segunda-feira, 24 de setembro de 2018

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Dias Desistentes


Por vezes, troco a ordem aos dias e vivo a sexta-feira um dia antes. Ou a meio da semana. Isto, é claro, nos dias em que pretendo que a  sexta-feira real seja outra coisa, um dia sem nome que retiro do calendário e faço meu. Meu, também não é bem assim que levo horas a desligar-me da semana normal. Ele é o gato, a roupa, as flores, as folhas que caem sem pedir licença, as compras de ninharias que fazem sempre mais falta do que o tamanho que têm. Tudo isto, acrescido dos inúmeros itens que procuro e não encontro e aposto que ganharam asas, que para onde é que foram. Enfim, uma data de amarras que me consomem meio dia de prazer. Portanto, deslargar-me leva o seu tempo. Adiante. E posto que ontem vivi a sexta-feira e hoje era para ser o tal dia que capturo ao calendário, estou para aqui sem saber às quantas ando. É sexta, mas não é sexta - bem me lembro que a vivi ontem de fio a pavio. Também não é um dia meu porque, enfim, não pôde ser. Portanto assim a modos que não existe mas aqui está cheio de horas. E bem podia seguir a sugestão do poeta Gomes Ferreira, quando o dia batia à porta a empregada abria e, olhe hoje ela está morta; por favor, volte amanhã.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Percurso


Passo a rasar a parede aproveitando a fita de passeio daquela rua de asfalto. Conheço todas as casas e, em alguns casos, os moradores. Embrenhada em meus botões, acorda-me vozinha infantil que tagarela a virar a esquina, mão dada talvez à mãe. Seguem um pouco à frente e oiço-a, avó, vamos atravessar. Acerto o meu olhar ao vê-las cruzar a rua e julgo conhecer a figura adulta. Mas já os anos me habituaram ao descrédito, toda a gente, se a olho, me parece conhecida; até na TV vejo quem conheço, vizinhos, colegas, um ror de gente. Estava precisamente a pensar que as avós de hoje são jovens e se confundem com as mães, concluindo que de tal perigo nunca eu sofrerei, quando a avó se virou para trás e me reconheceu. Pararam as duas e estuguei o passo. Cumprimentei e logo a garota, dez réis de gente magrinha um lacinho branco em pose artística a enfeitar os caracóis, tu onde vais? Olha, eu vou além ao parque. Disse-lhe que seguia pela mesma rua e ela radiante, mão estendida, então vamos as três, e pegou-me na mão. Assim, sem mais nem mas. Dedinhos magros e quentes em aperto confiado a uma desconhecida. As três de mão dada, com a proximidade que não temos. Andando e conversando. Contou-me que está no primeiro ano mas já sabe ler, disse-me o nome da professora e que a mãe ensina na escola onde ela aprende; e pelo meio preocupava-se com a avó, não pises o cocó de cão, avó desvia-te senão picas-te nas ervas. A avó a embevecer risonha, isto fala que não acaba, nem calcula. Mas ela, grandes olhos de veludo convicto, olha, anda também ao parque, tem lá um escorrega muito bom, não queres? E eu, oh, que pena, não posso; tenho que ir fazer o jantar. Resposta pronta, eu já fiz o meu. Terei feito cara esquisita porque acrescentou, a minha avó é que fez, mas eu vi. E quando me separei daquela liana morena e desenredámos as guias deu-me um beijo a lamentar, podias vir, é já ali.
Abençoada infância!

sábado, 15 de setembro de 2018

Setembro


Setembro  é mês de despedidas. Das férias, dos lugares de lazer, dos amores de verão, de manhãs  sem relógio e calendário. Sobretudo, Setembro dá fim a certo espírito descomprometido. É o regresso às aulas, aos horários, ao quotidiano agrilhoado. Retornam os fatos de trabalho, as fardas, o sorriso funcional.  Por inclinação da Terra, o sol faz-se cálido e os dias amarelam e encurtam. Setembro é anúncio de virar de página, um entreabrir de porta ao Outono. Coisa hesitante, nem carne nem peixe.
Em Setembro, as praias aquietam, diminui o ruído e chega mais cedo o vôo rente  das gaivotas. A água do mar perde transparência e a refracção platinada do sol devém o impossível dos olhos. Neblinas matinais namoram a água  até que, mansamente, a força solar as empurre para os longes onde a serra é puro recorte. E ali se quedam, longínquas vigilantes da água, prontas a intervir.
Os amantes de Setembro chegam sem ruído, gratos à benevolência dos elementos. Não há mais o calor intenso, a água de impactante frescura, a limpidez azul da atmosfera a rasar as dunas pontuadas de verde. Não há helicópteros em missões de publicidade, pregoeiros de bolas de berlim e bolacha americana, “não engorda, só alarga”, exasperações e desaguizados entre crianças e progenitores, telemóveis a fazer-se notados. o silêncio que campeia na areia rotunda o ritmo das ondas. Os amantes de Setembro vêm armados de livros e cadeiras e agradecem a doçura ondulada do marulhar. De quando em vez, olham longamente a paisagem como quem se abastece de víveres para larga viagem. Não são modernos nem chiques e fazer pendant desinteressa-lhes. Trazem na figura a consciência da morte, superior razão de mais amarem os imperceptíveis da vida. E toda a praia lhes pertence, o sol, a água e a areia, a infinita liberdade do pensamento. Hão-de perder-se no mundo. Alguns, perder-se dele. Não obstante, levam na pele e na alma este macio Setembro.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A Verdadeira Artista...


Sobre Virgínia Woolf, do século XIX ao XXI, muito se escreveu.  Mas uma coisa é conceberes, outra, admirares a concepção alheia. Nenhuma das vertentes aliena a outra. Resta-te pensar, pacatamente e sem melodrama, o que por ti não foi ainda pensado.
Segundo parece, mister Woolf rearranjou os cadernos da mulher sobretudo para evidenciar o que nela mais batia, a escrita. Mostrar a arquitectura das obras desde a ideia inicial, desvelando a forma como se desenvolvia o processo criativo. É claro que é nítida a insegurança da escritora enquanto espera as críticas e as vendas. Por mais que arme em fleumática, essas duas a três primeiras semanas são de sufoco só amenizado pelo feedback favorável de amigos. Também é certo que o términus de qualquer livro é um sofrimento, muitas vezes já com outro livro na cabeça. Como se nota o prazer – de que ela mesma dá conta - em se esvair na escrita. Escrever consome-a, gasta-lhe a mente, suga-a. Mas é supremo gosto, realização. Porque foi uma vida dedicada às palavras, “os livros são os meus filhos”. Portanto, a fazer o que gostava e sabia. Dentro do métier.
 Virgínia é vontade indomável para fazer diferente e melhor em cada obra. Como escritora, não quer continuar ou manter o estilo. Cada livro é um  começo, uma experiência original. Não equilibra inseguranças, atira-se a escrever no seu estilo próprio e em concepções formais cada vez mais arrojadas.  Nada a detém, quer  na procura de novas formas, quer nos temas, quer na depuração dos escritos. De uma obra a outra, diversifica-se e, na mesma proporção, trabalha a qualidade de texto. Emenda, emenda, emenda. Reescreve até restar apenas o que queria dizer e como. São vulgares as notas sobre o número de páginas que escreveu e quantas supõe reduzir até à versão final. E não esqueçamos que era trabalho manual, só no final batido à máquina.
Portanto, se me dizem, ah, era muito insegura, aponto o arame - a escrita. E nunca a ele se furtou, antes viveu a tentar novas e arriscadas piruetas. Sofria quebras e dúvidas, estados  de lastimosa inutilidade, períodos refractários e breves em que descria do valor pessoal. Mas havia o L. a ordenar-lhe a vida natural, a passear com ela, a propiciar passeios e viagens, a ler e opinar sobre os manuscritos, a acompanhá-la nos sonhos: da editora, de casas e jardins e automóveis. O L. cuja ausência deixava Virgínia em solidão escura. Oh, sim, apoiava-se nele. Não se encostava.

domingo, 9 de setembro de 2018

Felizes...


O Diário de Virgínia Woolf soma  vários cadernos escritos entre afazeres, em intervalos de dez ou vinte minutos, não de todos os dias; as interrupções mais longas correspondem a frequentes períodos de doença.
Faltam-me umas míseras 100 folhas para o términus do livro e o mais impressionante é a forma metódica como a escritora sempre viveu. Virgínia nega a imagem de escriba distraída do mundo e absorvida pela criatividade. Ao contrário. Divide sem piedade os dias de trabalho: horas de jornalismo e sustento; e horas para criar o mundo de palavras que lhe conhecemos. Trabalho, trabalho, trabalho. Na editora caseira; na leitura  de obras, prazeirosa ou de obrigação profissional; na escrita dos seus romances. E Mister Woolf em todo o lugar, cruzamento de anjo e amoroso confidente. Ele entende, aplana, propicia. Está. E a própria Virgínia se abisma sozinha em casa. O seu descanso embevecido na vez em que afirma, “o L. tem a certeza que gosta mais de mim que eu dele”; e é como se o leitor lhe assista o deitar em cama própria, estender e abandonar o corpo ao descanso nocturno, aconchego  de que há-de erguer-se pelas duas ou três da manhã, espreitando as copas das árvores.
O livro deixa-nos, inequívoca, a ideia geral da consciência da doença que a habitava e da forma de a ir, sistematicamente, afastando, reduzida a períodos de prostração, febre e dor de cabeça. Sentimos essa ameaça ao longo do tempo, tecitura fragilizada, porosidade indevida. Mesmo se afirma numerosa: sou tão feliz, somos muito felizes, foi um dia de felicidade completa. A senhora Woolf era um espírito organizado que, talvez por influência médica e experiência pessoal, aprendeu a gerir as suas extremadas contradições. Alternava horas de trabalho escrito (romances e peças de jornalismo) com passeios longos pelos campos – sozinha ou com o seu anjo da guarda -; períodos de socializar (recebia muito e gostava de conversar com quem podia entendê-la) com dias de solidão quase absoluta; longas horas de conversa e exaustão com mudez criativa. Domava os contrários um com o outro. Não conseguia viver sem eles, cada um a alimentar o inverso. Gastou a vida nesse balanço difícil, garantia do tempo para o que mais gostava: escrever e ler. E creio que foi feliz. Não pelo estado. Pela constante aspiração.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Dias de Assim


Quando o Outono espreita sobre o ombro do verão, as manhãs de pássaros,  amarrotadas por nuvens e humidade, acobardam. Então, a noite aproveita e pega-se às coisas banhadas em silêncio de sono e, tolhida pela penumbra que escarafuncha, finge reinar. A mulher acorda a meio desse imperturbável vácuo auditivo, ouvido alerta. Nada, senão a tosse a estripar o silêncio. Depois, um lenço em solavancos apalpados, uma zonzeira na cabeça. Lá fora, nem um pio. Indiferente a humores e excreções, o relógio digital guia o corre-corre dos minutos. Cedo. Afastando neblinas, a mulher conta as horas de sono. Interdita-se a oscilar entre corpo e cabeça, um que clama descanso, outro a almejar pelo dia. Decide-se. Pés no chão.
A rua amarela em prodígios eléctricos. Sem uivo canino ou ensaio de brisa no folhedo. Encostada na ombreira, num flic-flac de alma e corpo, determina beber café. Um pequeno almoço vagaroso e é outra. Não a de acordar. Outra. De ser a mesma de todos os dias e varrer ruas e estender roupa e regar flores no cedo. Depois sai por uma lembrança. Volta e assiste às visitas que partem. Se levam tudo. Sobe a verificar. Abraços. E quando voltam. A mão acena até à curva do automóvel. Regressa devagar, sopesando o afecto que não diz, e por que não diz, se é tão verdade. Sendo criança, ficaria, talvez, mais fácil; mas logo concede, as crianças gostam umas das outras quase sem palavras. Quem sabe não são eles também assim. Contudo...
E enquanto o automóvel sorve quilómetros dia fora, a mulher põe o mundo no lugar e a casa readquire-se, “Haja Deus”.