Se colocamos em perspectiva os males de ontem, parece-nos quase sempre que os de hoje, que doem e fazem mossa no presente, são mais fortes, piores, crescem-lhes garras e cadeias de tormento. Ora, ainda que diverso disto, um dos grandes males de sempre é a luta insana e contra relógio que comanda a vida dos homens. Acontece demasiadas vezes a toda a gente.
Andava eu a apreciar as novas entradas no CAM, a experimentar entrar e sair; a sair para observar em pormenor o tecto da célebre pála, dando um soslaio para as várias cadeiras de plástico branco espalhadas na clareira em frente e onde algumas pessoas descansavam concentradas em si e parecendo satisfeitas com isso; e ia eu entrando de novo e descendo as escadas de mármore tão bonito agora tapadas com um metal que deve estar na moda, já que a entrada da Casa da Música também assim é, eu ressoando escada abaixo e aqueles bancos de pedra corrida a virem-me à memória - ainda estão no mesmo lugar -, eu sentada perto de adultos com crianças que comiam bolachas ou só vinham perguntar alguma coisa e retornavam à relva e à brincadeira; onde pares de namorados paravam para atacar os sapatos, ou apenas decidir se iam à biblioteca ou se estendiam na relva. Pensava nisso e nas cadeiras plásticas. A sério: apetece-vos ir para a Gulbenkian sentar numa cadeira plástica que podem mover no sol ou na sombra do terreiro?! Talvez apeteça ter uma peça móvel para sentar em modo unipessoal, já que várias estavam ocupadas. Retomando o assunto, é claro que no final da escadaria não estava o wc de sempre, mas outra coisa qualquer. E subi, pom, pom, pom. Fui comprar a entrada no museu e salta-me o jovem, a senhora quer mesmo entrar? É que daqui a um quarto de hora o museu fecha. E eu para dentro, mas quem me manda a mim andar a passaricar sem ver as horas?! Do lado de fora, sorri-lhe à simpatia e prometi voltar noutro dia. Ainda não era o dia de convívio com Paula Rego. Ora bolas!
Semanas passadas, lá me pespeguei. Lembrada de que não encontrara o wc, resolvi investigar-lhe o paradeiro. Não sei se consigo encontrá-lo de novo, tanto corredor branco baralhou-me, senti-me, ao vivo, num filme de ficção científica - julgo que tudo em mármore, mas preciso confirmar, atordoei um bocado. Com ajuda, atingi o objectivo. Satisfeita a primeira condição, marchei contente ao museu. Ia disposta a sentar-me em contemplação, Paula Rego é alguém que admiro e gosto-lhe dos temas. Mas qual contemplação?! Os quadros estavam lá na sua inteira realidade, na feiúra bela em que Paula os concebeu. Algumas figuras parecem querer sair da pintura, apostrofar-nos; aquelas mulheres-homens cheias de músculo, o sofrimento de tantas, a ingenuidade daquela, a amargura nos vincos de rostos endurecidos. E o simbolismo de tudo: Portugal a derramar-se sem espartilho. Enfim, eu queria mesmo era ver em pormenor e com tempo – fui cedo e tudo. Mas não havia onde sentar-me e a minha acção contemplativa não transige: só funciona na posição de sentada. É forçoso. Portanto, vi-os sim senhor, mas não contemplei. Gostei da sensibilidade que soube juntar Paula Rego com Adriana Varejão, gerações diferentes e parecidas. Admirei os rasgões de Adriana lembrando carne lacerada e outros golpes. Até achei bonita a disposição das pinturas em pequenas salas de faz de conta. Mas quem é que, num museu reconstruído, se lembra de expor pinturas e lhe retira o sentar?! Será também uma nova técnica?! É que o único banco que vi, curiosamente, estava nas costas das paredes onde as obras estão instaladas, espaço que, a bem falar, já não é exposição. O que pensaria disto Rui Mário Gonçalves, crítico de arte e professor universitário, que, como primeiro trabalho, pedia aos alunos que olhassem um quadro do MAC durante meia hora para depois escreverem as suas impressões.
Será que a concepção da exposição, ao preferir as divisões de casa falsa, retira a distância necessária à contemplação? Pode ser preconceito, conservadorismo elevado à última potência, mas ausência de todos os assentos?! Todos, todos?!