terça-feira, 31 de agosto de 2021

Olá

 

Ora viva! De volta. E com a caixa de comentários aberta. Pois é, encerrou por motivo pessoal, alheio a todos os que têm a bondade de me visitar e deixar marca. É razão que não interessa ao assunto, mas altera o meu comportamento em rede. Continuarei a postar e a visitar-vos. Também a ler o que escrevem. Como sempre.  E haver gente que pulsa por detrás das palavras e se demora a afeiçoá-las, é motivo de respeito. Muito clean esta forma de companhia. Um acessível acto de prazer.

Contudo, o tal motivo que me pertence corta-me as vazas, cinge-me ao essencial. E, perdoem a sinceridade desabrida, interessa-me a escrita de posts. Vai ser assim, leio-vos como de hábito e vou postando quando possa. Mas retiro-me dos comentários. Uma vez ou outra, deixo sinal. 

Se não vos servir, paciência. A blogaria espera-vos em tanto lugar... . Do meu lado, foi um gosto.

E cá estou. Ou, cá estamos.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Gotas de Orvalho

 

Como as árvores, espero anualmente a primavera. Que chega no verão, movida a tepidez e força de calor. No tempo das cegonhas paradas no azul reverdeço, encho-me de folhas e breve se juntam algumas flores. Árvore envelhecida por anos de líquenes e musgos, já os vigores primaveris me demoram e constrangem na floração. Mas tudo que é natureza usa de contrapartida. Por serem menos, são mais lindas as flores. Ou assim as sinto. A velhice, em meu parco entender, é um Deo Gratias. Até para quem não tem Deus. Talvez por serem em menor número, e pelas contingências mais ou menos aceleradas de apodrecer gradual, vamos perdendo capacidades de vária ordem. Porém, num esquema muito próprio de compensações isentas de justiça, a vida vai-se desdobrando nas pequenas coisas que antes não vinham à liça porque a lufa-lufa quotidiana amontoava e engolia o tempo.

Como as árvores, espero a minha primavera: um dia azul e de clara quentura, a suavidade bailando na mistura de cheiros. E o mundo recomeça. Pego no carro e na mochila, faço um caminho comprido e quase sem curvas, marginado por árvores e ninhos conhecidos e tudo me acontece em nítida e alegre serenidade. Cruzo a imensa poça de nenúfares em  que o gado dessedenta; uma fábrica sazonal que prepara a azáfama da estação; os portões grandes onde se abrigam não sei que fortunas e que, por mais abertos, são alheios à hospitalidade; o restaurante que foi escola; os esqueletos de árvores retorcidas e poéticas que o inverno matou e se mantêm na beira do caminho, a lembrar aos homens que “as árvores morrem de pé” e fazendo presente uma noite de infância estupefacta, siderada pela extraordinária interpretação de Amélia Rey Colaço; uma aldeia de cais palafítico apresentado por um amigo em tarde de inverno (onde andarão essas fotos); uma praia de entrada poeirenta que abomino; o caminho bordando verdura, bermas de areia movediça e perigosa onde certa vez enterrei o carro; o mar aqui e ali a espreitar na paisagem, recorte comovente e de extraordinária beleza que acena em terno chamamento. O lugar onde estaciono, sempre o mesmo, na sombra dos pinheiros; a vereda nas dunas, ladeada de plantas que admiro estarrecida; e, enfim, o mar, a areia fina e macia festejando os pés, o sol na pele, a água que me tolda o pensar, me descansa e se impõe a sós: sou eu e ela, coisa que o corpo vive e a alma sente.

Mas este ano a areia solta importuna-me um pé. E, portanto, nada de dunas, nada de condução, nada de nadar. Andar na areia molhada. É alguma coisa. Mas, garanto, não é a mesma coisa. É que nem consigo saber se me chegou a primavera.

domingo, 1 de agosto de 2021

Sombra Chinesa

 

Quando os dias sufocavam e ainda as férias não iam a meio, surgiu a proposta. Um amigo da escola convidava Jaime para a casa que os pais possuíam na costa alentejana. Cioso do filho, Formosinho encarara o pedido quase como ofensa e dispunha-se a contrariá-lo. Queria tê-lo por perto, despertar nele o amor antigo aos trilhos de estevas e cardos, senti-lo comprazer nos cheiros da erva rasteira a despontar da quentura endurecida dos torrões, na lassidão do corpo em horas de labareda, a linha recta das vinhas a perder de vista e o olhar a despir-se de argúcia e enchendo-se de ternura à vista das cegonhitas novas, um niquinho de redondos aos assomos fora do ninho. E, mais que tudo, a convicção de que as melhoras da mulher bebiam da energia e saúde do filho. Mas não contara com a firmeza de Veridiana. Ao invés do que esperava, a mulher fincou pés no convite.  Incentivava o filho a partir, que era bom fazer praia, que lhe fariam bem outros ares, que o iodo assim e assado, que a diferença só traria benefícios. Que não se prendesse, ela melhorava, e a saúde, já se sabe, vai-se num ai mas demora a voltar; que, entretanto, ele tinha de se divertir com gente da sua idade. E, a sós com Formosinho, pespontava motivos, o rapaz precisava acrescentar as amizades e conhecer outra diversão que pedalar sozinho campos fora, não era bicho do mato. E porque torna e porque deixa. A Jaime, desinteressado de vinhas e cegonhas, prendia-o apenas certo temor pela saúde materna, a palidez sempre presente, a fraqueza que pressentia em repentes de recaída e que ela dominava de pronto. Mas, na evidência da bênção, umas semanas de praia eram paraíso inesperado. Abraçava-a pedindo, promete que comes e repousas, promete. E ela prometia sorrindo, vai descansado. Quando tornes a buscar as tuas coisas para a escola, estou quase boa. Ajeitava-lhe a melena rebelde com mal disfarçado orgulho e acrescentava mirando a definição  do rosto amado, melhoro só de pensar que estás onde o teu gosto pede, filho. E acrescentava num sorriso doce e conivente, vais conhecer raparigas e admirá-las em fato de banho, aproveita a sorte. Jaime corava pouco à vontade e a mãe, uma palmadinha amistosa na face, cada idade faz os seus pedidos e tem os seus gostos, meu filho.

Entretanto, Celestina fazia a mala de Jaime e punha-se do lado do patrão. Chegava a casa e repontava em desvelos de enlevo, tão malzinha que está ainda, e só pensa no bem do filho; e então o rapaz não era para ver isto. Fazia uma pausa como que a dar tempo para também o seu homem pensar no assunto e retomava noutra direcção, metido dentro de casa de outros, que vai fazer para praias, sabemos lá quem são, aquilo é gente que nunca se viu por estas bandas e que ainda desencabecina o rapaz. Aborrecendo o tema, o marido aconselhava, deixa-te disso mulher, mania de te meteres na vida de cada um. Pois se à mãe não lhe importa, para que te estás tu a moer. E ela, pé firme  na sua convicção, não se importa, não se importa….eu é que a conheço, não és tu. Rodava o corpo e dava meia volta. Assunto encerrado.