sexta-feira, 31 de julho de 2020

A Nossa Pobre

      Crescemos com os outros, mas não da mesma forma que eles. Eu cresci com a noção que éramos pobres. Não pobres de pedir, pobres no sentido de sobrevivermos com o essencial. E isso notava-se na habitação, nas refeições e na indumentária: eu gostava da casa e, em boa verdade, não era diferente das que a rodeavam. Tenho memória de janelas envidraçadas e eu admiradíssima, que é aquilo, por que é que a nossa janela não é assim, por que é que não pomos uma coisa daquelas, eu gostava tanto. E minha mãe embaraçada da insistência, respondendo a perguntas encadeadas umas nas outras. À parte isso, achava normal os alguidares a apararem goteiras se chovia e divertia-me o inesperado nas tempestades nocturnas, a telha vã incapaz de escorrer toda a força da água e eu exultante por me respingar o rosto. A solicitude de minha mãe  a tapar-me até ao pescoço, já não dá tempo pra ir buscar o plástico. Neste modo de vida não havia folga para chocolate ou bolo e só as grandes festas religiosas nos traziam o gosto doce. Quanto a vestuário e calçado, o tricot desvelado de minha mãe, serões à luz de petróleo, gerava casaquitos que minoravam o frigído e havia dedos de pés entaramelados em calçado de verão  enquanto pedalava para a escola.

Contudo, os meus irmãos cresceram com a ideia de serem abastados,  convicção com origem na casa nova. Minha mãe, ser de alma caridosa, era visitada por ciganos e pedintes que nunca seguiam caminho sem alguma coisa. Vi-a dar pratos de sopa e lavar pés e fazer curativo às chagas dos velhos. Nesse tempo, os mendigos palmilhavam descalços e preocupavam-me silvas e cardos que imaginava nos caminhos. Por via disto, quando entrei no colégio das meninas finas, magoava-me que pouco contribuíssem com géneros para os pobres. Os pais levavam-nas de carro até ao colégio, em casa teriam sofás confortáveis e, supunha eu, as refeições eram semelhantes às dos livros dos cinco. Mas a caixa dos géneros ali estava no átrio, escancarada e esquecida. Por seu lado, minha mãe não se fazia rogada e ia encontrando contributos que muito me orgulhavam.

Portugal inteiro desdenha das conferências de S. Vicente de Paulo e das senhoras que tinham os seus pobres. Suponho que pertenci ao movimento desse santo de que nunca ouvira falar. Sei que cada turma tinha uma pobre. E que levava a sério a nossa pobre e ia visitá-la de gosto e boa vontade.

(cont.)


quinta-feira, 23 de julho de 2020

Dispersão


Encontrei a Violeta. A bem dizer, ela corre para mim mal me distingue a voz. Achaques da idade puseram-lhe a companheira doente e agora passeia apenas com o dono. Faço por encontrá-los, custa-me menos o caminho depois do nosso bom dia. E o pensamento, o tal que é livre só às vezes, trouxe-me Inês Pedrosa na Feira do Livro de um ano qualquer a dar-me um autógrafo sem sequer me olhar. Pequenina, montada em sandálias altas, um vestidinho cavado e de quase cerimónia, chegada de alguma máquina ou barraquinha de comes e bebes. Na mão, uma chávena de café.  Esperei que se sentasse na mesa de trabalho, vi-a pousar e adoçar o café. Bebeu-o. Não interrompi a conversa com a companheira. Empurrou a chávena para a borda da mesa, pegou na esferográfica e, sem interromper a conversa, nome. Olhei em volta, mas éramos só nós três. E portanto, nome, para mim. Eu que já tinha um autógrafo seu. A escritora conferenciara na minha terra e, no final, autografou livros. Nessa noite de primeira vez, parecia outra. Olhara a dedicatória que já estava desenhada no livro e comentara simpaticamente, estas sim, são as melhores dedicatórias. E apôs a sua assinatura, pareceu-me que satisfeita por ficar assim debaixo da dedicatória inicial. Foi esta cálida memória  que me fez bisar. Mas na Feira imiscuí. Parti-lhe a bica ao meio ou assim, quem sabe lhe arrepanhei a garganta na pressa de me despachar, vai lixar outro. E, meu dito meu feito, não deu palavra e até nem interrompeu a conversa que trazia de trás. Nada a ver com a qualidade de escrita que lhe reconheço ou a fluência verbal erudita com que nos ensina algumas coisas em programas de rádio. Pensei isto enquanto escolhia a parte do caminho com mais caruma e menos areia, que chatice, mas como é que eu ando que me salta areia para dentro dos ténis. Beatriz, convence-te, tu nunca soubeste andar. Dás passos, deslocas-te. António Ferro tem um poema onde se queixa de não saber viver, que é um relógio que pára de quando em quando, e etc. Balelas. A gente lê-lhe a vida e o homem desfez-se de tanto agir, e é que me sinto mesmo mal por comparação. Bom, se eu fizesse um poema diria, “não sei andar” – e servia-me da mesma metáfora “sou um relógio que para de quando em quando”, embora eu, para impedir a entrada da areia, levante os pés e pareça mais uma pata choca do que um relógio. Entretanto, finalmente, cheguei ao alcatrão e logo ténis e pés numa gratidão lisa e desempoeirada. E esqueci a Inês – a bem dizer já a tinha esquecido – e também António Ferro porque a névoa dissipou e as ideias poéticas achegam-se-me com a neblina. E não, não sei mesmo porquê, não me dá para investigar esse material, mas pode bem ser nostalgia, romantismo do mais parvo, sebastianismo encapotado. Sei lá. Bom, pareceu-me ouvir vozes e dei um soslaio à esquerda. Juro que os meus olhos lobrigaram uma índia de passo despachado, mas sem penas na cabeça. Uma Pocahontas atarracada e sem cintura, cara larga, cabelo desatado e bem comprido. Para aí na meia idade. Bué estranha. Calçava ténis, usava calções e vinha falando consigo mesma. O que uma pessoa vê num soslaio, fico parva. Andei um bocadinho mais depressa não fosse a mulher vir atrás de mim e meter conversa e eu de dialectos não entendo. O meu entendimento de índios vem dos filmes americanos onde pouco mais vocalizam que o Tarzan anterior à Jane; além do mais, aquela gente da América não é de fiar. É certo que li e dei a ler o discurso do chefe de tribo conhecido como O Papalagui (não o chefe, os Papalaguis somos mesmo nós), mas o que ali se ensina é outra coisa (tanta coisa). Portanto, quanto a conversas índias sou incapaz e não domino sinais de fumo. Mas, cá por coisas que não eram os ténis nem a areia,  já vinha a arrastar-me. E a índia depressa me alcançou. Deu-me um soslaio e a galope atirou, e a sua irmã como está, tenho de lhe ligar.
Ora esta.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Pequenos Mistérios


Quem passe na parte norte da rua pode vê-la sentada por detrás da janela entreaberta, a alvura floral da cortina de étamine em moldura oscilante a confundir-se com os caracóis de neve. D. Brites viveu sempre de janela. Não por ser metediça e cusca. A velha senhora, agora de lencinho branco secando lágrima teimosa, foi apanhadora de malhas caídas em meias de nylon, teias de aranha que, por natureza frágil e transparência íntima, eram chamadas meias de vidro. Não que se usassem no meu tempo de cómodos collants que riem de ligas e cintos de ligas, prescindem da sedução de endireitar costuras e se refugiam em tons opacos quando as pernas não são exibíveis ou o frio  ordena, acordando filmes antigos de Robin dos Bosques. O trabalho de D. Brites era aturado esforço de relojoeiro zelando pela beleza de tíbias e perónios femininos. Munida de um cilindro metálico oco, deslizava a meia com vagar até exibir no oco do cilindro o buraco feito pela malha caída. Depois, manejava uma agulha longa e de ponta fina até encontrar a malha que resolvera desenfiar-se e subir ou descer a escada do nylon. E, em movimentos certeiros e rápidos, o cabo da agulha num frenesim espasmódico, levava-a pelo caminho certo até ao lugar de onde escapulira. Em seguida, passava uma mão de dedos abertos por dentro dela, e diz quem viu que se satisfazia com o toque de seda sem sinal de desacerto. Carinhosa, dobrava e arrumava a peça como quem deita filho em berço e passava à seguinte. Brites era a maga da rua.  Nessa época, um par de meias de nylon valia como bem pessoal, riqueza que ascendia até à coxa onde a liga a esperava, cuidados de palma de mão a encaminhá-la, não fosse uma unha mal cortada ou um espinho  de carne molestar o moreno cetinoso, luxo de pernas juvenis e exigência de qualquer senhora. Meias deste quilate acendiam o apetite dos homens e guardavam-se para dias especiais, um cuidado a sentar e zelo extremado na movida de pernas, que qualquer repuxar as magoava e logo  lágrimas-malha se perdiam perna acima ou abaixo.
E a Brites alcandorada à luz da janela que lhe serviu a profissão, perdidos os olhos de relojoeiro, lencinho a rescender a alfazema, não menina, arrumei o estojo; há anos que não mexo na agulha. Já não sou capaz, pois não vê que choro desta vista a toda a hora. E numa constatação queixosa, foram muitos anos a castigá-la. E agora, olhe, vai-se-me por aqui o desgosto da vida que à outra lhe secou a nascente e não deita gota. E depois, suspicaz, quais figueiras, menina, isto era um mato só e uma casinha lá à ponta, bem ao fundo, onde é hoje o que chamam jardim   e que pega com a Estrada da Cabaça. Naquele casinhoto, menina, moravam as Figueiras, duas irmãs que aqui aportaram raparigas feitas e que punham à roda a cabeça dos homens. Deixaram que contar, Deus lhes tenha a alminha em descanso que já lá estão as duas. As maganas eram bonitas até fartar e desempoeiradas que só visto. Se a inveja matasse, tinham morrido na primeira semana. E em lembrança consternada, abanando a cabeça, valha-me Deus, o que por aí havia…. Mas elas, alegres e faceiras como não vi. E olhe, os pés dos homens é que fizeram a rua. A menina ri-se. Mas lá que havia um carreiro mato afora até à porta delas, havia.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Descrença


Férias de escrita. Que tirar férias de mim, ser funcional e precavido,  não pode ser.  Parece que afinal sou imprescindível ao quotidiano de vária gente. Se bem que…morremos e deixamos de ser. E lá se vão os qualificativos para o maneta.  A mesma vária gente que nos precisava urgentemente, aquela que não podia viver sem nós, a mesmíssima, arranja-se, atamanca, consegue; e esquece-nos em mais ou menos tempo. Lá dizia Guterres, “é a vida”. E é. A vida tem uma força danada e chama os vivos para isto e para aquilo, é o trabalho, as contas por pagar, os compromissos de ai, tenho de estar não sei onde a certa hora, os filhos que são compromisso amado e inextinguível, e idem para netos se os há. E mais de perto, piscam as urgência comezinhas, o leite que é preciso comprar e o frigorífico que reclama de tão leve, o estômago que não pára  e quer atenção, o suor que acumula, a roupa suja, sei lá, e sei lá é ainda muita coisa. A vida é uma chamada de atenção global, sem tempo para quem morreu. Porque esse, descansou. Ou nós descansámos dele. Ter uma lembrança é menos moroso que ter um doente em encerramento de caminhada, facto que, para complicar, dói que se farta se por acaso gostamos dele.
Tento convencer-me que o mundo foi sempre louco e não vivemos o fim dos tempos, apenas nos coube uma época pior e com más chefias. Que os nossos políticos não são tão maus como me parecem, eu é que sou pessimista. Que o Homem ainda tem hipóteses, há um fundo de bondade e resiliência individual a ligar-nos uns aos outros, trabalhando para o bem comum. Que ainda podemos deter a marcha das catástrofes ambientais, salvar o planeta, casa dos homens. Mas o certo é que, pessimista ou não, não creio em nenhuma das afirmações supracitadas. O mal do mundo não são os chefes, são os homens, nós. Ao menos nos países onde as eleições são democráticas, foi o povo que lhes deu o lugar que ocupam. Portanto, e citando apenas três sinais (são muitos mais), ver a área ardida em zona que por ironia do destino se chama Castro Verde e é Alentejo retinto, assistir às medidas recentes de Erdogan que são adubo fundamentalista, e ao governo português perdido em floreados parvos e sem medidas para domar esta crise séria mas a fazer de conta que é capaz, acabrunha qualquer que não esteja mentalmente em gozo de férias e conserve algum bom senso.


sexta-feira, 3 de julho de 2020

Pequenos Mistérios


Quando me apresentei na rua das Figueiras já ela era tal como a descrevo, uma rua comprida e larga, murada a um lado e a outro por habitações contíguas como casas de pisa-pisa, umas que se elevam em vaidades de primeiro andar, outras térreas e sem pretensão, algumas humildes e envergonhadas, timidez de pobreza que se adivinha. A disparidade de cores e enfeites faz supor  obediência ao gosto e poder pessoal, pormenor também muito variável e bastas vezes de expressão feroz, constatado Portugal fora.  Do plano urbanístico ninguém sabe e diz vizinho Agnelo, um dos moradores mais antigos, coçando a cabeça à vista do vidrado em azulejo verde que refulge na fachada, queriam tinta e uma barra, veja bem; e depois vinham eles cá pintá-la todos os anos, não?!  - e num assomo de orgulho sabedor, acrescenta, boné em riste, – Está assim de nascença, não há coisa mais durativa que o azulejo. Sacode o pó do boné na perna da calça e ainda mofa, estão para ali de esqueleto ao alto e querem mandar no que é dos outros. E devolvendo o boné à cabeça, a enterrá-lo com mãos habituadas, isso é que era bom, no que é meu mando eu, reverbera a endireitar o tronco num rasgo de autoridade temerária. Vizinho Agnelo é alentejano de perna curta que toda a gente conhece por “o tocador”. Em tardes encalmadiças, senta-se o homem na sombra da esquina  a tocar acordéon, dedos nodosos que se fazem ágeis nos botões, cabeça ligeiramente de lado, o fole da concertina a esticar e encolher. A mulher, avantajada e resmungona criatura, voz de sargento que assusta todos os garotos com os seus destemperos, assoma à rede da cozinha e ali fica, sentinela esquecida, pano da loiça na mão e olhos de passado nascidos nas modinhas do seu tempo. Mais à frente, num rectângulo de luz forte, os torrões da horta endurecem à torrina e as novidades desmaiam de orelha murcha. Diz quem conhece, que o acordéon de Agnelo ajuda à sesta dos homens e das coisas e que não há nos arredores legumes como os seus. Pudera, são cuidados a desvelo e embalo musical. Agnelo toca virado à horta, uma gota de suor nasce-lhe em bolhinhas na testa, engrossa e resvala até ao pescoço.  Na Rua das Figueiras não passa um carro, só a música é viva e pulsa em surdina no ar quente.  As plantas mergulham em hipnose, resvala-lhes o caule em ponto de interrogação, as folhas desvitalizam e deslembram num tentear de sono encalorado.   Agnelo passa o lenço amarrotado pela cara, limpa o suor do pescoço e volta a enfiá-lo no bolso. Depois, despe as alças do acordéon, arruma-o na caixa e fixa o olhar na horta, que calmeiro, confirma. E entra em casa com a carga.