segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Menino-Deus

 

        A verdade é que a sequência de dias e anos é medida nossa, mero fragmento da duração em que existimos qual ponto minúsculo e tanta vez desambientado. Nessa teia feita de horas, somos heróis e homicidas, abjectos e luminosos, doloridos e alegres. O tempo humano confere-nos dimensão, mede-nos, enquanto ela, a duração, se mantém intacta e imune a humanas medidas.

        Portanto, não sei o que contém a expressão “Ano Novo, Vida Nova”. Dito de modo mais razoável: como pode uma data convencionada mudar o eu - o meu e o de toda a gente. Sim, Como?! Pois se continuamos sendo os mesmos, não despimos a pele que nos veste, não mudámos sentimentos que nos alegram ou entristecem consoante aproximem ou afastem de quem gostamos, não abraçámos novos credos e as novidades que o corpo apresenta não são as melhores; porém, para o bem e para o mal, estamos juntos eu e ele, com proximidade máxima, tão máxima que nos pertencemos mutuamente e nada de um exclui o outro.

        Não sei se confio em ti cegamente. Confio o suficiente para te autorizar a fazer o que te dê na bolha. Para mim, os outros e o mundo. Cabe-me dizer sim. Sem propósitos que nunca cumpri senão em tempos inaugurais.

        Para o ano falamos sobre, ok?


Nota: apesar da descrença, desejo a todos os que nele esperam um ano 2025 que não defraude.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Dia Vinte e Oito - Onde se Conta uma História

 

        E, para os lados do estábulo de Belém, os dias passam em velocidade extrema. Maria pode ser a mãe de Deus mas é criatura muito humana e nada habituada a partos e bebés recém nascidos. E os seus receios, normais em qualquer adolescente, redobram por criar e alimentar o filho de Deus. Julgo que nem ela saberia bem o que fazer com o parentesco que a deixava com dois maridos um dos quais divino e completamente desconhecido. Bom, imaginamos que esse problema havia de lhe chegar noutras horas que, tão longe de casa e a braços com o primeiro e último filho divino que teve, nem a virgenzita tinha cabeça para tanto. E depois não havia telefones e muito menos telemóveis, a pobre teria de inventar o que ignorasse. Mas deu conta do recado que Jesus cresceu e, a crer nos quadros que povoam o mundo da cristandade, fez-se rapaz muito bem apessoado: cabelos longos e meio ondulados a dar para o castanho dourado, risca ao meio sem um átomo de cabelo fora de sítio (devia pentear-se muita vez). Cabelo bem lavado, túnica sempre limpa e uns olhos azuis de fazer inveja a qualquer. Não asseguro, mas as multidões que seguiam Jesus deviam ter em maioria as mulheres. É apenas pressentimento. Imagino um nazareno lindíssimo - assim surge nas estampas -, bom comunicador, pregando o amor entre os homens e o inestimável valor das crianças. Era um bendito entre as mulheres, pois claro. Por isso e outras coisas, Maria Madalena não esteve com meias medidas, lavou-lhe os pés e enxugou-os com os seus próprios cabelos – longos, sedosos, loiros. Nem sei como conseguiu, os cabelos não dão para secar coisa alguma; devia usar bandelete ou lenço na cabeça, só pode. Gosto de imaginar a cena. É que é mesmo de amor devotado.

        Por outro lado, as dúvidas atazanam uma pessoa, roem-nas até ao tutano: apresentam Cristo de perinha bem aparada e por vezes bigode; pois os nazarenos não serão quase todos morenos, barbudos e escuros? Mas sempre nos mostram imagens de gente celestial branca e loira. Então?! Algum preconceito há contra a pigmentação dos(as) morenos(as). Ou será só a admissão que a corte celeste também sofre de racismo?! Ná, na m’acardito.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

É Hoje:)

 

        Logo à noite nasces tu no presépio de lata que canta o Rui e o Tê disse de forma tão bonita como crua. Nasces de novo e nada acontece. Ou sim, acontece que, lá no etéreo onde moras, apagas as duas mil e tal velas de aniversário que, provavelmente, são ínfima parte dos brilhos natalícios, benefício eléctrico que desconheceste. E Deus-Pai e Virgem Eterna batem palmas e dizem Viva!!! Mas acredito que tiveste um lume de chão a transformar a frialdade da noite e que não agoniaste como eu com o cheiro a fumo e o dos bichos e mais seus excrementos a envolver-te. No presépio não há bosta de vaca nem de burro, está tudo limpo e todos os caminhos convergem para a gruta. O imaginário comum faz como eu, põe à boca de cena o que importa e é mais bonito. Porque sem beleza não vivemos.

        O que terias de fazer, Jesus, não é mudar o mundo. É mudar o sentido do pensamento humano. Que para mudar o mundo estamos cá nós. Se o pensamento conciliar razão e afectos, se detiver humanidade, salvamo-nos. E talvez encontremos parte da beleza que uns perseguem e outros, por facilidades várias, obliteram.

        Bem hajas pelo Amor e Esperança que ganhamos de Ti em cada ano.

        Um beijinho


domingo, 22 de dezembro de 2024

Menino-Deus

 

          Não venho pedir por mim. Tampouco para mim (talvez também para mim, 

mas por decorrência). Mas venho pedir.

        E não me interessa se é em Gaza, se em África, se na Síria ou nos Polos. É no mundo. No mesmo mundo em que vivo e a que pertenço. Neste mundo discrepante e inédito a que chamamos com propriedade “O planeta azul” - a cor que predomina se visto do espaço. Mas creio bem que, se pintassem de negro as zonas onde matam, exploram e causam dano a crianças, tenho certeza que na Terra o xadrêz da tristeza imperava. Deixaria de ser Planeta Azul.

        Com sinceridade te digo que não te creio capaz de sanar tal problema (é falta de fé, que queres). Mas é bom que tomes conhecimento. E por que havias tu, que até nasces igual a qualquer criança, de resolver os problemas criados pelos homens, as insanidades de quem manda, os exageros bélicos, a doideira de poder que comanda esta nave dos loucos em que se está a tornar o planeta Terra?! Não tens de resolver. Mas não te dá pena que existam meninos e meninas que morrem apenas por existirem déspotas? Tirar-lhes a vida tão cedo, estropiá-los, matar-lhes a família, não te parece do pior?

        Estudei em algum lugar o mal radical no qual nunca acreditei. Pois começo a crer na sua existência. E acredito que exista desde sempre (também eu, num repente, me afirmo radical), não é uma moda, mas um sinal dos tempos que atravessamos onde a crueldade e o despudor tudo permitem: ser mau carácter às claras, violar as leis e os pactos, dizer hoje isto e amanhã o seu contrário, falar muito e não decidir verdadeiramente nada.

        As crianças, esses princípios de gente que todos dizíamos respeitar. E que serão, sem dúvida alguma, os homens do futuro.

        Vê tu se lhes acodes que eu não consigo. E me custa pensar que, mais longe ou mais perto, talvez já não lembrem o Natal. Ou prefiram esquecê-lo.


sábado, 21 de dezembro de 2024

Dia Vinte e Um - Recado ao Menino

 

        Olha meu Menino, sinto a consciência pesada por não dar seguimento diário ao proposto: o calendário de Natal. Mas como é meu e ninguém conta os dias por ele – Graças a Deus – Tens de o aceitar desdentado porque, deve ser o peso dos anos, a noite apanha-me em imundo cansaço, trapo velho e incapaz - não leio; não ouço música; não vejo filmes; não escrevo. Adormeço prontamente, como se o corpo não esperasse mais que a posição horizontal. O corpo, esse traidor, age em nosso nome e sem que o queiramos. És bebé e não sei se entendes isto, creio bem que só por seres Deus entenderás - aos trinta e três anos eram outras as tuas canseiras.

        Bom, tu sabes, não existe época do ano que mais goste. Ter a família reunida, consegui-lo ainda, é quase milagre. E podes crer, dou-te graças por isso. A ti e a quem me ensinou tal prazer sem tê-lo experimentado.

        Mas não há apenas a família. Há os amigos. Os que o são por desejo nosso e vontade e a quem enviamos presentes ou apenas um cartão, segundo o grau de intimidade e conhecimento que deles temos; os que conhecemos de há muito e têm necessidade disto e daquilo e a quem procuramos acudir nesta época porque dar e receber se torna mais fácil e não magoa; aqueles a quem queremos oferecer um agrado porque se lembram e gostam de nós embora sejam mais velhos – ou sobretudo porque o são. E é como se estendamos braços em muita direcção e os abracemos, gratos por existirem e serem importantes na nossa vida. E se eles não o entenderem assim? Não interessa, essa parte não é pertença nossa.

        Prometo: vou terminar a tua história, o Dia de Reis ainda fecha o Natal. Ou não?! E entre Natal e Ano Novo a casa vai esvaziando e tornando a si. Aí, vou aproveitar e colocar sobre os teus joelhinhos escarolados e frios a mantinha da minha história, tecida letra a letra com as agulhas do meu pobre imaginário. Não é manta de luz, mas aquece.

        E por favor, não te deixes constipar, não apanhes a gripe A que cavalga por aí. E que Deus que é Pai teu, e parece que de toda a gente, te guarde.

        Um abracinho doce desta que s’assina

        Bea

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Dia Dezoito - Loas ao Menino (e a moi même)

 

        Pois meu Menino Jesus estou contente, comprei as últimas prendas de Natal. Estive quase duas horas a experimentar roupa, mas saí feliz da vida. Desejo mesmo que as minhas prendas agradem. Mesmo, mesmo.

        Olha, esqueci de olhar a iluminação da Rua Augusta, mas a da Prata, do Ouro e dos Fanqueiros estão amorosas e simples. Quero crer que a iluminação da Rua Augusta supere a das outras e os tais pára-quedas iluminados sofram forte mutação (ou os tenham retirado).

        Fui ouvir Martim Sousa Tavares que vive em Évora (disse ele) e veio a Lisboa dissertar sobre o livro que escreveu e autografou. Ou, com mais acinte: veio falar da beleza de três cidades e que não divulgo, a ver se adivinham ou pelo menos ficam curiosos. Prometeu que faria uma dedicatória e não um autógrafo a quem comprasse o livro logo ali. Se desejar "boas leituras" é dedicatória, devia ir ler as que fez o Alvim quando veio a Cabrela. A minha tem uma página, o rapaz esmerou-se e personalizou. Tinha pensado comprar o livro por admirar o autor e gostar do título “Falar Piano e Tocar Francês”. Foi hoje. Mas assistir uma conferência de pé, não se faz. À boca da noite o esqueleto já se queixa por tudo quanto é sítio. Para mais,   cheguei carregada que nem mula de carreira, ou mesmo tendeira de mercado mensal. Vi-me forçada a arriar a bagagem e pedi, julgo eu que com olhos encarecidos, um espacinho a uma jovem pouco disposta, para poder encostar-me à parede. Estávamos ali num aperto daqueles, sem lugar onde pôr as mãos ou espaço para mudar os pés feito galinhas, ora numa pata ora noutra; toda a gente queria a parede. Mas foi o que me salvou do desmaio, tenho esse mau hábito se estou parada de pé e sem apoio durante algum tempo.

        Ressalvo um encontro tão imediato como inesperado que penso ter sido um encontro de Natal. Maravilhosa surpresa essa a de revermos alguém de quem gostamos e nos desejarmos mutuamente Boas Festas, coisa que já tínhamos feito na imediatez dos sms (mas não é a mesma coisa, pois não?). Aconteceu. Sem combinação prévia e só por estar escrito nas estrelas. Ainda bem que  as estrelas têm destes apontamentos (longo suspiro de alívio e gratidão).  

        Neste momento, e depois de viagem solitária - está visto que os alentejanos se fecham em casa ao escurecer -, depois de inflectir para Sul não sem pensar, e se fosse para Norte? ou já na via certa: E se mudasse de faixa e fosse por exemplo para o Oeste? E logo deslizo pela ponte a inventar presépios  e águas que me acompanham ao destino; ainda assim, mal saio do "Montijo cidade aberta", logo que a iluminação de beira de estrada cessa, invento lugares desconhecidos por onde vou passando, sítios mágicos rodeados de escuridão onde me sinto invasora de sobreiros imbuídos em frio e silêncios repousados. E peço-lhes desculpa, perdão por perturbar o vosso sono. Pegões quebra-me a fantasia com suas pipas rotundas lembrando ofício da terra. Passo numa pizzaria admirada, olho aberto a desoras e uma linha de luzes natalícias sobre a escâncara da porta. Pertence a um indiano; saber de experiência feito, mantêm a síndrome da porta aberta. Sorri. Qual será a razão de um indiano se deitar a fazer pizzas?! Mas noto neles o desejo de integração cuja prova está na breve linha luminosa.

        Chego bêbeda de sono e cansaço, palavras e linhas já me dançam. Portanto, meu Menino, dorme bem que inda estás na barriga de tua mãe e, de certeza, não vais ter melhor vida. Se acaso te perguntassem, acharias tu que a vida te foi feliz? Ou vieste apenas cumprir destino, o fado que te pertencia.

Nota: desculpem qualquer erro no texto. O sono não dá para mais.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Dia Dezassete - Onde se Conta uma História

 

        Deixemos pois os pastores a caminho do ofício que já berrava por eles com quanta força tinha e às marradinhas à porta do curral, enquanto as mulheres quase corriam por covas e cabeços com a garotada na lembrança, que isto de não haver TV nem mundo digital, já se sabe, dá muito filho e muita apoquentação, ai se caíram ao poço, ai se algum lobo ou raposa os levou, ai se pegaram fogo à cabana, ai.

        Bom, sabemos também que, mal os primeiros raios de sol puseram antenas de fora, a estrela de cinco pontas adormeceu no posto toda encarquilhadinha e involutiva, sem ponta por onde se lhe pegasse, que é assim o sono das estrelas, só perdidas de si mesmas conseguem repousar. Os humanos são bastante parecidos, mas sonham, não perdem completamente o hábito de serem homens, o que algumas vezes é uma pena e um desperdício. À estrela fechavam-se-lhe os olhos sem querer, ninguém percebia a razão de piscar como as ambulâncias, mas agora sabemos que piscava de sono e esforço por se manter acordada. É que assistir a um parto divino sem poder fazer mais que iluminar, deve ser cansativo e frustrante, estrela que se preze quer fazer mais. A pobre estrelinha só não ganhou ali mesmo um complexo qualquer porque suponho que ainda não tinham sido inventados. Quer dizer, haver havia, mas não eram nomeados. E há quem diga que o que não tem nome, não existe, que não se pode falar ou pensar no que não tem nome, etc. Mas este assunto não vem à liça senão com a estrelinha de Natal e ela, garanto eu, estava pelos cabelos de tanto nervoso miudinho. E depois, Deus-Pai já lhe tinha feito saber o que estava por vir. Portanto, era dormir o quanto pudesse, disfarçada de não presta; acordar fresca a meio da tarde e tratar dos brilhos estelares, que isso, meus amigos, compete a cada estrela. Primeiro havia que lavar os longos cabelos loiros com gema de ovo e depois espalhá-los e deixá-los secar à luz do sol para aloirarem mais e carregarem baterias. Para quem não sabe, os cabelos das estrelas são o brilho que vemos. E carregam a luz solar, estilo painéis. Ficam eléctricas as estrelinhas. E o que fazem essas meninas durante as horas de carregamento? Ora, lêem livros, cortam a franja e as pontas espigadas, tagarelam umas com as outras e só não pintam as unhas por não terem mãos - com meia carga ouvem-se de um fim de mundo ao outro.

        Entreguemos a estrelinha a seus afazeres e vamos espreitar a sagrada família. A Maria já subiu o leite e o Menino mama regalado sob o olhar desvanecido dos pais. Sim, dos pais. Pai é quem gosta dia a dia sem quebra, quem cria e cuida, quem ensina uma profissão, quem ensina a falar e a andar, quem educa, quem se preocupa a vida toda com o filho; quem, por amor, mesmo que ele vá à sua vida e o esqueça, jamais olvida a função. E José era assim. Vejam bem, Há um Deus-Pai verdadeiro; de sangue, quero dizer (duvido que Deus-Pai tenha sangue, mas isto sou eu), e um filho que é dele. Certo. Também é verdade que são três em um, e onde está um estão os três. Mas este Deus-Pai, só se lembra que é pai quando o filho - já homem – é baptizado. Ah, aí diz lá do alto da sua imponência, “Este é o meu filho muito amado no qual pus todo o meu enlevo”. Pôs?! Pôs mas não disse a ninguém. E José disse a toda a gente que Jesus era filho dele, não que eu o saiba de fonte certa, mas era um viúvo de meia idade e boa índole que não percebo bem para que escolheu uma menina de doze anos (quando a escolheu devia ter dez ou onze) e nem quero pensar muito nisso para não ficar com ideias (mais) parvas. Bom, talvez Deus-Pai tenha tido as suas intenções na escolha de um homem de meia idade (meia idade é favor, há quem diga que tinha quase oitenta anos), não duraria muito, desaparecia quando já não fizesse falta. Quanto materialismo ó Deus-Pai! E nem vou falar do Espírito Santo porque sou contra essa pomba ininteligível.

        Do meu natal: vai andando. Hoje pintei alguns cartões de boas festas e enviei os meus embrulhos de sempre. Como as tintas secaram quase todas foi chapa cinco. Logo eu que gosto de variar nas cores e ficar a pensar a quem envio qual. O meu caixote do lixo está solado de tubos de acrílico inúteis e mais secos que eu.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Menino Jesus

 

        Tens de desculpar, mas ainda não é hoje que sigo com a tua história; atrasou além do previsto. Bom, se não quiseres, não desculpes. A minha parte está feita, o resto, como dizem(?) os ingleses, “it’s up to you”.

        Pois tenho a dizer-te que me deixei dessa coisa do espírito de Natal e vou fazendo o que me cabe – e é bastante - com mais ou menos vontade. É para fazer, faça-se. Sim, sim, com a alegria possível e a velocidade que a idade permite.

        E digo-te mais, essa coisa da Lapónia não está com nada. Tu que é que tens a ver com pais natais e renas com nome de gente, hã??! Que confusão, nem sei como é que as crianças se desenrascam com prendas de pais natais ajoujados por sacos de brinquedos muito maiores que eles – é que são velhos, ouviste? -, e prendas no sapatinho de Meninos-Jesus-criança que entram pela chaminé, também eles carregadíssimos. Em meus tempos de desvario fantasioso inventei que o pai natal vinha ajudar o Menino Jesus; ele, criança como é e com um mundo inteiro de gente à espera de presentes, muito sapato, muita bota e etc, não dava conta sozinho. E ficámos assim.

        Mas pronto, escrevo a contar que, finalmente, conheci mercados de natal e não são nada de especial; vendem, quase em exclusivo, comida. Sofri temperaturas abaixo do hábito (sofrer é o termo exacto); não bebi vinho quente por elevada probabilidade de me dar uma tartarinha gástrica logo ali, e porque o vinho tinto, bem sabes, cinjo-o ao “tinto de verano”. Pior, bebi um chocolate quente que não chega aos calcanhares do que fazia aqui em casa com as tabletes espanholas de cacao à la Taza. Aquele era um leite com chocolate em pó normalíssimo e que não me assentou, estou em crer que adquiri vísceras de cristal. Espectáculo.

        Parece-te que nada me agradou?! Falso. Gostei da cidade toda vestida de Natal. Em festa. Os parques estão uma beleza – conjugam a natureza com o artifício. Senti-me dentro de um conto de fadas. E gostei um imenso do estúdio de pernoita, era tão lindinho e confortável que terminei a metade do livro “Toda a gente tem um Plano” que tinha deixado para ler no regresso. E viajei aborrecidíssima sem leitura, papel ou caneta.

        Cada vez admiro mais Bruno Vieira Amaral e seus demónios. Talvez porque vivemos num mundo muito parecido, conheço quase todos os lugares e bairros que descreve. Sei aquelas ruas, as varandas, as paredes desfalcadas de tinta, os grafitis sem estilo, porcos. Sei as lojecas de pobre e o rosto de quem vende e de quem compra. Sei a pobreza mais pobre de tudo, o ambiente “pouco recomendável”.

        A minha alma enche-se de alegria e orgulho porque o Bruno conseguiu singrar no mundo das letras. Um menino vindo do Vale da Amoreira. Ele e Itamar Vieira Júnior são a minha aposta maior. Haverá outros. Mas é a eles que pertenço.

        E já agora, Menino, protege os meus amigos, atenta especialmente nos do campismo e que hoje estão dispersos pelo mundo, ocupados a viver a vida que lhes coube ou que escolheram - é bom pensarmos que fazemos escolhas; mera vaidade, mas soa bem, outorga-nos poder. Protege quem participou na mais linda surpresa da minha vida.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Dia Dez - Onde se Conta uma História

 

        E nos caminhos de Belém, palmilhando covas e cabeços, logo o pastor pôs aos ombros o cordeiro que a mulher levava à ilharga e assim se desculpou dando aso a uma figura do presépio que colhe simpatia geral. À medida que se aproximavam do estábulo, o brilho da estrela era tal que só de óculos escuros, benefício que apenas o correr dos séculos traria e portanto eles entraram encandeados, olhos no chão. As mulheres limpando os olhos com as costas da mão, que coisa, até me choram os olhos com a claridade. E já dentro, mirando o desajeitado ar masculino, o aviso, cabeça descoberta que somos visitas em casa alheia. E no “casa alheia” entreolharam-se, seria um estábulo uma casa?! Mas logo se endireitaram nos xailes, que a dignidade não tem condição e vinham a saudar um deus. Num ápice, esqueceram o papel da criança e quedaram desvanecidas a contemplar o recém nascido, mãos de trabalho pesado, como que envergonhadas, esboçando gestos macios à beira da manjedoura, num desejo de rendas e sedas a envolver o deus e certo receio dos animais ali tão perto, e se abocanhassem o Menino? Mas Maria que não, o burrito era manso e a vaca igual; além disso não iam engolir um deus, não tinha jeito nenhum, ele ainda tinha de salvar o mundo. O seu filho era o salvador. Mas ia chamar-se Jesus. Mais vale um Jesus que a data de Salvadores que existem e não salvam nada. Digo eu.

        As mulheres ajoelhavam para vê-lo melhor, e só não se benziam por me parecer que era gesto ainda não inventado. Mas enlevavam, ai, olhem-me esta beleza de criatura. Está esfomeado o pobrezinho, reparem na boquinha. E viravam-se para a mãe, pois com certeza, o leite ainda não subiu, há tão pouco nasceu. E logo a da lata deu serventia ao presente e encheu o mundo - e a criança - de contentamento. Nenhum problema gástrico, nada, um deus é deus por dentro e por fora.

        Enquanto davam conselhos e sugestões as nossas fadas benfazejas punham os presentes a jeito, barravam um naco com mel e serviam Maria. Diligentes, fizeram uma fogueira e em águas aquecidas assearam os dois, mãe e filho, um capote erguido a toda a largura fazendo parede. Ao fundo do estábulo, os homens escutavam. José contava a história da deslocação do casal vindo da Galileia para Belém de onde era natural; e o facto de todas hospedarias cheias, pô-los duvidosos e incrédulos, meneando a cabeça. Um deles estendeu o braço sobre o ombro de José e resumiu o que pensavam, se em vez de um burrito tivesses uma carruagem, e em vez dessas vestes de trabalhador tivesses brocados e linhos de qualidade, havia muito quem vos aceitasse na mira de boa paga. Mas um trabalhador com mulher à boca de parir?! Não tomes como ofensa feita a ti, se fora outro como tu ou como eu, acontecia-lhe igual. E faziam conversa, davam sugestões para o caminho, um olho no Menino que já dormia regalado e outro na manhã que nascia. Foi então que as mulheres deram pela falta, a estrela tinha desaparecido e a alvorada já clareava, os vultos enovelados no escuro em redor iam-se fazendo arbustos, árvores, animais. E era isto também um milagre. Diário.

         Logo uma mulher ajoelhou, ai que nunca na vida eu soube de estrelas que descem do céu para dar caminho a pastores. E nunca os pastores foram os primeiros a saudar um deus e ainda menos a vê-lo bebé. E só não disse, “louvado seja Deus e sua mãe Maria Santíssima”, porque, como é de ver, ainda a Santíssima era apenas Maria e o Deus um bebé adormecido.

        Alimentaram o fogo, atiraram beijos e sorrisos ao Menino que dormia num corpo só com o cordeiro, e abraçaram Maria com sábios entendimentos de comadres antigas, esquecidas já do mistério divino: vai ver, esse é só o primeiro. E os homens da porta, cabeças cobertas e vontade de asas nos pés, tenham saúde e regressem em bem ao sítio onde moram que a gente tem de ir. José ficou na porta a acenar e a jovem Maria não reteve as lágrimas, gente tão boa que nos veio visitar; não há o que pague esta ajuda. E olhando a criança, é um Deus para o mundo, mas para nós é só nosso filho. E oxalá ele se lembre de quem primeiro o alimentou.

        Mas depois de crescido parece que ele ligava mais a pescadores e aos que perdida uma consoante nos pescadores somos todos. Bom, do cordeiro gostou a sério. Tanto que lhe tomou o nome.

        Acerca de avanços de Natal: pouco. Descobri que o meu Menino preferido (pois, tenho preferências) tem o pé mais lascado; falando bem e depressa, falta-lhe o pé. Palpito que o mistério se chama mulher a dias, cada ano parte um bocadinho. Desta vez, faço-lhe um curativo. As velas vermelhas apareceram e estão festivas. Mas, malogradamente, no meu presépio não há José. já houve, mas era minúsculo e tinha um bigode suspeito que lhe dava ar de traficante. Julgo - não vi -  que a ovelha, que é maiúscula, comeu o santo durante o ano. Papou-o. Portanto, aborrece-me um bocadinho ter dois anjos mui natalícios, uma Nossa Senhora gigantona, um Menino dentro das medidas e uma ovelha corpulenta que nem vaca bordalesa. Mas é o que há.


Aviso: por razões de excepção faremos um intervalo na escrita. Tenham saúde e fabriquem alegrias.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Dia Nove - Onde se Conta uma História

 

        As mulheres foram pelos xailes e eles pelas peliças e nada de candeias como se vê nos presépios de brincar, que a estrela incandescia. E quem é que fica a guardar o gado, quem não fica, que todos queriam ir. E portanto jogaram ao ita não ita, ita não há, quem está livre livre está. Perdeu o zarolho. Primeiro amuou por via da pouca sorte, mas logo se sujeitou a ficar e foi ajeitando as palhas; a afofar o lugar da cabeça ainda deu sinal, está certo, eu perdi e fico a tomar conta do gado, mas se esse menino for um Deus de verdade avisem os pais que o visito amanhã e lhe levo coalhada que a mãe há-de precisar, diz que ajuda o leite a tomar força, salvo seja. Mas já os outros punham pés ao caminho, bordões a ajudar nos desníveis.

        Ia o grupo encarreirado quando uma mulher lembrou os presentes, que não se visita um bebé sem uma prendinha; e logo as outras acudiram, que pois claro, tinha de se respeitar a tradição, e que parir num curral trazia muita necessidade, elas bem sabiam. E patati e patatá. E os homens, mau, mau, não querem lá ver que nasce o sol e a gente ainda no caminho. Olhem que as ovelhas entram num cagaçal que até o patrão vai saber lá na aldeia que ainda não saíram por aí a tosar. Mas já elas iam por um frasquinho de mel, um queijo de meia cura, uma latinha de leite (era gente que não usava garrafas), algumas pêras selvagens, amoras apanhadas à tarde, um vime de arandos, se é que por lá os havia. E uma trouxe um cordeirinho debaixo do braço. E o seu homem logo fazendo menção de o levar ao redil, que é lá isso mulher, pois já tu ordenas no que é meu? E ela de faca na liga, pois experimenta vir cá tirá-lo que não te ordenho nem mais uma ovelha, não faço um queijo sequer e vou-me a casa que estou farta desta vida de cigana monte abaixo e monte acima. Este cordeiro faz falta aos pés do menino. Parece que não sabes que vacas e burros são de fraco aquecimento. Deito-lhe o cordeiro aos pés e vais ver que quentinho fica, os pezinhos na lã. E o homem para si, esta mulher pensa em tudo, até num deus com os pés frios. E deu o cordeiro como perdido que, por tudo o que fora nomeado e mais alguma coisa que aqui não se conta por ser história de inocência, não podia ver-se sem ela.

        E lá ao longe a estrela de cinco pontas em chamamento de luz, mais cansada de piscar que as árvores de natal, cujas acendem e apagam e têm motor, mas ela tinha de brilhar ininterrupta a custas próprias e cumpria-lhe fazer da noite dia. Já suava a pobre. E Maria, aquela menina que a gente sabe, estava extenuada e com motivo, mas só o José-parteira a amparava, enquanto o Menino-Deus abria e fechava os dedinhos sobre as palhas. José tirava-lhe uma e logo ele agarrava outra e fazia menção de levá-la à boca. E daí a nada, Deus ou não Deus, já vagia com fome. Apiedada da situação a estrela enchia-se de brios e criava brilho mais forte, piscava, incidia directamente no grupo dos pastores. Era assim que dizia, “despachem-se”. Parecia uma ambulância, mas sem apito sonoro, facto que decerto lamentava, mesmo não havendo, à época, ideia vaga de tinónis.

        Não sei se já deu para entender, mas os caminhos da santidade são ainda mais difíceis que os outros. Pode ser falta de hábito, afinal, estrelas e anjos são corpos das alturas sem adaptação a caminhos humanos. Sempre Deus-Pai faz cada uma aos seus... a começar pelo filho.

        Mudando de assunto, os três Meninos cá de casa já estão no poiso. Ainda não dei com as velas vermelhas, mas na janela da copa já é natal. E a da cozinha vai a caminho. Tenho uns quarenta panos da loiça a dizer Feliz Natal e não sei quantos aventais natalícios de gosto duvidoso. Este ano dou sumiço às aberrações. Eu terei assim tanta tia? Quem é que me dá tanto pano da loiça e aventais, senhores. São é muitos anos a panos da loiça e aventais. Essa é que é essa. Pergunto-me como é que alguém pode dar de presente uma coisa que só nos serve para trabalhar. É maldade, só pode.

domingo, 8 de dezembro de 2024

Dias sete e oito - Onde se Conta uma História

 

        Nos tempos de antanho, hoje era o teu dia. Oferecia-te o desenho de Nossa senhora cuja auréola apagara e refizera cinquenta vezes e a que nem a pintura conseguia disfarçar as nódoas cinzentas de borracha e os vincos do lápis de carvão. Um desenho que conservaste na tua mala de mão até ao fim. Era o tempo em que tinha de recitar alto e para todas as mães presentes, um poema que decorava sem entender. A aumentar-me o pavor, subiam-me numa cadeira e eu, pernas a tremelicar, ficava cara a cara com todas as mães, o poema que antes sabia a esvair-se-me, uma outra palavra desgarrada por entre a névoa da mente. E tu tão à minha beira, eu toda ganas de “vamos embora”, mas os teus olhos em espera do que papagueava em casa. Atravessava-se-me uma pedra na garganta, fazia um esforço já com olhos marejados e articulava uma ou duas palavras que se perdiam na suspensão cerrada de olhos impiedosos. Sem solução, desatava o choro. Então, alguém me descia da cadeira e subia novo(a) garoto(a) que dizia o que tinha a dizer sem enganos nem lágrimas e me envergonhava ainda mais. Dia oito de Dezembro foi sempre e só o teu dia. Não te chamavas Conceição nome da minha melhor amiga. Não foste imaculada. Mas sim, és a minha Nossa Senhora. A Mãe.

        Mas voltemos à Puríssima do presépio, e às mulheres atordoadas com o anjo que, mornamente e sem um ai, lhes caiu aos pés: pois sabei que causou um pequeno tumulto no grupo. Umas davam-lhe palmadinhas nas mãos admirando a maciez sem calos, unhas limpas de tudo que nem pareciam mãos de quem mexe com a vida. Mas as asas senhores. As asas dos seus encantos e que lhe saíam naturais, as asas que atraíam mãos de carinho e eram quentes e vivas. As mais jovens entretinham-se a espalhar os dedos entre os caracóis do rapaz e sentiam que nem um pedacinho de cabelo embaraçava. Mas quando nisto, o mancebo pestanejou, rosto enrubescido à vista do magote das mulheres ergueu-se e, elevando-se, asa aberta, avisou: pois ide acordar os homens e vão todos a Belém ver o Deus Menino que ali nasceu. E antes de desaparecer nos céus, já a fazer-se pequeno, apontando a estrela convidou, sigam a luz. E as mulheres estarrecidas, nunca vi homem que voasse, nem luz de tanta claridade, esse ninguenzinho tem de ser mesmo um Deus. Toca a acordar os homens, pois então.

        Porém, eles estremunhavam rezingões e resmalhavam na palha, as ovelhas em balidos breves, estás maluca mulher, viste agora um homem que voava. Vem mas é deitar-te. E elas todas à uma, veio dar a novidade: nasceu um deus em Belém, lá no estábulo. Eles gargalhando, Um deus a nascer no estábulo?! Essa é boa. E logo em Belém. Ná, isso é pêta ou sonho. Elas já agastadas, esteve aqui um bonito rapaz com asas, sim senhor. E se vocês não forem ao estábulo vai a gente; queremos ver o Menino Deus que a estrela indica; pois vocês não vêem que há luz como de dia?! Acham isso normal?! E eles somando dois mais dois, a mente a desembaraçar-se dos restos de sono: luz como de dia isso é que é, e elas falam num homem com asas que as mandou ir visitar o Menino Deus. 

(cont.)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Dia seis - Onde se Conta uma história

 

        Olha que coisa. Então não é que inda nem visitei o CAM e já soube que lhe falta o Almada? Mas como? Não está aquela preciosidade que é Pessoa no meio dos quadriculados onde vermelhos e laranjas alternam com o branco e preto do chão que mais parece um tabuleiro de jogo. Não está Pessoa, o selecto Pessoa de oculinhos e bigodinho à Hitler que ali se queda muito mais selecto e clean do que nunca foi em vida?! Eu nem quero crer. Não pode ser verdade. Como acreditar que, na sala onde passei horas de encanto (somando todo o tempo), Amadeo tenha ido para as urtigas. O Amadeo, o de Souza-Cardoso??! Não é possível. Foi só o quadro dos galgos que foi parar à despensa, tem de ser isto. Urge verificar onde chega a heresia, mas talvez que não antes do Natal.

        Estou farta de instalações que não entendo. A arte teima em ser instalação disto e daquilo. Está muito bem, ponham lá uma ou outra, nem que seja para apontar o que não gostamos. Mas tirar pintores tão geniais Como Almada e Souza-Cardoso, parece-me sacrilégio. Ainda estou em crer que estejam emprestados e não numa arrecadação. A ser verdadeira a última hipótese, esses tais curadores são criminosos e estão em pecado mortal. Têm a justiça e a moral à perna (e eles que se ralam). O que terão na cabeça em vez das células cinzentas? Caca de galinha.

        Bom, mas fiquei eu no nascimento do Menino celestial que, como é sabido, tinha uma estrela sobre a cabana que dava mais luz que o petromax da taberna da minha infância. Pelas amostras de meninos sacros e dados a beijar nas missas de natal, enquanto o leite subia - é verdade, o leite tem de subir; e nem sei pensar de onde vem, é coisa de glândulas e assim -, não sei se o Menino, só para empatar tempo e não estar para ali de goela aberta, bebeu leite de vaca ou de ovelha. Uma coisa é certa, rechonchudo ele era, naquele joelho de beijar não se nota um ossinho, nada, até faz refeguinhos que a gente bem vê. Não sei qual a ideia dos padres, deixarem a criança só com um paninho de nada a tapar a pilota. Tolices de homens. Inventam, mandam, dizem e desdizem. Tanto decoro, tanto decoro e deixam-no em pelota. Sempre é Deus, caramba. E Maria, de quem consta muito pouco na bíblia, era boa mãe ou Deus-Pai não a escolhia; logo, não trazia o bebé naqueles preparos. Mãe que é mãe quer o seu filho arranjadinho. Tenho para mim que a jovem levou na sacola de viagem, junto com cuecas e um lenço de cabeça limpo, uma muda de roupa para o bebé, ainda assim não se desse o caso que acabou por dar-se. Pois é, é que veio a ser Nossa Senhora, mas não lavava os dentes. E espero que se lavasse por baixo que aquele tempo não era muito de águas e lavagens. Até penso que os baptismos no Jordão tinham dupla serventia, aproveitavam e lavavam-se em água corrente, a começar logo pela cabeça (haveria sabão?). Cada baptismo era também a festa do corpo.

        Mas pronto, voltemos à estrela e aos pastores. Que eles viam a luz, estava claro como se dia fosse, mas o cansaço vencia-lhes a curiosidade e breve adormeceram. Lá longe, a estrela fazia de tudo para dar nas vistas, refulgia, piscava, intensificava o brilho. Mas eles roncando num desmazelo de sono. E Deus-Pai, ó homens do diabo que não há quem os tenha de pé, e está a sagrada família sozinhita com uma estrela que não sabe mais que brilhar aguçando pontas. E cofiando as barbas concedeu, tenho de sacrificar mais um anjo; vai-me andar por aí doente, esvaído do coração como os outros mensageiros. É que foram feitos para Me adorarem, função que desempenham às maravilhas, não consigo é ensiná-la aos homens. Tenho esperança e enlevo no meu filho, ele vai conseguir. 

         E enviou o anjo.

     O das asa, depois de penar as sete partidas, lá desceu do céu a avisar os pastores adormecidos no curral, não fosse vir lobo ou raposa a rapinar-lhes o sustento. Dirigiu-se para o grupo palrador das mulheres que aproveitavam a luz caída dos céus para dar uns pontos nas roupas esfiapadas e despiolhar os filhos à vontade que de tão adormecidos não tolhiam nem mugiam na noite santa. E como é de ver, assustou o mulherio. Um jovem lindo, limpo e alado, nunca elas tinham visto nem nas feiras da aldeia. Mas nem o tempo do susto lhes durou que ele desfaleceu sem palavra, o corpo caindo de leve qual seda que se despe.

(cont.)


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Dia Cinco - Onde se conta uma história

 

        O meu calendário de Natal refulge de prendinhas. Onde já vai o subsídio. duas em falta e alguns chocolates top ten nas preferências. Nada de monta. Estou lisa e feliz. É certo, dá-me imenso prazer comprar prendas. Os embrulhos é que.... Palavra que há bocadinho fui espreitar a solitária prenda que continua emburrada junto à parede. Temi que tivesse dado às de Vila Diogo. E amanhã, sei de fonte segura, pouco adianto o natal.

        Portanto, aproveito a euforia e lanço-me a preparar a alma e o corpo para o nascimento do Menino que marcou o calendário. Falar dEle. Relembrar a meu modo a sua história. Que tudo se diz antes ou depois dEle. Tão bonito.

        Cristo é na verdade a figura mais intrigante da História. Quase tudo que fez deu brado. Foi um trabalhão para nascer porque tinha de cumprir o fado da manjedoura e dos pastores que o adoravam em Belém. Ele que era estrangeiro no lugar. As voltas que terá dado na barriga da mãe indo de jumento sabe deus quanto tempo – os burros, é do conhecimento público, andam devagar – supostamente por causa de um recenseamento, mas é claro como água que foi para cumprir o calendário – Deus escreve direito por linhas tortas. Ou nascia em Belém, ou não nascia. E, como toda a gente sabe, a criança ao fim dos nove meses de gestação não quer cá saber de coisas, nasce e pronto. Maria, que era assisada e mulher, logo previu que estava cumprido o tempo. E não sei eu porquê, talvez toda a gente se tenha ido recensear no mesmo dia, as hospedarias estavam cheias, não os aceitaram por lá. E o pobre casal lá teve de ir até um estábulo desconhecido, lugar péssimo e sem condições mínimas de higiene, capaz de o menino apanhar um tétano ou coisa assim, com a agravante de não haver vacinas e ser vergonhoso um Deus morrer de tétano. E por não se saber tal nome, ainda diria o povo, foi um ar que lhe deu. Ou podia morrer de uma pulmoeira qualquer, por via do frio que só quem não conhece bafos de vaca e burro acredita que aquilo aquece. Para já é um calor húmido e que provoca frio (pobre criança). Mas pronto, estavam no lugar certo, o tal das antigas profecias. O que não entendo é a razão do anjo não os ter elucidado acerca do estábulo. Bem se vê que não tinha sexo, sabia lá ele de dores de parto. Andou a pobre Maria de hospedaria em hospedaria. Para quê, digam-me lá. Aposto que, se soubesse da profecia, como souberam os reis magos pela estrela, a jovem (tinha doze anos, disse-me a Paula Rego; parece que leu na Legenda Áurea) ia directa para o estábulo, varria aquilo tudo, que bosta de vaca e de burro não é bom perfume, e enfim procurava que o lugar estivesse mais composto. Mesmo em miniatura, o filho era um Deus-Homem. Assim, chegados na força das dores, o que calhou bem foi José ter um canivete, vulgo navalha, que de certeza não esterilizou, mas deu para cortar o cordão umbilical da virgem. Nas horas de aperto dá Deus sabedoria a quem a não tem, o que saberia José de cordões umbilicais, se o rapaz era carpinteiro...Mas pronto, safou-se e safou o Deus-Menino e mais Sua mãe e não apanharam septicémia que é uma doença acerca da qual não tenho certezas, mas podia ser que apanhassem.

        Por certo, o verdadeiro pai (Deus-Pai), tratou de lhes afastar as doenças, Xô, Xô, fora daqui, querem dar-me conta do pimpolho ou quê?! Eu que sou Deus e tenho um filho homem de uma mulher que só vi desta lonjura que é o céu, não posso arriscar perdê-lo antes de tempo por via de uma doença; já gastei pelo menos dois anjos que andam pela eternidade a arfar de canseira sem remédio. Um foi avisar Maria que estava grávida sem ter tido o prazer de conhecer a sério um homem; outro avisou José, senão quando a barriga crescesse ele era capaz de enjeitar a garota e não me convinha remodelar as escrituras que o espírito santo já está quase depenado de tanta pena que lhe gastei. Tenho de o poupar ou lá se vai a Santíssima Trindade.

(cont.)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Dia Quatro - O Sol, Sempre o Sol

 

        O projecto era dar início aos embrulhos, que a desarrumação dos presentes começa a delir-me como buraco na meia que a cada passo engrandece. E fiz quase nada. Dei conta de um único que jaz só e triste, arrumado a uma parede, talvez a prender o burro. Idealmente, hoje haveria o advento das prendas. De algumas. Ora bolas. As manhãs passam num rufo e de tarde a escuridão tira-nos a vontade de laços e cores; dias escuros são inimigos da garridice.

        A vida ocupa-nos demais. Ora pede isto, ora é aquilo que falta e precisa ser comprado, ora a cozinha chama, a roupa grita, as ervas têm tal viço que a ameaça de sepultar as flores ficou para trás e temo ser estrafegada na selva virgolina do que foi um jardim. Isto é um despautério, não há natal que se aguente ao caminho da clorofila enlouquecida. Quais renas nem qual carapuça. A única esperança é que os bichos venham esfomeados e sejam de boa boca. Sonho com essa manhã em que se veja o chão raso e as flores, bonitas ou não, por ele se recreiem.

        Refiz a lista dos presentes e as faltas são mais do que eu desejaria. Preciso comprar envelopes de correio azul que agora é verde. Sobretudo, preciso assumir que as tardes continuam a existir por debaixo dessa capa de nuvens que derruba qualquer e enche o ar de sombras.

        Um solinho de algibeira. Punha-o sobre a mesa e o dia saía perfeito.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Dia Três - Noves Fora, Nada

 

        Hoje o Natal esperado não compareceu e vai levar falta a vermelho na caderneta. O centro comercial está um desastre se comparado com outros natais; as lojas que procurava desapareceram e as marcas de roupa barata feita por crianças e assim, e que já é cara em alguns casos, invadiram tudo. É uma praga. Resta a esperança de que os enfeites estejam apenas a começar.

        Desanimada, desci até à Rua Augusta e surpreendeu-me aquela série de chapéus de chuva pequeninos com um embrulho pendurado. Uns chapéus de chuva tão minúsculos?! Não são chapéus de chuva, estúpida, são pára-quedas. Pois...talvez que iluminados sejam outra coisa, à luz do dia são fraquinhos. De tanto desejo de ser diferente, ainda estragam o Natal todo. Vândalos. Zangada com a situação fui comprar mais uns livros e resolvi oferecer-me a tarde.

        Finalmente entrei no cinema para ver “Lee Miller”. Kate Winslet é actriz de que gosto muito e tem critério, escolhe os filmes que faz; aprecio filmes inspirados em pessoas reais; e Lee Miller – a real - foi uma mulher admirável. São motivos bastantes para dar fim ao desejo. Na sala estava eu e mais dois pares de senhoras da minha idade. Suponho que a fita esteja de saída das salas de cinema e sou grata ao meu súbito horário de lazer. Pela amostra, vêm aí outros filmes com bom ar. Não sei se os vejo, mas alguém os verá e vai gostar.

        No mundo doce da Alcoa comprei uns conventuais extraordinários no preço e decerto no gosto, que levei à minha amiga doente - uma gulosa de primeira que os degusta sôfrega como se fossem rebuçados de meio tostão.

        Pára-quedas, senhor presidente da CML?! Então as velas, as estrelas, os laços, até mesmo as renas...mas, pára-quedas?! Ó meus deuses.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Dia 2: Amizade

 

        Viver no advento também pede coisas que são de todo o ano – visitar doentes, ligar a amigos doentes e a amigos atarefados, da espécie que se reforma e tem o tempo todo tomado; não há - para mim - o que os distinga do tempo em que eram abafados pela profissão. Ainda assim, prefiro visitar os doentes a ficar ao telemóvel palrando. Fui má a usar telefones, sou péssima com telemóveis no que respeita à sua utilidade primeva: falar com alguém. Existe uma única amiga que me convence a usar esta secção onde me estranho em cada vez. Adequo melhor e universalmente aos sms. A cada maluco sua mania. Avante.

        Em prol de outras vontades e muito quilómetro, hoje fiz algumas visitas por telemóvel (sem imagem, que não sou dessas mariquices). Aproveitei e verbalizei convite movido a hábito e amizade. Logo aceite, transitou para o campo da esperança: é uma alegria por vir. De número em número passei por gente que estava ocupada a fazer pão e suspendeu; gente que a fisioterapia ocupava e estava suspensa; gente que, hélas, estava em casa e apesar de visita presencial me atendeu como se estivera a sós. Dirão vocês que foi indelicado deixar a visita; pois, pode ter sido, mas soube-me bem demais, que é que querem?! Senti-me meia princesa, foi uma espécie de vénia telefónica:).

        A fechar, a visita semanal, aquela de onde saio sempre meia parva, porque o sofrimento humano magoa quem vê. Magoa mais quem gosta e vê e ausculta em cada vez os retrocessos da saúde. Quem procura no olhar aquela centelha e já quase não a encontra, quem entende que o período de conversa terminou porque à mente faltam as palavras e no emaranhado mental sobra a densidade prensada do silêncio. E é só a nossa mão a segurar o garfo, só a nossa mão no copo da água, só o nosso corpo a segurar outro corpo que, semelhante a qualquer matéria morta, sossobra, escorrega, pende. E a nossa mão é contínua e autónoma, corre-lhe os cabelos, os ombros, desce ao rosto onde os olhos são gigantes perdidos, pobres gigantes pasmados e dolorosos.

        E foi advento.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Dia Um: Coisas Pequenas

 

        Hoje começa o advento. Oficialmente e sem sofismas. Advento é tempo de espera para os cristãos; e, como em tanto que existe, a espera talvez seja melhor que o acontecimento. Temporalmente, será. São vinte e quatro dias  de esperança para um de acontecimento. É grande discrepância.

     Dezembro obriga-nos a sair da concha e admirar o mundo. Há luzes acesas nas ruas, as montras exibem-se em brilho e cor, a intensa alegria de verdes e vermelhos a insistir. Paira muita cintilação de prata, muito azul firmamento, muito dourado chamativo. E os olhos agradecem, por eles entra uma parcela de boa vontade novinha em folha, como se renascêssemos com o espectáculo ano a ano repetido. Chamo aqui apenas os ínfimos nadas do natal, os que são grátis e as almas pequenas e simples agradecem; os pequenos encantos de alma. Encantam-me os enfeites dos centro comerciais da cidade grande e vou quase sempre espreitá-los. Mesmo em pleno dia, sem a cintilação das luzes, dou graças por esses decoradores inventivos que criam beleza em lugares tão desprovidos. O hábito não faz o monge, mas vesti-lo é outra coisa.

        Neste dia lembro os meus alunos mais antigos - aqueles que hoje terão meio século - e penso na história que lhes lia para lembrar o histórico 1º de Dezembro – sempre o recordei, qualquer que fosse a idade dos ouvintes. Será que inda a lembram e algum a conta ou contou aos filhos?! E porque hoje as horas correm mais devagar e me permitem ser eu com mais força, fui visitar um ou outro álbum de fotos, rever aquelas carinhas infantis, sorrisos de orelha a orelha. Encontrei-o num virar de página, adulto entre crianças. Inesperado e tão ele. Será recorte de jornal ou revista, não sei; nem sequer me lembro de ali o ter guardado, embora haja, álbuns fora, por este ou aquele motivo, recortes de gente que não esqueço. Fiquei a olhá-lo embevecida. Perfilado em blusa vermelha e uma nesga de camisa branca talvez quadriculada, parece a um tempo nostálgico e futurista – olha a direito para o infinito (quem sabe um infinito próprio, tão finito quanto é o humano conceber), mãos postas, dedo contra dedo, mistério ponderado amparando o queixo, quiçá os cotovelos nos joelhos, interrogador crítico do futuro. Um pensador moderno e muito a gosto. 

        Surpresa no primeiro dia do calendário. Auspiciosa.