A vida nem sempre é transparente e, subreptícia, vai tecendo a sua teia. Pode ter sido acaso, vontade de Deus, ou prece de minha mãe. O certo é que, entretanto, abriu na vila um colégio religioso e, por influência paroquial, mal as férias grandes terminaram, ocupei nele um lugar. Grátis. Foi-me dado sob condição: que eu "apanhasse uma bolsa de estudos".
No tempo de costureiras, criadas de servir e meninas ao serviço da casa e dos irmãos mais novos, destaquei, fui estudante. Viva!...Quando minha mãe o anunciou num sorriso tão bonito e aberto como poucas vezes lhe vi, a incredulidade fez-me balbuciar vezes sem conta, de verdade, a sério?, e mais baboseiras desconexas. Guindei a um contentamento quase histriónico, cume de que tardei a descer, tão impossível me parecia. Desconhecia o que era "ir estudar", mas, impressiva, guardara a imagem das religiosas. Privara com duas missionárias que haviam chegado à nossa terra directinhas de África, mendigando porta a porta para esse mundo ultramarino que de repente se nos revelou real e não apenas um pedaço de mapa que relegámos porque a professora tinha mais que fazer e a fonética dos nomes nos parecia a nós estapafúrdia. Portanto, nunca soube patavina de províncias ultramarinas: não estudei rios, províncias, capitais, relevo, vias férreas.
Em cada dia, e por determinação da mestra, as freirinhas chegavam à escola e levavam consigo uma criança que lhes era guia e preâmbulo. Calhou a quase todos. Também a mim. É certo, as freiras pediam. Angariavam o que houvesse: dinheiro, batatas, couves, nabiças, o que fosse (vendiam na praça da vila os produtos hortícolas). Mas o que melhor recordo é vê-las bater às portas, entrarem e assistir ao fazer de novelo que era dobrar más vontades, a lã de cada um passando-lhe nas mãos do pensamento, até que os nós deslindado e um silêncio de compreensão a fazer cama, um chá borbulhando em restos de lume, café de pé para que eram convidadas sem o mais que não havia e as mãos procurando as melhores canecas, as mais limpas. Mas aceitavam contentes e cirandavam a ajudar no preciso. De todos os casais, católicos ou não (a maioria não), só um as enxotou do portão fechado, carranca raiando a má educação. Elas a todos serviam; aceitavam almoço em casa de quem convidava com receio e logo ressaibos de orgulho apregoados na loja, comeram da nossa panela. Viravam-se à fraqueza de brasas envergonhadas, velhas e velhos dobrados sobre si, olhos perdidos na cinza, contando, do nascimento ao presente, e com notável indiferença, a história própria. Eu esforçava-me para não chorar, mas eles não se tolhiam de esmiuçar feridas sem carapela, que me doíam de ouvido e a que os anos tinham dado auréola e uma subentendida terceira pessoa do singular, cujas peripécias mal tocavam os intérpretes principais. Actores da vida, embrulhavam-se em rebotalhos de indiferença, talvez admirando esses que tinham sido e perguntando de si a si, fui este?. Tanto mundo por aprender.