quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Tempus Fugit

 

        Se colocamos em perspectiva os males de ontem, parece-nos quase sempre que os de hoje, que doem e fazem mossa no presente, são mais fortes, piores, crescem-lhes garras e cadeias de tormento. Ora, ainda que diverso disto, um dos grandes males de sempre é a luta insana e contra relógio que comanda a vida dos homens. Acontece demasiadas vezes a toda a gente. 

        Andava eu a apreciar as novas entradas no CAM, a experimentar entrar e sair; a sair para observar em pormenor o tecto da célebre pála, dando um soslaio para as várias cadeiras de plástico branco espalhadas na clareira em frente e onde algumas pessoas descansavam concentradas em si e parecendo satisfeitas com isso; e ia eu entrando de novo e descendo as escadas de mármore tão bonito agora tapadas com um metal que deve estar na moda, já que a entrada da Casa da Música também assim é, eu ressoando escada abaixo e aqueles bancos de pedra corrida a virem-me à memória - ainda estão no mesmo lugar -, eu sentada perto de adultos com crianças que comiam bolachas ou só vinham perguntar alguma coisa e retornavam à relva e à brincadeira; onde pares de namorados paravam para atacar os sapatos, ou apenas decidir se iam à biblioteca ou se estendiam na relva. Pensava nisso e nas cadeiras plásticas. A sério: apetece-vos ir para a Gulbenkian sentar numa cadeira plástica que podem mover no sol ou na sombra do terreiro?! Talvez apeteça ter uma peça móvel para sentar em modo unipessoal, já que várias estavam ocupadas. Retomando o assunto, é claro que no final da escadaria não estava o wc de sempre, mas outra coisa qualquer. E subi, pom, pom, pom. Fui comprar a entrada no museu e salta-me o jovem, a senhora quer mesmo entrar? É que daqui a um quarto de hora o museu fecha. E eu para dentro, mas quem me manda a mim andar a passaricar sem ver as horas?! Do lado de fora, sorri-lhe à simpatia e prometi voltar noutro dia. Ainda não era o dia de convívio com Paula Rego. Ora bolas!

        Semanas passadas, lá me pespeguei. Lembrada de que não encontrara o wc, resolvi investigar-lhe o paradeiro. Não sei se consigo encontrá-lo de novo, tanto corredor branco baralhou-me, senti-me, ao vivo, num filme de ficção científica - julgo que tudo em mármore, mas preciso confirmar, atordoei um bocado. Com ajuda, atingi o objectivo. Satisfeita a primeira condição, marchei contente ao museu. Ia disposta a sentar-me em contemplação, Paula Rego é alguém que admiro e gosto-lhe dos temas. Mas qual contemplação?! Os quadros estavam lá na sua inteira realidade, na feiúra bela em que Paula os concebeu. Algumas figuras parecem querer sair da pintura, apostrofar-nos; aquelas mulheres-homens cheias de músculo, o sofrimento de tantas, a ingenuidade daquela, a amargura nos vincos de rostos endurecidos. E o simbolismo de tudo: Portugal a derramar-se sem espartilho. Enfim, eu queria mesmo era ver em pormenor e com tempo – fui cedo e tudo. Mas não havia onde sentar-me e a minha acção contemplativa não transige: só funciona na posição de sentada. É forçoso. Portanto, vi-os sim senhor, mas não contemplei. Gostei da sensibilidade que soube juntar Paula Rego com Adriana Varejão, gerações diferentes e parecidas. Admirei os rasgões de Adriana lembrando carne lacerada e outros golpes. Até achei bonita a disposição das pinturas em pequenas salas de faz de conta. Mas quem é que, num museu reconstruído, se lembra de expor pinturas e lhe retira o sentar?! Será também uma nova técnica?! É que o único banco que vi, curiosamente, estava nas costas das paredes onde as obras estão instaladas, espaço que, a bem falar, já não é exposição. O que pensaria disto Rui Mário Gonçalves, crítico de arte e professor universitário, que, como primeiro trabalho, pedia aos alunos que olhassem um quadro do MAC durante meia hora para depois escreverem as suas impressões.

        Será que a concepção da exposição, ao preferir as divisões de casa falsa, retira a distância necessária à contemplação? Pode ser preconceito, conservadorismo elevado à última potência, mas ausência de todos os assentos?! Todos, todos?!

domingo, 24 de agosto de 2025

Tempus Fugit

 

        Durante anos visitei com regularidade o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Penso que o descobri por mim, nem sei como; imagino que através de referências sobre as pinturas de Amadeo, por exemplo. Levei lá carradas de alunos. Gostava-lhe da situação e tinha preferência pelo serviço de restaurante. Envelheci com aquela gente: no princípio dominava em nós o tom natural de cabelo, sobrancelha, bigode (havia um senhor muito simpático e de bigode) e terminámos grisalhos ou atintados. Coisas. Não que os visse muito, mas havia naquela sala alguma coisa de familiar que me atraía. Seria a simpatia na recepção, a qualidade do atendimento que não se eximia de sugerir se nos descortinava indecisão, o conforto de mesas e cadeiras, a cultura de falar baixo, a diversidade de pratos quentes e frios, os sumos naturais e a variedade de sobremesas, a eficiência delicada na retirada de tabuleiros. E, lógico, a qualidade de tudo. Ali estive com amigos(as) e tanta vez só, para lanche ou almoço. Próximo do meu local de consultas e de um cinema, havendo tempo, passava para olhar o verde no meio da cidade, sentir o trânsito lá fora, sentar-me num banco a contemplar a vida em câmara lenta, o cheiro a relva molhada oferecendo certezas simples. Todos os sentidos à superfície. Só depois rumava ao destino, alma leve.

        Amei com vigor o museu, vulgo CAM. Quando a entrada era gratuita para professores entrava sempre e geralmente ficava-me pela primeira sala. Sentava-me a olhar os quadros de Amadeo e o fabuloso retrato de Pessoa axadrezado em vermelhos, branco e negro, divina pintura de Almada Negreiros. Fazia-me bem ao espírito contemplá-los. Punha um pé na Gulbenkian e o meu eu diário suspendia.

        Entretanto, aconteceram as obras no CAM e o covid, amplas restrições aos passeios pela Gulbenkian. Não que os deixasse de todo. Mas o ponto que mais me interessava manteve-se demasiados anos encerrado ao público. Vi exposições no museu do edifício principal, assisti a concertos e conferências, sentei-me no mesmo banco a observar o vagar com que a vida por ali se derrama. E os muros altos continuavam a cercar o CAM. Até que foi notícia de telejornal: o CAM reabrira. Não fui a correr. Sou a cada dia mais conservadora e saudosista, parou-me o receio de não gostar da célebre pála e nem do resto. E depois fui adiando, adiando, quase até ao esquecimento. Adiei tanto que deixei mesmo de passar nos jardins de que tanto gosto, tenho devoção contemplativa por Gonçalo Ribeiro Teles um dos criadores daquela maravilha. E nem é preciso citar que o senhor Gulbenkian tem lugar cativo no meu coração.

        Bom. Há cerca de dois a três meses enchi-me de coragem e fui ao Centro de Arte Moderna. E sucedeu o que pensara: não achei que a célebre pála merecesse o dinheiro que ali se gastou. Mas pronto, está lá, tem um ar moderno, deve ser obra de arquitecto iluminado. Espreitei o restaurante. Oh! Perdeu todo o ar familiar. Ganhou individualismo minimalista e perdeu em qualidade. Talvez tenham um chef ou algo parecido, mas espreitei as iguarias e não só não apareceram, como faltava sedução aos arranjos(taças de inox?) em que se encontravam alguns alimentos. Bom, junto à janela panorâmica ainda há resquícios de antigamente (para os saudosistas), mas tudo ocupado. Da empresa e da simpatia eficiente dos funcionários de antes não há sinais. O mundo está sempre a mudar. Aceito. Só receio que esta actualidade severa e cool não deixe memórias. Mas a minha amiga dilecta está encantada com a mudança e mais sua beleza; portanto, será inadaptação da minha pessoa, cuja perdeu um lugar de almoços e lanches. Paciência.

        O mais que me aconteceu conversamos noutro dia.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

À Beira da Cal

 

        Estudei que a memória nos carimba a identidade, possibilita o conhecimento qualquer que ele seja, permite recordar voluntária ou involuntariamente episódios, pessoas, o que ouvimos ou vimos, reconhecer cheiros, paladares, enfim, satisfaz um inumerável de necessidades humanas. E eu que retomo lentamente - muuuuiiito lenta e com vastas falhas – o hábito antigo de caminhar um pouco no fresco da manhã, sigo ainda em peregrinação. Sei o lugar de onde avistava o velhote e os dois sítios onde nos encostávamos ou sentávamos falando de nada. Passo onde o vi pela última vez, admirada do incomum onde se sentara extenuado. Atravessei a estrada e sentei-me a seu lado. E ele, é o coração, vim mais cedo, pela fresca, e deixei a cadela em casa; mas isto cansa-me, tive de parar aqui. E eu que já não o via desde o acidente e soubera que uma filha o levara consigo para outra cidade, eu que nem julgava voltar a vê-lo por ali, não perguntei se estava melhor, disse parvamente que já tinha saudade dos nossos encontros. E ele virou-me olhos de impotência onde li também saudade. Perguntei se queria ajuda para chegar a casa e abanou a cabeça, isto vai. Ficámos um bocadinho a olhar o silêncio da manhã com ovelhas ao fundo. Quando lhe notei intenções de partir, pus-lhe a mão no ombro e saiu-me uma mentira sem graça, tem de descansar o resto do dia e amanhã cá estamos. Ele, olhinhos mirrados no fundo de um poço de rugas, pele baça e amarelada, levantou-se trôpego e descrente de todo, e silabou, pois, amanhã. E eu colaborando, até amanhã. Atravessei a estrada e virei-me a olhá-lo na subida, passinho de bebé. Para nós dois não havia outro dia. Isso sabíamos.

        Entretanto, faço caminho. Passo pelo gato preto adormecido ao sol ligeiro, o cão que me refila possivelmente do outro lado da casa. Na beira de estrada ressalta a brancura cuidada dos muros caiados no estio, e na zona de vivendas há mudanças, os novos proprietários têm outra concepção de casa. Numa delas há um letreiro “vendem-se ovos”. É uma vivenda em tons laranja, barras brancas e várias paredes de vidro. Apesar do muro, vislumbro o conforto e até bom gosto de uma das salas. Um dia destes vou saber a razão de a senhora vender ovos. Talvez comprar alguns.

        À esquina do caminho de terra batida, um campo de ovelhas. São muitas e de idade diversa: carneiros velhos e gordos que se deslocam como reis, a passo, e ovelhas de igual porte; mas a maior parte do rebanho é constituído por animais jovens correndo lestos, aqui e ali; e há a ternura saltitante dos cordeiros novos, contentes da vida. Digo-lhes olá da estrada e eles, cada um em seu passo, aproximam-se a balir, e chegam à rede de arame que nos separa. Ficam ali balindo e faz de conta que somos velhos amigos que se reencontram depois de longa ausência. A quem os oiça e não conheça a espécie, não parecerá que acabámos de travar conhecimento. Dou-lhes as costas e eles com o focinho meio fora da rede, em cacho cerrado, mééé, mééé, mééé. E logo me vem à memória meu pai. Mal ouvia o nome de x, cuja incompetência detestava, saía-lhe escarninho, é uma ovelha, uma ovelha é o que ele é. E se nós, ó pai deixe lá isso, ele mastigava convicto e vingativo, uma ovelha, mais burro que uma ovelha.

        Dado o que me foi presente, meu pai tem razão acerca da inteligência dos ovinos. Mas que querem! Soube-me bem a corrida à rede apenas por cumprimentar. O que quer que lhes diga, acorrerão. E depois?!

domingo, 17 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        O predomínio do trabalho feminino no tecido social não é novidade. Na vida como no livro, o bem estar caseiro sempre dependeu das mulheres. Na casa dos outros como na sua, se havia buraco a que chamar seu. Nem sempre sucedia, as criadas eram como as coisas, permaneciam no local de trabalho. Dos objectos, que apenas cumpriam a sua função, digo que, caso pensassem, seriam os mais felizes. Que elas estavam para todo o serviço e disponíveis a qualquer hora. Como é que esta gente que sustinha uma casa com o corpo, e trabalhava da alvorada até noite alta, não era bem paga?! Mas não era. Tudo que conquistaram foi à dentada (força de expressão; por muito que lhes apetecesse, não mordiam ninguém) e por força braçal. Que eu saiba, os excessivos de limpeza e zelo não as enriqueceram, antes perpetuaram a pobreza.

        O teu livro, Eliane, escorre suor de fêmea sem tempo para sexo ou amores, exala cansaço de mulher e um imenso nojo do cheiro dos brancos. Também cheira ao bafo masculino a aguardente, vulgo cachaça. A cachaça iguala os homens e só o trabalho os distingue. Há os que trabalham e bebem depois; e os que só bebem. Todos fazem mau viver caseiro. Tia Olma convicta, “os maridos sempre são um peso na vida da gente, os homens são sempre um peso na vida da gente”. Se a vida era/é aquilo, está coberta de razão.

        E depois fazes enumerações sem vírgulas, Também elides alguns pontos, e encomendaste a Deus palavras que o dicionário não tem e expressões como “pés enferidados”. Para além da junção de palavras que tanto utilizas para referires membros da família louceira. Por exemplo, minhatia; o expaimeu. Num repente, escreves em espanhol  - vivias/vives(?) na fronteira Brasil Uruguai. E li que usas também o iorubá (serão as expressões e vocábulos que sublinhei e para que não encontro resposta). Desta mistura que adoças com o sotaque brasileiro, sai escrita bem original e interessante. Outra nota de diferença é o nome das cidades onde viveste ou viveram os teus cacos ora partidos – são a cidade com nome de santa; a cidade com nome de ana; e por aí. Nem uma cidade surge com o seu nome natural.

        Há mesmo uma referência a Pessoa (ou julgo eu que o seja) entre as páginas 197/198. Não me parece lisonjeira, mas é bem capaz de ter alguma verdade quanto ao que está encerrado na sua arca que nunca mais esgota. Acho eu que é arca sem fundo. És crítica, muito crítica mesmo; e não só acerca dos negros. Fazes referência a livros e não li sequer um deles; dizes estar enfartada das palavras dos brancos e mudaste a agulha para as dos negros. Mas a literatura é uma só e não tem cor, tem sim particularidades do autor e do que conhece, além do modo pessoal de interpretar a vida que escreve singularmente. Ou talvez eu esteja por demais habituada à leitura de escritores brancos. Mas tu és de cor. Negra. E gostei muito de te ler. Faz de conta que me bateste à porta com este livro e eu digo cá dos fundos, Avante!


Dois excertos a lembrar o teu jeito:


Nenhuma geração negra foi ou é completamente livre. A lei que libertava o ventre do corpo determinava que as crianças permanecessem em poder dos senhores de suas mães até os oito anos de idade. Depois poderiam entregá-las ao governo com direito a indenização ou utilizar seus serviços até os 21 anos. Também nunca aconteceu. Temos senhores ainda hoje. Dentro de nossas próprias casas”


aos dez anos tia Firmina foi internada pela minhavó numa instituição para crianças tortas na cidade do chapéu. (…) Tratava-se de um orfanato. Sinto vergonha de dizer que minha avó que me levava leite e bolachinhas na cama pela manhã, mandou minha tia para um orfanato onde as freiras exigiam que ela fosse uma menina quieta cristã tímida resignada silenciosa ordeira limpa disciplinada ingénua submissa, que fosse um não alguém ou alguém que desejasse viver o mínimo e morrer o máximo. Os desejos que o expaimeu desejava a mim, as freiras dirigiam à tia Firmina.”




sábado, 16 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        De forma nada original, o meu aniversário acontece uma vez em cada ano. Casualmente, tive uma surpresa agradável: deram-me “Louças de Família”, o primeiro livro de Eliane Marques, uma linda e cuidada mulher Afro-brasileira. As escritoras de hoje são assim: reúnem beleza, talento e aptidões várias. Esta jovem, que ganhou um prémio com a obra, é poeta, tradutora, psicanalista e coordena duas editoras. Como arranja tempo para tanto, só ela sabe.

        “Louças de família”, portentosa denúncia da subalternidade do mundo negro, narra a inglória vida das mulheres negras desde o presente racista e musculado até recuadas épocas de escravatura das tetravós. A trama, por analepse e outras figuras de estilo, desenrola a genealogia da trabalhosa e humilhante negritude familiar por lado de mãe e pai; e os homens ficam muito mal na fotografia. Tal condição bastaria para despertar o meu interesse. Reconheço o talvez preconceito: agradam-me obras de mulheres que denunciam a bota masculina sempre pronta a espezinhar (a despropósito, lembrei o quadro de Paula Rego onde uma criança de olhar meio perverso limpa a bota do pai, um possível GNR). Mas Eliane faz mais, muito mais que dar a ver o que ela julga pertença da relação masculino-feminino entre negros e é afinal coisa muito mais vasta e espalhada pelos quatro cantos do mundo, qualquer que seja o credo ou a cor da pele. O benefício sempre escolhe o lado do mais forte, é da História.

        O título, “Louças de família”, recorda uma telenovela brasileira, “Laços de família”. E induz em erro: a gente repara-o e pensa em louças talvez bonitas e valiosas, uns limoges de estimação, por exemplo; ou, em ímpeto nacionalista, peças de Vista Alegre com pergaminho e as inevitáveis rachaduras a fazer pendant; os monárquicos pensarão em loiça fina, heráldica - brasonada ou mesmo com coroa, onde um possível rei teria arrotado bifes do lombo e outras mordomias de ignaro nome. Nada disso. As louças de família são as empregadas pretas que passam de pais para filhos. Ai Eliane, Eliane, pensas tu que só às negras acontecia. Sabes lá o que se passava no mundo só de brancos de que tanto escarneces - ignoras mesmo, ou é assunto extra livro?!; sabes lá tu quanto branco de obediência feito fica fora desse coágulo de senhorinhas e doutores que nada fazem além de mandar e ser senhores. A “loiça” de Eliane são as negras que vão junto com o enxoval, se e quando a “menina” ou o “menino” casam. “Loiça”, são essas criaditas que nasceram na casa (ou quase), filhas legítimas ou ilegítimas de criadas mais velhas, seres que crescem sem escolaridade, mas vão buscar os meninos ao colégio e aprendem cedo a obediência à tirania infantil como se a dos senhores não bastasse. Utensílio imprescindível, seguem com eles para a vida de casados. Ocupadíssimas a criar filhos e filhos de filhos, muitas ficam solteiras. Dão por si velhas, os patrõezinhos mais novos crescidos e sem as quererem por perto que só estorvam. Mas elas, que nunca foram mães, guardam no coração os ternos momentos em que eram para eles o que as mães não foram. Algumas não guardam nada, Eliane, vê tu a perfídia que a tua colega escritora concebeu emCanção Doce”.

        Curioso é a protagonista do teu livro ser também uma odienta, uma insatisfeita que cresce do lado da fuga, do não querer ser como as outras mulheres da família. Mas não é uma “Canção Doce”, antes denuncia e rema contra toda a corrente que acarrete a sujeição humilhante de que foge desde cedo. Matar um pai asqueroso não é igual a matar duas crianças inocentes. Digo eu.

        Posso estar enganada, mas encontrei tanta semelhança entre as tuas negras e as minhas brancas que não sei mesmo, se igual dom nos bafejasse, qual de nós duas faria a história mais pungente sobre as mulheres que lhe pertencem. Tu inventaste as tuas. Eu vivo com as minhas.

(cont.)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A Alma Que Não Sei Se Tenho

 

        Há uma espécie de trégua de tudo nas horas de calor intenso: circulam poucos automóveis, o ar torra e estremece em ondas; no quintal, os vivos estão de orelha derrubada. Durante as tardes de calma, após o almoço e coisas de cozinha, e o mais que as mulheres antigas sempre trazem à ilharga, sento-me pesadamente desejando que o cansaço não parta a cadeira que tanto me agrada e comprei para um filhote. Sentada, liberto pés e mente – sendo dois extremos, experimento uma ponta de liberdade. Sinto os dedos suspirosos a expandir enquanto a mente evolve na procura de um agrado pensável, sem anotação de tempo ou outro destino que o habitar-me pacificamente.

        Troco os pés sobre os sapatos abandonados e sem graça. Observo a suculenta que estremece brevemente na vibração do ar condicionado. A violeta, mais afeita a ser flor, não bole uma folhinha sequer. A minha violeta tão velha e que vou mudando de vaso em cada ameaça de morte. As flores são assim, avisam. Dizem, ou tratas-me ou morro. Em silêncio, enconcham folhas, esbranquiçam, ganham piolho, o tronco desenraizando numa súplica, salva-me. Replantei-a, mudei-lhe a casa e o lugar, reparo-a todas as tardes (ou quase). Parece outra, jovem de pele, folhas em pose, tal bailarina em pontas, reverdecidas e cobertas de ligeira penugem cetinosa por onde passeio dedos de vagar e cuidado, admirando (oh!) o vigor dos músculos vegetais que a projectam. As três. Mudas e quedas. 

        Abro o portátil e elas sabem que vou permanecer. Antes disso, são dubitativas. Por qualquer razão, a suculenta tem o meu ar despenteado, uma data de filhos felizes da vida, virados uns para um lado, outros para outro, pontas a revirar. Ah, se eu tivera cabelo verde! Ou roxo, como a Menina do Mar, bonita como só ela, tão pequenina que cabia num baldinho de praia. A Menina do Mar foi o conto que o professor de psicologia nos deu a conhecer lendo extractos numa aula (sei, já contei isto). Também o li muita vez e a muita gente. Quem sabe, alguém que o ouviu o tenha guardado; alguém que também o leu ou contou aos filhos e mesmo a outras crianças; alguém cujo espírito acordou para a beleza das palavras de Sophya e o maravilhoso das suas histórias. Alguém que, sonho eu, se tornou melhor e mais belo(a) sem se dar conta e nesse espírito abriu portas a outros.

        Penso coisas assim quando me anexo às duas companheiras. Mas hoje não consigo desligar do exausto suplício de bombeiros esbraseados, dos fogos, do flagelo das árvores, seres vivos sem pés que se movam ou possam tentar a fuga; dos animais que as chamas mataram e dos que perderam o habitat; da vida de tanta gente sem lugar de pertença, apartada de casa por receios feito línguas incandescentes que de tudo se alimentam, haveres tragados pelo fogo. Os mais velhos, sem herança nem coragem para o recomeço, descoroçoados de todo, lembrados hoje nos media e logo esquecidos no seu infortúnio de amargura. 

        Vi na TV gente que, como eu, quer descansar na sua cadeira, mesmo que não seja sua; quer adormecer na cama que tem o colchão moldado pelo corpo; quer o canto de onde vê a rua, a janela que abre todas as manhãs adivinhando a paisagem que ora perdeu, o cão, o gato, a vaca ou o que seja que lhe era companhia e mesmo sustento; quer a vida que lhe pertencia e ganhou com esforço, que o pobre, se sobe e é honesto, deixa a pele e muito suor nos degraus. Vi em directo, no impudor que tudo mostra, a aflição gritada de moradores esfumaçados que regam e voltam a regar os quintais na esperança de estancar a irracionalidade descontrolada do dragão hiante. E a minha alma é cinza e negritude. Vejo correr os populares de mangueira na mão, os bombeiros incapazes e sem meios que bastem para acudir a tamanho inferno. E, no meio de tudo isto, ouço que algum fogo(s?) começou por volta da meia noite. Foi talvez a trovoada seca. Dizem-me que os fogos maiores começam de noite. Não asseguro que seja verdade. Sou um bocado lerda, palerma mesmo. Mas intriga-me que um fogo comece na serra e quando alguma frescura lhe chega. Sei que existem outros motivos e muito lapso humano.

        O que é que paga a dor que vemos nos rostos exaustos e desesperançados desta gente?! Quem repõe a ordem natural do planeta e as suas condições de habitabilidade, quando todos os anos são destruídos milhares de hectares de floresta?! Não há planeta que resista. Bom, o planeta é capaz de continuar. Sem nós.

domingo, 10 de agosto de 2025

Rabugem

 

        Quando criei este blogue – já não sei se este, se outro que tive e perdi no inúmero volátil das palavras -, propus-me a um optimismo que não me pertence: escreveria sobre assuntos diversos de amarguras e tristezas, faria uso de termos e sentidos edificantes como tanto leio noutras janelas onde passeio e daí que por detrás suponha pessoas extraordinárias, condição a que nunca acederei; elas não se desnudam, escrevem sobre o mundo; e o que pensam é invariavelmente muito à frente do que eu mesma sei ou imagino. Os seus propósitos são próximos ou coincidem com o dever ser. Dão-me a ver gente de boa índole mental. Que tudo o resto, e mesmo isso, é um “supônhamos”.

        Regressando ao assunto, propus-me discorrer criticamente sobre aquilo que menos me move neste meio: os desmandos e deformações do mundo em geral, mais a loucura de seus ocupantes. E, óbvio, contava histórias. De tudo que me propus, o que mais fiz foi contar histórias; e dessas, também a minha. Devo ser a pessoa (ou das pessoas) que mais se desnuda na escrita. Talvez me invente um bocado: a família não crê em quase nada do que digo, se conto factos que não presenciaram. Este anátema persegue-me, ainda que seja verdade integral, levam tudo por conta do meu imaginário. Parece agradável? Não é. Negam-me verdades à descarada; e desdizem-me peremptórios, afirmam mesmo não terem dito o que disseram e tenho presente. “Inventaste!”, é escolho que serve muito tema e sempre me pica.

    Uma das manas proibiu-me sem delicadezas a repetição: “já contaste isso, por que é que não te calas? Tens esse hábito de contar tudo mais de uma vez e com todos os pormenores, assuntos que não interessam nada”. E eu, cordata e sob o silêncio geral, prometi que não conto mais e vou ter cuidado com as repetições. Mas fico a pensar em quantas vezes ouvi dela as mesmas histórias e nem aflorei que já as ouvira. Porquê? Por achar natural que tal aconteça; avalio serem assuntos que a moem e se tornam mais leves se os contar de novo; ou penso ter-se esquecido que já os sei e ouvi-los não me faz, sinceramente, qualquer diferença (por temperamento é mais calada que eu, se conta, quase agradeço). Embora dentro da esfera familiar, manifesta-se sempre publicamente e fico um bocadinho sem reacção; fiz por ela o mais que consegui e voltaria a fazê-lo se fora necessário. Falar demais será defeito meu a que a circunstância dá uma mão – gasto a maior parte dos dias sozinha. Creio que também ela envelheceu, que a vida lhe foi difícil e a idade a está fazendo intolerante aos defeitos e feitios de cada um. Não duvido que me estime, embora sempre tenha pensado – quiçá orgulhosa e erradamente – que gosto mais dos meus amores que eles de mim. E um destes dias disse-me, de novo em família alargada e quando interrompi uma conversa para contar algo a propósito, “tu és sempre assim, também já te aconteceu tudo que contamos e tens sempre que meter a tua história, mas ninguém te perguntou, por que é que te metes? Tens esse defeito.” Respondi que tal observação me desagradava, mas, calmamente, dei-lhe razão e fiz, faço e farei propósito de emendar o comportamento. E ela – na presença dos vários e mudos terceiros -, nem entendo por que é que te aborrece, eu gosto que me digam os meus defeitos, assim posso emendar. Pensei que ora me encontra e expõe defeitos em demasia (há outros que não vale a pena citar) e que sem eles eu seria uma perfeição de pessoa, o que não me interessa um chavo.

        Acontece ter posição diversa: levo-lhe as características (as que me parecem menos agradáveis) à conta do respeito pela sua maneira de ser, e julgo haver muito mais para admirar nela; portanto, aceito sem crítica. E pensei ainda que, desde a adultícia, nem uma vez a critiquei; será ela perfeita?! Ou erro de novo em não criticar aquilo que é nela mais característico e nem considero defeito, embora não aprecie grandemente?! É que não sei mesmo. Sei o que não farei. Posso aconselhar isto ou aquilo. Não tenho arte para mais.

        Portanto, vou ter cuidado na sua presença: não lhe interrompo conversas com achegas ou histórias e tento não repetir nada. Prometi. Cumprirei enquanto conseguir morigerar-me. É mais um cuidado dos tantos que já tenho – cada dia nos tornamos menos livres no contacto com os mais próximos; se calhar tem que ser assim mesmo. Vamos acabar mudos como texugos (serão mudos, eles?!)

        A idade transforma-nos. A mim debilita-me o físico e pelo visto, faz-me ainda mais faladora do que sempre fui (queria morrer gasta - encontro-me em processo de aceleração contínua). A outras pessoas debilita a mente. A uns torna débil a paciência. Outros tornam-se intolerantes à lactose e a terceiros. Sabemos lá nós para o que estamos guardados! Urge encontrar um meio termo entre a liberdade que nos falta e o respeito pelo que os outros desejam que sejamos. Viver é complicado até ao fim. Mas, já perto do final, aprendemos coisas que gostaríamos de ignorar:))

Beijinhos e desculpem o desabafo


Nota: tenho a gata adormecida a meus pés. Só (n)as madrugadas nos pertencem(os).