Crescemos
com os outros, mas não da mesma forma que eles. Eu cresci com a noção que
éramos pobres. Não pobres de pedir, pobres no sentido de sobrevivermos com o
essencial. E isso notava-se na habitação, nas refeições e na indumentária: eu
gostava da casa e, em boa verdade, não era diferente das que a rodeavam. Tenho
memória de janelas envidraçadas e eu admiradíssima, que é aquilo, por que é que
a nossa janela não é assim, por que é que não pomos uma coisa daquelas, eu
gostava tanto. E minha mãe embaraçada da insistência, respondendo a perguntas encadeadas
umas nas outras. À parte isso, achava normal os alguidares a apararem goteiras se
chovia e divertia-me o inesperado nas tempestades nocturnas, a telha vã incapaz
de escorrer toda a força da água e eu exultante por me respingar o rosto. A
solicitude de minha mãe a tapar-me até
ao pescoço, já não dá tempo pra ir buscar o plástico. Neste modo de vida não
havia folga para chocolate ou bolo e só as grandes festas religiosas nos traziam
o gosto doce. Quanto a vestuário e calçado, o tricot desvelado de minha mãe,
serões à luz de petróleo, gerava casaquitos que minoravam o frigído e havia
dedos de pés entaramelados em calçado de verão enquanto pedalava para a escola.
Contudo,
os meus irmãos cresceram com a ideia de serem abastados, convicção com origem na casa nova. Minha mãe,
ser de alma caridosa, era visitada por ciganos e pedintes que nunca seguiam
caminho sem alguma coisa. Vi-a dar pratos de sopa e lavar pés e fazer curativo às chagas dos velhos. Nesse tempo, os mendigos palmilhavam descalços e preocupavam-me silvas e cardos que imaginava nos caminhos. Por via
disto, quando entrei no colégio das meninas finas, magoava-me que pouco contribuíssem com géneros para os pobres. Os pais levavam-nas de carro até ao
colégio, em casa teriam sofás confortáveis e, supunha eu, as refeições eram semelhantes
às dos livros dos cinco. Mas a caixa dos géneros ali estava no átrio, escancarada e esquecida. Por seu lado, minha mãe não se fazia rogada e ia encontrando contributos que muito me
orgulhavam.
Portugal
inteiro desdenha das conferências de S. Vicente de Paulo e das senhoras que
tinham os seus pobres. Suponho que pertenci ao movimento desse santo de que
nunca ouvira falar. Sei que cada turma tinha uma pobre. E que levava a sério a nossa
pobre e ia visitá-la de gosto e boa vontade.
(cont.)