam-se, não têm cura sustentável, e outros eteceteras. Esta Martha é arrasadora. A verdadeira pode ter sido uma sofredora. Que sabemos nós?!

        Mas é indubitável: as teorias de Freud permanecem um marco. Criticáveis, mas, para sempre, um marco. O preço, alguém o pagou. Tudo tem o seu preço.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Martha Freud (?)

 

        A primeira vez que ouvi falar de Freud tinha dezassete anos e gostava um imenso do professor de Psicologia. Era uma personalidade singular: se nos olhava, via-nos realmente; nesse momento éramos o mais importante para ele e, apesar dos óculos muito graduados, lá no fundo das lentes havia uns olhos iguais aos de ninguém, todos humanidade derramada. O meu professor de psicologia era um sujeito baixinho, magro, sempre de invariável fato cinzento; tinha boca pequenina e parecia fazer um biquinho quando falava porque tinha uns dentinhos para a frente e ligeiramente encavalitados; era e ainda é em mim uma figura adorável. Muito querido e respeitado por todos os alunos, entre nós era carinhosamente tratado pelo diminutivo do apelido. Dava aulas como só ele sabia e usava de rigor nas apreciações e classificações. A nota de psicologia aferia a medida do bom aluno. Já não recordo o seu primeiro nome. Mas nenhum outro mestre se imiscuiu tão dentro de mim. Quando adoeci gravemente, foi visitar-me, acção que me encheria de espanto se estivesse no meu juízo perfeito, e foi exclamativa figura de estilo para as freirinhas. Não me levou flores, nem doces; antes desenterrou um subsídio escolar extra e, quando fui incapaz de assinar o papel a confirmar o que me tinha sido entregue, guardou-o no bolso e sorriu a dar-me palmadinhas na consternação, “não tem importância”. Por acaso ou bondade divina, assistiu-me a duas ou três aflições. Numa delas, levou-me com ele a beber uma bica. Suponho ter sido a minha estreia em cafés e em bicas. Concluo hoje que era alguém inteiramente capaz de se pôr no lugar da outra pessoa; daí saber sempre como agir. Aquela ida ao café, dada a minha circunstância, foi superiormente adequada.

        Bom. Tanto deitar de conversa fora veio a propósito do último livro que me ofereceram, Autobiografia não escrita de Martha Freud, de Teolinda Gersão. Ora o termo Freud lembra-me as aulas de psicologia. Daí este parêntesis que durou um enorme parágrafo, indicador da minha infinita gratidão e respeito. 

        Voltando ao tema: estou perto de terminar a leitura da obra. O certo é que sempre me intrigou a relação entre Martha e Freud. Não por curiosidade feminina, ou sequer por saber dela algum pormenor. Basta olhar fotos de Freud e ler as suas teorias para reconhecer que não terá sido uma pessoa de convívio fácil. Ignorante de tudo, dizia eu para os meus botões, grande paciência terá tido aquela mulher. E agora, Teolinda resolveu escrever sobre ela a partir das cartas dele. Quem sabe, a escritora foi dominada por idênticas perplexidades. E resolveu dar o corpo ao manifesto, pesquisar as cartas de Freud e mais os livros que descrevem aspectos da sua vida pessoal. O romance (muito pouco romanesco) é sem dúvida um grande trabalho de investigação a partir do qual nasce essa autobiografada de nome Martha, e que é namorada, noiva, mulher de Freud; e lhe sobrevive. Estou em crer que o pioneiro do inconsciente como impulsionador da acção era um despotazinho que fazia mau viver. Ciumento incurável - e logo inseguro -, exigindo à noiva simbioses ideais e despersonalizantes, bastante contraditório nas suas afirmações. De acordo com as cartas, e apesar dos seis filhos, não nos aparece como pessoa muito motivada para o sexo. A pseudo Martha afirma que o marido o considerava mesmo como causa de uma série de males (do que lhe estudei, tinha interpretado que só o mau sexo ou a falta dele seriam motivo de distúrbio). É claro que nenhum de nós sabe se esta Martha coincide com a do realmente. Pronto, é um romance. O que sabemos, vem-nos da Martha de Teolinda misturada com o que se adivinha da Martha mulher de Freud, a partir das cartas do pai da psicanálise. Essa Martha, parcialmente criada pela escritora, surge-nos como “pessoa comum” e dentro desse “ser comum”, irrompe perfeita. Interroga na hora certa e interroga-se; nunca se diminui a si mesma, mesmo se aparenta tal ou cede às obsoletas exigências freudianas; tem sempre o pensamento certo perante os erros cometidos pelo marido em relação a si mesma ou aos que lhe são queridos. E foi imensamente cerceada nas suas aspirações e desejos pelo tirano Freud que apenas pensava em si mesmo e nas suas teorias e trabalhos.

        Sobre as paixões e adições de Freud ainda há o que dizer. E mais. Portanto, mal tenha uma aberta nas tendinites e bursites e o liquido não sei onde que me tira o sono, mais o raio que os partam, cá estarei a contar.

Entretanto, fiquem com Deus e os anjos dEle e nossos.

segunda-feira, 10 de março de 2025

A Essência Cheira a Tangerina

 

        Quando li pela primeira vez Claire Keegan, “Pequenas coisas como estas” maravilhou-me. A história recupera a simplicidade que admirava e me prendia, qual fio de Ariadne, aos contos orais, passados de geração em geração, por gente não alfabetizada e que neles ilustrava a integridade. Gente que os contava como verdades antigas, de valor indubitável, nada de fantasia astuciosa. Os contos acompanhavam-nos a infância e os personagens encorpavam, faziam-se carne e osso, sofriam “as passas do Algarve”, entravam em aventuras maravilhosas e temerárias e podiam ser felizes como anjos. Eram modelares, ensinavam-nos sobre a vida que pouco sabíamos. Existiam-nos mais que os membros da família a quem se escreviam cartas: tios, primos, avós que desconhecíamos e de quem não sabíamos a história. Um dia, seríamos parecidos a essas figuras contadas e que sentíamos próximas.

        Adulta a cair de podre, a leitura de tal livro foi janela que se abriu a odor cítrico. A obra cria no leitor a convicção benevolente de sentimentos ancorados em princípios de justeza e respeito pelos outros que se contrapõem à sugestão de raivosas injustiças que, superando a descrição, despertam o imaginário do leitor e são leit motiv do fascínio que o empurra a prosseguir a leitura. De algum modo, paira por lá a eterna luta entre bem e mal, o conflito entre os ditames da consciência e as ordens peremptórias do bem parecer e do bem estar familiar que a realidade exige ao personagem principal, um Cillian Murphy muito convincente, em degladiação interna (o acto de lavar as mãos arrepia), de tom pausado e verbo curto. Será, afirma ou pensa o leitor contemporâneo, o senão do livro; a vida não é a preto e branco, entre bem e mal há muita nuance, o mundo dos cinzas é retumbante e “Pequenas coisas como estas” ignora-o.

        Tem razão, esse leitor. E não tem. Existem situações a que o cinzento se exime (ou deve). Ponderações de branco ou preto. Decisões que nos levam a pele.

        Lembrei Elisabeth Strout quando vi o filme baseado no livro. Porque também ela escreve simples. E por haver nas suas obras a expansão de sentimentos bons. Não que a escritora ignore o outro lado da lua e falseie a vida (toda a escrita a falseia - que bom! - já que é incapaz de dar conta dela tal como acontece), mas sabe contar histórias. Leio-a e suponho que os livros sejam a tentativa que faz para endireitar o mundo. Como Claire Keegan. Ambas apelam à humanidade que existe em cada um e, a seu modo diferenciado, o bem prevalece. Ora isto – até agora - não foi a norma de finais do século XX e nem do XXI que já houve. Em geral, os autores comprazem-se na violência e outros itens bastante reais do mal estar humano. Muito do romanesco explora esses filões sem lhes dar fim. Neles não pode existir um homem capaz de carregar nas costas uma rapariga maltratada, sabendo que esse preciso gesto, à vista de todos, decerto lhe altera o bem estar, o afecta pessoalmente e a toda a família. Pergunto-me se não estaremos a precisar de romances desta natureza, que chamem por nós e pela nossa humanidade. Que, essencialmente, nos façam ter esperança no ser humano. Talvez seja uma das portas para o sucesso que bafejou as duas escritoras.

        E, contudo, porém, todavia, não gostei o suficiente do último romance de Elisabeth Strout. Parecia que ia ser tão bom, não era?! Talvez para outra gente o seja. Fica o parecer de andorinha buraqueira.

sábado, 27 de abril de 2024

"As primas" e o mais

  Foi no blogue Horas Extraordinárias de Maria do Rosário Pedreira, que alguém respondeu a um comentário que ali deixei sobre a quase impossibilidade de um(a) velho(a) desconhecido(a) publicar obra. Dizia pois o(a) extraordinário(a) que havia vários exemplos em contrário e nomeava até alguns que ganharam prémios em provecta idade e se tornaram conhecidos a partir deles. Ficou-me o nome de Aurora Venturini, que ganhou um prémio aos 85 anos. Acontece que, por mero acaso, andava eu vasculhando títulos que me despertassem para de seguida ler alguma coisa, quando me caíram debaixo dos olhos dois livros da dita autora. Um pouco indecisa acerca da escolha, optei por  "As primas" ( já esqueci o outro título). Era o livro premiado. Mas, e muito mais importante para mim, a leitura fez-me sorrir. É uma mente aparentemente desenfreada, contando um certo período de uma família disfuncional. O acervo mental pertence a um dos membros da família, também vítima de certa anormalidade, da qual, progressivamente, se irá assenhoreando (domando). Devo a descoberta ao blogue de Maria do Rosário Pedreira. Um grande bem haja para ela, extensivo a quem me comentou.  Hoje responderia ao comentário que me foi feito  -  na altura, por desconhecer os tais velhos que escreviam primeiras obras e eram publicadas e ganhavam prémios e tal, não me pareceu possuir argumentos além do reconhecimento de serem migalha num mar de pão. Diria, por exemplo, que Aurora Venturini publicou imenso antes do tal prémio, não foi obra de estreia. Quando aos 85 anos recebeu o prémio, afirmou meio trocista, "enfim, um júri honesto"(aviso: não sei se fui textual). 

O livro é pequeno, de alguma forma alegre e bem disposto, sarcástico e cáustico qb por via de uma ingenuidade tocante e um pouco adolescente no linguajar, factor que se vai diluindo ao longo da obra. Ou seja, por motivos que não divulgo, a narração da história acompanha a evolução física e sobretudo mental da escrevente. Só quando li o primeiro livro de Sue Townsend "O Diário Secreto de Adrian Mole aos treze anos e 3/4" me senti tão fulgurantemente bem disposta. Mas este livro diz-me mais e, não sendo despicienda a idade da senhora, os temas que aborda desassombrada, existem. A paisagem muda, mas somos cada vez mais os mesmos.

Eu podia contar a história, deixar aqui algumas frases do livro, mas podem crer, perdia toda a graça. Congratulo-me por nunca ler os prólogos senão depois de terminar o livro, abomino saber coisas sobre, rouba-me logo a surpresa. Leiam e divirtam-se.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

A Breve Vida das Flores

  Bom, visto que já falei da predisposição da autora para o optmismo, passo a umas pinceladas do livro que talvez não agrade a muita gente, mas eu gostei. Digamos que a personagem, foi criada em famílias de acolhimento e a escola pouco lhe disse. Fez como tanta gente, entrou no mundo de trabalho. E, garota principiante, empregou-se num bar. Daí a uma relação amorosa, caída de paixão por alguém cujo corpo era extraordinariamente apelativo, foi um pulinho. Supomos que ele fora tão mau estudante quanto ela, embora tivesse ido mai longe, e verificamos que se tornam uma dupla, casam e se estabelecem como guardas de passagem de nível. Da última passagem de nível a fechar. A jovem fazia todo o trabalho; nas palavras da mulher, o marido apenas servia para montar a mota e as amantes.

Sem emprego, e depois de algumas peripécias que só conhecemos a meio do livro cuja escrita anda para trás e para a frente como máquina bem oleada. Cada personagem é vista panorâmica mas também individualizada,  aceitam ser guardas de cemitério numa aldeia, lugar que lhes dava uma casa. Mas o que a ela parece bem, a ele parece tétrico e cada vez são maiores os períodos de  ausência, facto a que a mulher é grata: permite-lhe construir o seu mundo externo e interno tornando-se duas, a mulher pública que todos conhecem e usa tons neutros e escuros em consonância com o cargo; e  a mulher íntima que usa vermelhos, amarelos cores de rosa. Trata os mortos com respeito e tem um caderno onde descreve a cerimónia funerária de cada um. É ali que faz os primeiros amigos da sua vida: Os três coveiros, os três irmãos da funerária, e a funcionária do supermercado local. E um amigo especial de nome Sasha. Ele abomina tudo: o lugar, os mortos, as amizades da mulher. Todo o livro beneficia do bom humor da autora, nos nomes das pessoas, nos gostos que têm, nas suas características. E, como a acção decorre em França, há, é claro, uma senhora Pinto a visitar o marido no cemitério de Violette, a nossa heroína. É muito peculiar.

Pode parecer que conto tudo, mas acreditem que não. Faltam personagens importantes. Muito importantes. Falta o dom de Valérie Perrin a transformar tudo, falta o seu desabafo-queixa "partiste e levaste tudo de mim", a sua dor louca e a lenta capacidade de recuperação que traz dentro de si. Na verdade é tudo isso que desejo que descubram. 

Basta ler.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

A Breve Vida das Flores

  Acabei há dias a leitura de "A Breve Vida das Flores". Ok, já sei que saiu um terceiro livro, denominado "Três" e que ofereci sem o ler "les Oubliés du dimanche" o primeiro livro de Valérie Perrin. Acrescento que, quer a oferta, quer a aquisição em meu benefício foram pura intuição - desconhecia autora, assunto e outros eteceteras, não leio capas nem contracapas senão depois de concluída a leitura e não faço pesquisas. Vou para um livro como para um filme, em estado virginal. Desta vez, nem sequer o folheei. Comprei "Os Esquecidos de domingo" e pensei que iria adquirir este numa próxima vez. Que bom haver ainda restos de Natal em Abril.

A primeira coisa que pensei acerca do livro não foi sobre ele, mas sobre a autora. Nessa altura tinha lido apenas umas dez a doze páginas antes de adormecer. Pensei e confirmei pelo seguimento da história - o livro tem mais de quatrocentas páginas -, que a escritora é uma mulher feliz. Só quem é feliz consegue entretecer de forma tão agradável as maiores desgraças que acontecem à protagonista sem que a mesma esteja a lamuriar-se por falta disto e daquilo, que no seu caso é mesmo tudo, ou o tudo que mais importa. 

  Gostei do livro. Gostei eu e muita gente por esse mundo fora, está super traduzido. Mas, querendo saber pormenores do que me agradou, terão de voltar aqui numa próxima; talvez domingo ou Segunda. Ou noutro dia. Valérie Perrin merece a minha atenção e não estou capaz. Um nirvana qualquer, estado de graça ou cessação de sofrimento, dava-me um jeitão. Vou ver se o encontro. Até logo.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Do Imaginário (e mais coisas)

 

Pois é verdade: encontro-me sem assunto para postar o que seja, facto em mim cada vez mais frequente. Nada me cativa. Podem dizer, ah! Então e o mundo grande e imenso, a ecologia, as questões religiosas que vendo bem são quase sempre outra coisa, as horrendas guerras, a primavera e as florinhas e mais este friozinho parvo, o não sei dos quantos da quinta ou dos agricultores ou lá que é. Eis que, num súbito relâmpago (relâmpago de leitura, note-se), vi no Horas Extraordinárias de Maria do Rosário Pedreira, senhora que estimo pela perseverança na escrita diária em sua janela, lugar bem à vista de toda a gente e onde, opiniosa e opinativa, afixa livro sobre livro; dizia eu que ali me foi dado saber de certa escritora avançada na idade que escreveu um livro acerca das seniores (só quatro ou cinco) desta vida. Cito: “«Não é todos os dias — nem todos os anos — que se encontra uma estreia tão fresca, segura e divertida como Escovar a Gata», disse o New York Times, um livro sobre o mundo sensual das mulheres mais velhas escrito por Jane Campbell à beira de fazer oitenta anos.“ Como poderão verificar in loco, este é o início do post. E eu, que envelheço e me aprumo nesse mundo senior barra velho, digo que as escritoras têm uma imaginação muito translúcida. Ou sou uma anormal (paciência, cada um é ele e já está). 

Existem montes de compradores e amáveis leitores e leitoras? Belíssimo. Mas leiam o livro como um romance, coisa fictícia, façam-me o favor. Isto é, divirtam-se com a imaginação delirante da senhora, o seu sentido de humor e drama (pois, também há drama; como na vida), o prazer de lê-la sabendo que tem oitenta anos e consegue uma escrita sensual a partir de uma gata e outros pormenores que só a leitura desvelará; porque não o li, abstenho-me - abster não é bem o termo, mas não me ocorre outro. Julgo que é uma velhota marota, que sabe da poda (leia-se da escrita) e se diverte criando cenas. Isso, cenas. Estou em crer que vou comprar o livro. Por me parecer divertido; e porque, aos oitenta anos, a juventude que o corpo não tem mora-lhe de certeza na alma. Só espero que tal contradição não lhe traga problemas de maior, a oposição de sentires na dualidade corpo/alma foi estrafegada por filósofos de toda a raça e tempo, cada um com suas razões, o que leva o comum leitor a mandá-los dar de beber ao gado, eximindo-se de opinião. Ou, sendo mais dado à reflexão, cria teoria muito sua, uma filosofia pessoal dá sempre jeito, desconcerta o interlocutor, pessoa bem capaz de pensar enquanto ele arenga, é pá devo ter saltado folhas nos compêndios. E intimamente deseja que o outro não detecte a sua ignorância. Pois fiquem certos, pode isto acontecer. A quem? Ora, a pessoas “comamim” que têm uma bolha de água salobra dentro das meninges e caem que nem patos na pêta mais parva e desconchavada que existe.

E nem preciso tanta palavra num post. Portanto, comprem o livro que a gente precisa rir, ou ao menos sorrir (a parte dramática lemos em corrida, para não fazer mossa). Entretanto, vou ali. Missão cumprida. Ou será antes comprida?!

 

domingo, 10 de março de 2024

Invariâncias do Acaso

 

O Diário e as Cartas dizem da mulher. Mas também li três ou quatro livros de Virgínia. E ainda comprei duas vezes o mesmo livro - "Um quarto só seu" (palerma! Com tanto livro que há, tinhas de comprar duas vezes o mesmo). Contudo, não deixo de pensar que a publicação de cartas (não interessa remetente ou destinatário) é deitá-las sobre a mesa da vida, à esparavela do mundo; rasgar um corpo e alma que se deu a uma só pessoa, abri-lo de alto abaixo e abandoná-lo às mundanas varejeiras. São íntimas; e depois?!  

Todas as cartas merecem um respeito indefinido e infinito, nelas não há apenas a letra e o tempo de quem escreveu, há quem escreveu. Mas a correspondência amorosa é, na essência, diferente; regista um tu a tu que pede recato e merece ser inviolável a terceiros que as não entendem nunca do mesmo modo que as entendeu o sujeito  a quem foram dirigidas. Porque esse sujeito tem com o escriba uma relação significante, que vai muito para lá da palavra. Assim aconteceu entre Vita e Virgínia; quiçá, entre Virgínia e Leonard.  Afinal quem somos nós/eu para sabermos o significado profundo dos arabescos que lemos?! Nós conhecemos - mal -  a exterioridade de ambas as correspondentes e ousamos penetrar num mundo particular e apenas seu. Quantos de nós sabemos as vezes que  Virgínia leu as cartas de Vita? O que sabemos dos sentimentos e emoções que a assolaram ao reler passagens que reportam lembranças que só ambas reconhecem? As cartas de amor não são para ser lidas senão pelos amantes, porque é essa certeza de comunhão biunívoca que possibilita limiares de intimidade através de signos. Mas, ó contradição, tanto gostei de lê-las.

segunda-feira, 4 de março de 2024

Invariâncias do Acaso

 

Vita foi mulher de muitos amores, homo e hetero. Suponho que por temperamento e condição fidalga, além de pertença a um grupo social e intelectual onde era bem aceite. Segundo mentes moralizantes, cedia aos desvarios da carne. Ou antes seria modo de ser, traço de personalidade. Consta que Harold, o marido, também preferia homens e que o casamento de ambos era uma relação aberta e onde o divórcio não cabia, quem sabe se pela dificuldade que a possível separação traria aos dois: no estado de casados, cada um se sabia mais livre. Do que se entende nas cartas - de Vita para Harold – a relação entre ambos ancorava na estima mútua. Porém, nessas mesmas, o caso Vita-Virgínia aparece como um misto de curiosidade e admiração por um ser frágil e doce, quase ingénuo, que Vita garante ser diferente do que Harold julga. E agita a bandeira, “é coisa platónica”. Porém, as cartas que dirige a Virgínia desmentem essa ideia hipoteticamente inicial e que o leitor pode subentender e admitir apenas como limiar, Vita não coaduna com a dama convertida ao platonismo; ou terá função de subterfúgio apaziguador.  

O caso de Virgínia é diverso. Parece não ter consumado o casamento com Leonard (há quem tenha apresentado como motivo o abuso familiar em criança). Mister Woolf foi  companheiro de alma e literatura, conhecia-a como ninguém e tinha por ela a ternura comovente que o faz empático ao leitor. Cuidou da sua flor o melhor que soube. Tratou-a amorosamente na doença e na vida - passeava-a pelos campos, trabalhavam juntos na editora, viajavam juntos. Imagino que Virgínia lhe dava a ler ensaios e romances. Mister Woolf foi o companheiro presente.

Pergunto-me se haveria outro caminho para Virgínia.  Lendo a carta de despedida que endereçou a Leonard, as possibilidades parecem esgotadas.  E Virgínia termina, “não creio que duas pessoas pudessem ser mais felizes que nós”. É uma despedida ponteada a luz, embora a autora afirme a dificuldade em conseguir ler, empecilho do aprumo na escrita (como se enferme de algum erro!). Será verdadeira a afirmação acerca da felicidade conjugal,  ou obedece à estima amorosa, sempre revelada a Leonard, e ao desejo profundo de o libertar de possível remorso?! Como se um afogamento voluntário não provocasse a natural mexida da água.

(cont.)

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Invariâncias do Acaso

 

Estão mortas. Ambas escritoras e inglesas. Amaram-se na primeira metade do séc XX. Dez anos mais velha, Virgínia foi a primeira a desaparecer e, na altura em que foram apresentadas e não foram simpáticas uma à outra, Vita era mais conhecida. Lidas as cartas, ficamos sabendo mais sobre a personalidade das duas, embora só uma interesse realmente. Nas missivas, a prosa de ambas é arrebatada e terna, culta e de extraordinária beleza.  Acontece nos livros o que acontece na vida, o amador e o ser amado vivem da relação. As cartas são a história de um amor desde o princípio de simpatia mútua e possível atracção posteriores aos primeiros contactos, até à paixão amorosa com tudo o que a faz ganhar peso; mas Virgínia usa de palpável leveza e contenção. À fase da paixão seguiu-se uma provável amizade que as juntou esporadicamente e de que não existirão cartas. Vita terá continuado a borboletear vida fora. De Virgínia pouco sei sob tal aspecto. Mas em tudo o sentimento amoroso me pareceu muito igual a qualquer outro: ali estão a constância no desejo do outro; as pequenas ternuras; a procura da intimidade não apenas física, há muitos encontros a sós para almoçar, jantar, lanchar, e não apenas na casa de uma ou de outra; a integridade peremptória de Virgínia que desde o início rejeitou presentes da amante rica e de berço fidalgo, a par da sua fidelidade ao trabalho na editora como fonte de rendimento. Porém, o certo é que Vita escreveu o que hoje se chamariam best sellers e que a Hogarth Press passou a ser a sua editora. As vendas permitiram aos editores a compra de um carro e outros artefactos que decerto aliviaram as contas de Virgínia e lhe aligeiraram a vida.

Imagino que Vita foi mais em/para Virgínia que o inverso. Mas que sabemos nós do que vai no coração dos outros. Talvez Vita encontrasse em Virgínia uma espécie de pérola rara ainda fechada em sua concha. Existiram. Houve um tempo que foi delas. Isso sabemos.

         O que a gente gosta nos outros, santo Deus. Virgínia tinha fascínio pelas pernas de Vita, suspendia-se-lhe o pensamento (imagino) na sua vitalidade, colunas de alabastro de onde o tronco emergia. Ambas lésbicas. Ambas casadas. Mas o amor é sempre o mesmo, a homossexualidade só no acto físico se faz diversa. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Invariâncias do Acaso

 

Em minha casa desagua tudo que os filhos não querem, não precisam, desgostam ou a que não vêem utilidade. A mãe guarda. A mãe não atira fora. Quando a mãe desapareça vão decerto maldizê-la pela tralha que guardou. As fotos de/com antigas namoradas de que a mãe continua a gostar, mas os filhos desgostaram; as poucas cartas que existem e me estenderam desprendidos: "atira fora" -  cartas com letrinha escolar e que os sms substituíram inflados de novidade e superficial leveza, isentando o arquivo. Nas cartas - folhas A4 pautadas ainda com sinais de dossiê de argolas -, estão as mágoas, o ciúme adolescente, os pedidos de desculpa e o "môr" repetidíssimo. E é isto, faz parte da função parental.

Há uns meses ficou a criar lastro uma caixa de livros.  Olhando-os por alto, assim como quem não quer nada, vi "Cartas de Amor, Virgínia Woolf e Vita Sackville-West".  Retirei-o para leitura pressurosa.

 Aprecio a escrita de Virgínia, o seu Diário não desmente a raridade da escritora. E gosto da pessoa - com ou sem Vita. Fiquei sabendo pelas cartas que Orlando é Vita chapadíssima. Chapadíssima, não; antes animada pelo amor de Virgínia. Não diria que foi um amor casto, mas Virgínia é recatada até na paixão; e não é necessário chegar a meio do livro para sabermos que Vita é explosiva e livre no verbo enquanto Virgínia é deliciosamente frágil e sucinta. Mas aprendemos também que o "queridíssima criatura" tem nela uma fundura de sentimento que sobrepõe a verve torrencial de Vita.    Além do mais, constitui factor de sedução ler uma mulher que viveu e criou obra tão à frente da época. Nem por isso bonita mulher. Mas, entre outros factores apelativos, saliento o facto de sempre ter trabalhado; e, por fidelidade a si mesma e às suas convicções, nos livros e outros escritos, deu voz a minorias e também à que, sendo adiposa maioria, era -  ainda é - tratada pela lei e pelo costume dos homens como qualquer minoria: a das mulheres. 

Virgínia escrevia apesar da constância na dor de cabeça e da tenacidade da loucura, talvez duas metades do mesmo problema. O tempo gasto a escrever era gosto a consumi-la, aproximava a doença. De resto, admiro também Mister Woolf, Leonard, companheiro de vida que a entendia como ninguém e com quem Virgínia partilhou o trabalho de edição na editora comum, a Hogarth Press. Comovem-me as tarefas normais na editora a que se dedicavam sem falhas e com prazos a cumprir, os passeios que davam pelos campos, Leonard a tentar distraí-la de si mesma como quem espanta corvos; a justeza das contas no dia a dia e que Virgínia controlava. Virgínia é em mim personagem de romance, só que existiu realmente, tinha um corpo, desejos, saturação disto e daquilo, amores, grandes desalentos e tristezas, a doença mental sempre entrevista e causa do suicídio. Sentindo o aproximar de nova crise e conhecendo que lhe seria fatal em termos de sofrimento e perda de lucidez, Virgínia decidiu parar de sofrer. Esta pessoa, não é a Virgínia Woolf  do meu imaginário. Mas também é. Afinal, mesmo lendo diários e cartas e romances, o que sabemos nós dos outros senão que existem? Quase tudo o resto é imaginário, nós mesmos, sempre nós mesmos.

(cont.)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Vidas a Descoberto

 

Ontem estava uma caixa de livros – bem arrumados e ordenados – à beira do contentor do lixo. Não fui eu a vê-la, mas alguém que a supôs vazia e pensou guardá-la, tinha bom tamanho. Mas continha livros. Quando soube, pedi que ma trouxessem (ninguém a queria e pesava). Quando a abri, mau grado saber-lhe o destino, senti-me como quem entra em casa alheia sem pedir licença, em violação de privacidade. Porque é uma forma de, à revelia do sujeito envolvido, o mesmo se dar ao conhecimento e à exposição. Desconheço-lhes a proveniência, a relação que tinham com os proprietários, mas, pelo conteúdo, a maioria parece ter sido pertença masculina. Repartem-se pelo que suponho serem desenvolvimentos sobre o nazismo, conhecimento da vida e política africana e russa, divulgação de personalidades com nomes estranhos e de que nunca ouvi falar. Ainda não verifiquei que tipo de literatura contêm e se são apenas informativos ou se apresentam ideologicamente formatados. Um ou outro têm assinatura em diagonal, a lembrar a minha própria no dicionário de português, cujo se perpetua em casa de meu pai e a que os meus irmãos, assim como quem não quer nada, apuseram a sua. Não pude evitar um sorriso quando encontrei uma folha de ordenado, em tudo semelhante às que também recebi, mas lavrada numa empresa de que nunca tive notícia. É datada de Julho e não consegue ler-se o ano. Por entre aqueles livros que me parecem de aprofundamento de conhecimentos, e de outros que são sobretudo de natureza política, há três ou quatro romances que não sei situar mas me parecem sem valor, e um livro de Max du Veuzit que na infância li sem compreender o que lia e pensando que a autora era um homem. De modos que ainda hoje não sei se será boa ou má escrita, mas já aprendi que é mulher e escreveu sob pseudónimo, talvez para conseguir vingar.  É bem provável que nessa época julgasse a escrita de romances apanágio dos homens; Na minha mente, Corín Tellado também pertencia ao género masculino. Avante.

São livros antigos, de folhas amarelecidas. Talvez – mera conjectura - pertença de casal que já não existe ou foi para um lar. Que a mulher lia menos e o conteúdo era bastante mais leve; e que o leitor mais regular decuplicava o número de obras e era muito objectivo nas preferências. No conjunto, existe um único livro de autor(es) português, chama-se “Cultura Portuguesa” e é de Hernani Cidade e Carlos Selvagem, dois homens de valor que lutaram pela liberdade em tempos difíceis. Imagino que houvesse também obras de escritores nacionais. No desmanchar da casa, talvez os filhos - ou quem se entregou à actividade - tenham arrecadado os livros que lhe interessavam e alguns tivessem raiz nacional. Mas, guardado entre as páginas de árido livro, um pequeno tesouro: uma folha. Espessa e ovalada, toda em tom de vermelho escuro. Linda e intacta. Imagino-a a marcar a leitura, a mão a retirá-la ou a poisá-la entre páginas  cuidadosas; ou, quem sabe, um aéreo dedo deslizando na nervura central. Decerto, um marcador de boa memória. 

E, no interior de um romance de Zola, em caligrafia feminina,  encontrei versos: a folha está rasgada, mas foram escritos no próprio livro em Lisboa 2/2/6… Os versinhos, quadras muito simples, estão organizados por números romanos e detêm alguns erros. São ingénuos versos de amor, um amor antigo que mistura Deus e o Menino Jesus com o sentimento de união, muito ao modo de quem foi jovem nos anos cinquenta e sessenta.

Ainda não desvendei toda a caixa, mas já escolhi algumas obras. Hei-de continuar a folheá-las com o respeito que lhes devo e mais a quem pertenceram. Por certo vou encontrar outros sinais da humanidade que os habitou desde a compra. E aqui darei conta:)

Sejam felizes

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Às vezes o Amor

 

"Agora, mesmo no seu silêncio se apercebia o gáudio sôfrego de um cão que acha o seu dono e de novo fareja e rebusca pelos cantos familiares. Quina deixava-o proceder, fingindo não notar que ele tinha fome e que o seu rosto quase imberbe parecia ter sofrido amolgaduras e estava esverdeado de fadiga. Via-o sorrateiramente espreitar num armário, aproveitando a sombra para palpar os restos que,  em velhos pratos de barro, se tinham coberto de um bolor azul e cor de prata, delicado como uma borla de pó de arroz. Ela chamou-o, e Custódio, voltando-se, apresentou a expressão exageradamente inocente de quem disfarça uma culpa; um fio acobreado de doce de cereja corria-lhe devagar, pelo queixo. Quina puxou mais o lenço sobre a boca, e tossiu, cheia de riso. Ali estava aquele rapaz, tolo, belo, fiel e egoísta, não mais responsável do que um sarmento de videira que, esquecido de si, contudo cheio de veemência, vive. Aqueles olhos opacos, que pareciam trespassar todas as coisas sem porém lhes tocar,  como os amava! Os seus cabelos, a que os movimentos imprimiam um constante balanceio de seda desfiada e que mesmo na imobilidade eram possuídos de vibração, esgotante e perene vibração, como os amava! E a sua voz, aquele balbucio indiscreto, vago, tão humano, que soava sempre um pouco como uma surpresa angustiada, um pedido de auxílio, como ela a amava!"

“A Sibila” Editora Relógio d’Água, 35ª edição págs. 210 e 211

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O Ano do Pensamento Mágico

 

O Ano do Pensamento Mágico chegou-me há pouco, por troca de As Velas Ardem até ao Fim, obra adquirida há um ror de anos. Aconcheguei-o dentro da mala de viagem e gastei nele  algumas horas de descanso. Desconhecia a escrita de Joan Didion, mas ficara-me na memória uma entrevista da jornalista e escritora,  visualizada na net à data da morte. Foi ela que me levou ao livro. Em boa hora.

O título da obra, apraz-me dizer, adequa-se ao conteúdo. Existe efectivamente uma idade da infância com essa característica, é a época do pensamento mágico, aquela em que a criança acredita piamente na imaginação e o que imagina surge como real. Baseia-se na crença de que a realidade se pode modificar pela força do imaginário. Quem lê o livro, que descreve um ano especial na vida da autora, entende o que o título condensa. É um livro sobre a perda. Não é, de forma alguma, um livro lamecha ou de autocomiseração. Filtrar tais características foi preocupação constante e referida amiúde. Didion analisa o que sente. Nesses momentos de dor maior, conta-se, evitando causar no leitor as nuances sentimentais que só a ela pertencem. O Ano do Pensamento Mágico trata da narração e análise de uma situação presente com os inevitáveis regressos ao passado que toda a análise exige e, no caso, lhe surgiam espontâneas ou as buscava na premência de ocupar o pensamento. A situação concreta  é a morte súbita do marido. O acontecimento funesto ocorre quando a filha de ambos se encontra também à morte com uma infecção generalizada provocada por uma gripe.

Julgo ser uma das obras mais conhecidas da escritora, e a prova de que não induz à lágrima é que o li em viagem e, se não me fez chorar, também não esmoreceu o interesse. Portanto, recomendo.

Não vou explanar o livro, merece leitura detalhada e individual; é forte em pontas por onde pegar e pode ser abordado sob várias perspectivas. A obra estriba-se em algumas frases que se vão repetindo, expressando perplexidade ou apenas constatação. Há a evidência de que tudo pode mudar de um momento a outro, estás bem e logo deixas de estar; a noção de que será sempre esse o caminho do homem “assim como era, agora e sempre, pelos séculos dos séculos”; a premonição que parece assombrar algumas pessoas acerca da morte, “digo-lhe que não devo durar mais de dois dias”  a mesma de que vai encontrando – a posteriori - sinais no próprio marido. E outras mais que não cito, mas estão expressas.

Mas, o que em mim releva não é somente a admissão vivida na carne dessa mudança súbita, da perda de chão que se abre no momento em que o normal desaparece de supetão, da incompreensão sobre o seguimento da vida depois de desfeito o laço por falta de um elemento. Retive a frase que os unia aos três, a afirmação que o pai segredou à filha antes de a levar ao altar e continuou a segredar-lhe quatro meses depois, no coma, “mais que um dia mais”, recordando o que Audrey Hepburn (lady Marian) disse a Sean Connery (Robin Wood), depois de beberem a poção fatal, “amo-te mais do que um dia mais”;  “Mais do que um dia mais” foi o que Joan continuou a segredar à filha quando o pai já não podia fazê-lo; “Mais do que um dia mais” foi o que a filha citou nas cerimónias fúnebres do pai.

Parece-me que, mal possa, vou ler “Noites Azuis”.

Obrigada, Joan. 

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Casas Contadas

 

Li uma obra de Leonor Xavier sobre as casas que habitou.  “Casas Contadas”. Se não fora o curso que frequento sobre Literatura, Filosofia e Espiritualidade (não percebo bem o que é que a espiritualidade anda a fazer fora da literatura e da filosofia; soa-me mais honesto, tal como se apresenta, dar-lhe o nome de Religião e Moral Católica). E eu que não conheci a senhora, salvo de algumas – poucas – entrevistas que ouvi na rádio e de tê-la visto participar num programa de Tv, simpatizei. É de leitura escorreita, com alma dentro. Vale pela alma. De resto, parece-me que a sua vida foi estilo conto de fadas. Ou ela lhe deu o tom. Bem nascida, muito amada, inteligente, bonita, cheia de vida, uma pessoa intensa e intensamente curiosa. Casou como se casava no seu tempo, mas com a sorte de formarem um casal com muita afinidade. O marido, também inteligente e cheio de futuro, também de boas famílias. Se em solteira tinha casa de férias, não lhe faltou em casada. Como ela mesma afirmou, viveu numa bolha. Em Portugal ou no Brasil. Depois, os filhos (3), as empregadas que sempre teve (não uma, duas), as casas com o quarto e casa de banho da empregada, os amigos, as noites fora ou em casa de amigos. A ida para o Brasil com passagem por Paris onde o casal achou que devia esbanjar um pouco, afinal estava a despedir-se da Europa. Depois, a estadia no país irmão e que também deu certo. Após anos no Brasil, sem dramas, o fim do casamento. A profissão de jornalista que ali descobriu e parece não ter tido dificuldade em encaixar na vida caseira. A sua capacidade de ser próxima das pessoas. A saudade de Portugal e do que deixou. 

As agruras hão-de chegar-lhe em Portugal, após o regresso com os filhos. As dificuldades no jornalismo português, as críticas de que foi alvo, a morte da mãe que sempre a apoiou, a doença.

Que novidade me trouxe Leonor Xavier. Nenhuma. Mas é agradável lê-la. Porque, falando sobre si, não se lamenta e é entusiasta da mudança. Porque sempre preferiu ver o copo meio cheio. Porque, contando tudo, nada diz do que ou de quem lhe foi íntimo. E por ser autêntica. Na sua vida a fé teve, desde sempre, um papel importante. Mas interpretou e adaptou a si regras e normas - mesmo as da sua religião -  que considerava ultrapassadas.

Bom, o meu intuito era escrever sobre as minhas partes gagas (ou será gagás) e saiu isto. Paciência. Sorry.  Fica para uma próxima.

domingo, 13 de junho de 2021

Os teus Passos nas Escadas

 

“Os teus passos nas escadas” é obra que me incentivou desde a foto da contracapa. Não tenho memória de autor a puxar-me tanto ao livro como a foto de António Molina. Deve ser empatia da mais forte. Depois, bem, depois é obra que nos fala de Lisboa com olhos estrangeiros.  Do Tejo e do Hudson. Do nosso mundo pequeno e da efervescência dos Estados Unidos. E já isso bastaria para me fazer comprá-lo. Mas há muito mais. O que ressalta é o amor profundo de um homem de meia idade - adopta o termo português, reformado que prefere a retired - por uma mulher. O livro é a história desse amor que aguarda, um contar da ansiosa espera enquanto nos desvela a figura feminina, lhe mobila a casa a gosto e tentando replicar - os mesmos objectos em idênticos lugares - a que tinham do outro lado do Atlântico. A espera serve para contar Cecília. Ficamos cientes dos seus gostos, palavras e ideias pessoais e profissionais, do que fizeram juntos, do muito que ainda os aguarda quando, de novo, se juntarem. Até à presença concreta da mulher, o mundo alia-se à espera e suspende. Atravessada nele, Cecília é estrela.

Se alguém coteja a leitura com o que tem em casa, sente-se em défice. Ali. Ali é que está o amor que cada ser humano deseja. Há na explanação amorosa daquele homem qualquer coisa de comoção e santidade, uma terna adoração. Aqui e ali, pormenor a pormenor, vamos entrevendo sintomas incompreensíveis. Mas somos enfeitiçados pela fundura do amor, ternura sem nome que nos percorre. E acompanhamos a espera. Estamos com ele à janela, sentados no cadeirão de leitura. Aguardamos. Desejamos a chegada, atentos aos motores dos carros que se aproximam, a táxis que param, viaturas que abrandam. Talvez se dê o caso de estacionarem e, in the flesh, Cecília desça e erga os olhos até à janela onde é esperada. E depois os passos nas escadas, o som cada vez mais distinto até cessar frente à porta, a Luria pronta a recebê-la…

Não acrescento, mas é obra que merece ser lida e não apenas pela trama. Tem escrita depurada e muito sugestiva.   Depois, a vida é tão imperfeita que parece vantajoso destacar os sonhos que os livros nos apresentam.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Breves

 

Já não viajava há tanto tempo que esquecêramos os caminhos (eu e o carro). De modos que me enganei algumas vezes, coisa pouca. Infelizmente não deu tempo para andar feita parola a olhar as montras. Fui só num saltinho comprar dois livritos, companhia de horas mortas e que, por assim estarem ausentes de si, só estorvam. E pode que os livros as componham, sejam remédio.

Adquiri – finalmente – “O Infinito num Junco”. Li apenas duas páginas e, portanto, não palpito. Mas é obra capaz para oferecer a uma amiga que as prefere sobre figuras da História. Não que seja monárquica, mas as prateleiras ajoujam de rainhas e príncipes consortes (e sem sorte por vezes), princesas nem sempre felizes, damas que ficaram na memória dos tempos por vincadas qualidades e não menores defeitos. Já lhe disse que é uma bisbilhoteira imparável, mas não me faz caso e continua na senda da realeza a devorar o fausto e os podres de certas cabeças coroadas ou com tiara. Em prol da minha escolha, e de acordo com o que ouvi numa entrevista a Irene Vallejo a autora (sugestão da Maria), a personagem é o livro e a utilização do artigo não é casual. Resumindo, não é um romance, a obra conta a história do livro ao longo dos tempos. Não esclarece o carácter de reis e rainhas, mas tem o mérito de tratar de um objecto real e necessário, ser fruto de pesquisa e aturado trabalho, exalando – imagino -  certa liberdade criativa na abordagem dos assuntos. Ó  miga tens que gostar. Só podes.

E porque muita estupidez grassa pelo mundo e  nada de novo sob o sol além das desgraças em que os telejornais são pródigos, vou ali agarrar a minha bóia a ver se reanimo horas que, mortas, nada me adiantam.

Durmam com os anjos e acordem bem dispostos. É sexta.