Sou,
em sentido musical, uma herege, o meu
ouvido não se habitua ao bel canto e nem sabe apreciá-lo. A ópera, ó sacrilégio, cansa-me as meninges
feitas para coisas pequenas e menores, sem elevação tonal, talvez mesmo medíocres.
No entanto, convencem-me pequenas árias lamentosas, a voz
trinando baixo; e, presa de característica
vocal específica, um intérprete ou outro. Foi com este sentir que assisti “Madama
Butterfly” na Gulbenkian.
Possuía
o ingresso há meses. Porque o filme do mesmo nome, inesquecível e interpretado
por Jeremy Irons, me incentivou ainda que divergente na história; por ser o último
espectáculo da temporada e me nascer a esperança do inefável jardim em fundo
musical, como sucede em concertos especiais e que é demais de bonito; por a
presença do coro somar pontos ao concerto. À beira do acontecimento, soube que
também ias; acredita, foi uma doce viagem.
Agora
repara: o coro quase não cantou; não houve o fundo verde do jardim iluminado na
noite; vi-te de raspão na entrada, desencontrámo-nos no intervalo que perco
faculdades em multidões selectas e deixo de ver. E no entanto, na esplanada
repleta, bebias café com a família. No final, levaste-me a casa perseguidas
pelo carro do lixo que é como quem diz, deixaste-me e seguiste. Só os olhos
mataram a saudade imediata e fácil. A outra, a que dói e importa, a que se faz
buraco cá dentro, permanece. Estavas em família, não era nem havia o tempo de
sermos as duas.
Mas
o espectáculo. O que gostei da orquestra toda em traje de gala, do drama às
escâncaras na música de Puccini. Somos levados pela história - contada e cantada - desde
o esplendor amoroso que tudo dá e nada exige, até à solitária insistência na esperança
pungente, crença amorosa que se rende apenas no confronto com o intransponível
muro da realidade. E há desde o início o presságio de angústia e solidão a rodear a doce Butterfly. Que admirável
a soprano Melody Moore, uma Cio-Cio-San (Butterfly) extraordinária. A pureza e
sensibilidade da voz a ecoar no silêncio, sinais inenarráveis da sua qualidade
artística e humana. Tão, mas tão aplaudida. Naquelas três horas,
Butterfly tomou posse. Reinou.