E nos caminhos de Belém, palmilhando
covas e cabeços, logo o pastor pôs aos ombros o cordeiro que a
mulher levava à ilharga e assim se desculpou dando aso a uma figura
do presépio que colhe simpatia geral. À medida que se aproximavam
do estábulo, o brilho da estrela era tal que só de óculos escuros,
benefício que apenas o correr dos séculos traria e portanto eles
entraram encandeados, olhos no chão. As mulheres limpando os olhos
com as costas da mão, que coisa, até me choram os olhos com a
claridade. E já dentro, mirando o desajeitado ar masculino, o aviso, cabeça descoberta que somos visitas em casa alheia. E no
“casa alheia” entreolharam-se, seria um estábulo uma casa?! Mas
logo se endireitaram nos xailes, que a dignidade não tem condição e
vinham a saudar um deus. Num ápice, esqueceram o papel da criança e
quedaram desvanecidas a contemplar o recém nascido, mãos de trabalho pesado, como que envergonhadas, esboçando gestos macios à beira da manjedoura, num desejo de rendas e sedas a envolver o deus e certo receio dos animais ali tão perto, e se abocanhassem o Menino? Mas Maria que não, o burrito era manso e a vaca igual; além disso não iam engolir um deus, não tinha jeito nenhum, ele ainda tinha de salvar o mundo. O seu filho era o salvador. Mas ia chamar-se Jesus. Mais vale um Jesus que a data de Salvadores que existem e não salvam nada. Digo eu.
As mulheres ajoelhavam para vê-lo melhor, e só não se benziam por me parecer que era gesto ainda não inventado. Mas enlevavam, ai,
olhem-me esta beleza de criatura. Está
esfomeado o pobrezinho, reparem na boquinha. E viravam-se para a mãe,
pois com certeza, o leite ainda não subiu, há tão pouco nasceu. E
logo a da lata deu serventia ao presente e encheu o mundo - e a criança - de
contentamento. Nenhum problema gástrico, nada, um deus é deus por
dentro e por fora.
Enquanto davam conselhos e sugestões
as nossas fadas benfazejas punham os presentes a jeito, barravam um
naco com mel e serviam Maria. Diligentes, fizeram uma fogueira e em
águas aquecidas assearam os dois, mãe e filho, um capote erguido
a toda a largura fazendo parede. Ao fundo do
estábulo, os homens escutavam. José contava
a história da deslocação do casal vindo
da Galileia para Belém de
onde era natural; e o facto de todas hospedarias cheias, pô-los
duvidosos e incrédulos, meneando a cabeça. Um deles estendeu o
braço sobre o ombro de José e resumiu o que pensavam, se em vez de
um burrito tivesses uma carruagem, e em vez dessas vestes de
trabalhador tivesses brocados e linhos de qualidade, havia muito quem
vos aceitasse na mira de boa paga. Mas um trabalhador com mulher à
boca de parir?! Não tomes como ofensa feita a ti, se fora outro como
tu ou como eu, acontecia-lhe igual. E faziam
conversa, davam sugestões para o caminho,
um olho no Menino que já dormia regalado e outro na manhã que
nascia. Foi então que as mulheres deram pela falta, a estrela tinha
desaparecido e a alvorada já clareava,
os vultos enovelados no escuro em redor iam-se fazendo arbustos,
árvores, animais. E era isto também um milagre. Diário.
Logo uma mulher ajoelhou, ai que nunca
na vida eu soube de estrelas que descem do céu para dar caminho a
pastores. E nunca os pastores foram os primeiros a saudar um deus e
ainda menos a vê-lo bebé. E só não disse, “louvado seja Deus e
sua mãe Maria Santíssima”,
porque, como é de ver, ainda a Santíssima
era apenas Maria e o Deus um bebé adormecido.
Alimentaram o fogo, atiraram beijos
e sorrisos
ao Menino que dormia num corpo só com o cordeiro, e
abraçaram
Maria com sábios entendimentos de comadres antigas, esquecidas já do
mistério divino: vai ver, esse é só o primeiro. E os homens da
porta, cabeças cobertas e vontade de asas nos pés, tenham saúde e
regressem em bem ao sítio onde moram que a gente tem de ir. José
ficou na porta a acenar e a jovem Maria não reteve as lágrimas,
gente tão boa que nos veio visitar; não há o que pague esta ajuda. E olhando a criança, é um Deus
para o mundo, mas para nós é só nosso filho. E oxalá ele se lembre de quem primeiro o alimentou.
Mas depois de crescido parece que ele ligava mais a pescadores e aos que perdida uma consoante nos pescadores somos todos. Bom, do cordeiro gostou a sério. Tanto que lhe tomou o nome.
Acerca
de avanços de Natal: pouco.
Descobri que o meu Menino preferido (pois, tenho preferências)
tem o pé mais lascado; falando bem e depressa, falta-lhe o pé.
Palpito que o mistério se
chama mulher a dias, cada ano
parte um bocadinho. Desta vez,
faço-lhe
um curativo. As velas vermelhas apareceram e estão festivas. Mas,
malogradamente, no meu presépio não há José. já houve, mas
era minúsculo e tinha um bigode suspeito que
lhe dava ar de traficante. Julgo - não vi - que a ovelha, que é maiúscula, comeu o santo durante o ano.
Papou-o.
Portanto, aborrece-me um bocadinho ter dois anjos mui natalícios,
uma Nossa Senhora
gigantona,
um Menino dentro das medidas e uma ovelha corpulenta que
nem vaca bordalesa. Mas é o
que há.
Aviso: por razões de excepção
faremos um intervalo na escrita. Tenham saúde e fabriquem alegrias.