segunda-feira, 29 de julho de 2024

Inventário de Anjos

           A vida nem sempre é transparente e, subreptícia, vai tecendo a sua teia. Pode ter sido acaso, vontade de Deus, ou prece de minha mãe.  O certo é que, entretanto, abriu na vila um colégio religioso e, por influência paroquial, mal as férias grandes terminaram, ocupei nele um lugar. Grátis. Foi-me dado sob condição: que eu "apanhasse uma bolsa de estudos". 

No tempo de costureiras, criadas de servir e meninas ao serviço da casa e dos irmãos mais novos, destaquei, fui estudante. Viva!...Quando minha mãe o anunciou num sorriso tão bonito e aberto como poucas vezes lhe vi, a incredulidade fez-me balbuciar vezes sem conta, de verdade, a sério?, e mais baboseiras desconexas. Guindei a um contentamento quase histriónico, cume de que tardei a descer, tão impossível me parecia. Desconhecia o que era "ir estudar", mas, impressiva, guardara a  imagem das religiosas. Privara com duas missionárias que haviam chegado à nossa terra directinhas de África, mendigando porta a porta para esse mundo ultramarino que de repente se nos revelou real e não apenas um pedaço de mapa que relegámos porque a professora tinha mais que fazer e a fonética dos nomes nos parecia a nós estapafúrdia. Portanto, nunca soube patavina de províncias ultramarinas: não estudei rios, províncias, capitais, relevo, vias férreas.     

        Em cada dia, e por determinação da mestra, as freirinhas chegavam à escola e levavam consigo uma criança que lhes era guia e preâmbulo. Calhou a quase todos. Também a mim. É certo, as freiras pediam. Angariavam o que houvesse: dinheiro, batatas, couves, nabiças, o que fosse (vendiam na praça da vila os produtos hortícolas). Mas o que melhor recordo é vê-las bater às portas, entrarem e assistir ao fazer de novelo que era dobrar más vontades, a lã de cada um passando-lhe nas mãos do pensamento, até que os nós deslindado e um silêncio de compreensão a fazer cama, um chá borbulhando em restos de lume, café de pé para que eram convidadas sem o mais que não havia e as mãos procurando as melhores canecas, as mais limpas. Mas aceitavam contentes e cirandavam a ajudar no preciso. De todos os casais, católicos ou não (a maioria não),  só um as enxotou do portão fechado, carranca raiando a má educação. Elas a todos serviam; aceitavam almoço em casa de quem convidava com receio e logo ressaibos de orgulho apregoados na loja, comeram da nossa panela. Viravam-se à fraqueza de brasas envergonhadas, velhas e velhos dobrados sobre si, olhos perdidos na cinza, contando, do nascimento ao presente, e com notável indiferença, a história própria. Eu esforçava-me para não chorar, mas eles não se tolhiam de esmiuçar feridas sem carapela,  que me doíam de ouvido e a que os anos tinham dado auréola e uma subentendida  terceira pessoa do singular, cujas peripécias mal tocavam os intérpretes principais. Actores da vida,  embrulhavam-se em rebotalhos de indiferença, talvez admirando esses que tinham sido e perguntando de si a si, fui este?. Tanto mundo por aprender. 

sábado, 27 de julho de 2024

Inventário de Anjos

        Penso no que devo à vida. Todos somos devedores. Ou quase todos. Ou a maioria. Esta constatação chama pelo nome amizades e amores que partiram (ou não) e me valeram mais do que eles mesmos poderão ter imaginado. Como se eu fora barco que não comandei, mas também não seguiu ao acaso. Algumas dessas amizades e amores foram ponto de viragem, condensação dos meus sonhos mais voláteis e de reconhecida impossibilidade. Suponho que esses sim, são anjos da guarda.

Desde o nascimento, só o talento amoroso de minha mãe conquistou e deu lugar na terra a um espécime com defeito, tolhido de maleitas e difícil gestação. Devo-lhe, desde o leite materno, a costumeira normalidade por que todos ansiamos: apesar do início conturbado, tornou-me quase igual a toda a gente. As tias velhas,  que então não sabia serem tias-avós, miravam o minúsculo de mim cantarolando, desenvolvendo a todo o momento perguntas difíceis a que não davam resposta conveniente e me faziam repisar a pergunta. E elas alheias, antes acompanhando um mimético sinal da cruz com a lengalenga, "benza-a Deus; quando nasceu não demos nada por este ninguenzinho". Afirmações e gestos estranhos os das velhotas, mas o mundo dos adultos aparecia-me cifrado e tomava-o tal qual. Devo à vida ou a Deus essa mãe inexcedível, anjo que me puxou para o mundo, me encaminhou com todas as forças do seu coração e não apenas em alguns momentos. Sempre. Sem desfalecer. Contra todos os prognósticos. Fez de mim uma criança feliz.

 Chegada à quarta classe, juntei-lhe a admissão, vontade materna que teve alguns inadvertidos apoios a pesarem na exigente balança do meu progenitor. Meu pai chamava-me "arara", abécula" e "arvela"; mas creio que foi sobretudo essa debilidade (mal podia com uma enxada e com a agulha era um desastre) e o facto de minha prima mais velha ir também fazer o exame de admissão ao liceu, que contornaram a sua má vontade. Os nossos pais eram irmãos e meu tio detinha qualidades admiráveis: era pacífico, terno e sabedor, factores incomuns no nosso mundo de porradas, asneiras e pouco tacto. Eu só o achava bonito, um senhor bem vestido e que falava de forma diferente. Invejava minha prima.

A porta estava aberta. Sem onde. Apesar de não conseguir segurar um dedal no dedo, meu pai ajuizava que iria "enformar" e podia pelo menos ir para a costura. Sem razão que me assista, jamais acreditei que alguma costureira me recebesse; portanto, ia vivendo como os lírios do campo: cumpria a natureza. Um tudo de inconsciência. 

(cont.)


domingo, 21 de julho de 2024

Encantamentos

  Estava no mesmo lugar, tão calma e linda como ela só. Repito-me, mas em cada vez é a vez primeira no amor que lhe dedico. Não é entusiasmo, nem um agrado simples, é razão que aviva o meu ser mortal. Penso nela em todas as estações, lembro-a saudosamente em dias não; no estio,  anseio a leveza dos seus abraços molhados e marco no calendário os dias da semana em que a visito. Se me chega a insónia, apetece-me a simbiose única que mantemos e me alisa os refegos da alma dissipando nebulosas, nódoas negras e o mais. Como se já não bastassem os nós que vamos dando e nos enredam a vida, os anos trazem de presente mazelas que nos recordam o encurtar desmedido dos limites. Porém, na sua presença tudo mingua e se retrai a ínfima proporção. 

Contemplá-la do alto da escadaria é pura maravilha. Vejo-a e sou feliz por antecipação. Esperam-me horas e horas de prazer, por acaso - ou não -,  bastante monótono. Apanhar sol e ler - ir à água - apanhar sol e ler - ir à água. O que eu sonho com este repete, repete, repete. É um facto: trazer companhia tem prerrogativas e serve de interrupção. Mas a identidade do gosto cumpre a sequência.

Este ano a espera foi tão longa que nem olhei as árvores costumeiras, não notei as que morreram e mesmo mortas persistem na vigília, olham sem ver a fita de alcatrão, alentejana de gema no "sempre em frente" do caminho. Reparei nas cegonhitas novas e desabrochadas, armadas em donas da casa, olhando a mutação do mundo em quieta placidez. Para trás deixaram os dias de bico laranja em vê escancarado  e o novelinho que mal se enxergava a sustentá-lo, uma diligência de asas a rodeá-las em voos de cuidado. 

            As cegonhas da beira de estrada medem-me o tempo. Sei por elas se adiantei ou atrasei viagem. Perdi a avioneta da cura e a praia só mosquinhas e outros bichos microscópicos que conseguem fugir-lhe e chateiam pele e paciência fazendo teias em tudo que encontram, até na pala do boné ou no laço do chapéu; e mesmo nas nossas pestanas se o consentirmos ou adormecermos.  São pragas que a força dos químicos afugenta dos arrozais e tomatais e mais culturas em ais (provavelmente). Rainhas contra vontade, ordenam o que não pertence. E, heureusement, perdi os buracos no alcatrão, a estrada apetece. No meio do verde, um alto pinheiro morto, carregado de pinhas. Tão alto e tão morto. Talvez a morte também escolha as árvores. Imagino-a céptica e sinuosa, a mirá-lo, a sentir-lhe o orgulho de líder na altura impávida e frutificada. E ela vingativa,  indicador esquálido e determinante, este.

Porém, a morte das árvores é cada vez mais determinada pelos humanos. E há demasiada morte a fugir à contingência natural. A morte criminosa. Sofrida por árvores e homens, falha do respeito pela vida, doação inexcedível. Não lhe existe critério válido. Posta ao serviço dos vendilhões do Templo-Terra.


sábado, 13 de julho de 2024

Clássicos Momentos

 O cinema atrai-me desde que aos 10 anos, numa colónia de férias, as zeladoras decidiram levar ao cinema os pobres de tudo que nós éramos. Vimos "Tintim e o mistério das laranjas azuis". E foi de paixão que substituí as letras por imagens com vida. Eram desenhos animados a que chamámos bonecos  -  mexiam e diziam coisas que os menos aptos na leitura não conseguiam entender, olhos escancarados para as figuras que desenvolviam a história

O cinema instaura  essa possibilidade de outro mundo, outra história onde a nossa se apaga para vivermos a que corre na tela. E valeria tão só por isso. No cinema somos existimos com a película. Podemos ir acompanhados, termos ao lado um(a) amigo(a), namorado, sogra, gente de qualquer parentesco de alma ou corpo; e continuamos a sós com a fita, em simbiose. Mas os bons filmes deixam lembrança, a memória escolhe-os. Podemos não recordar o filme todo, ou sequer metade, mas há neles o qualquer coisa que permanece. E todos,  mau grado a efeméride que somos e nos rodeia, procuramos o permanente. Já era essa a luta que movia os filósofos antigos, encontrar na constância do mutável o imutável, esse ideal motor imóvel, causa da substância do mundo. Contudo, sabemos da experiência que o imutável não nos é próprio; que, possivelmente, o único imutável que conhecemos é a própria mutabilidade de tudo.

Fui ver "Bolero". E gostei. Trouxe-me "Les uns et les autres". Não todo o filme, a apoteose final. Não sei classificar a música, mas aquele ritmo é inequívoca lembrança. Marca-nos, é ferrete para a vida. Na vez original, e foi nesse filme, senti nela uma urgência desesperada que a repetição vai agudizando, como movimentos de ondas sonoras que cada vez mais se levantam até engolir e rasar tudo o resto. E agora o filme "Bolero" é como que a história do nascimento musical do Bolero de Ravel, assistimos à pretensa concepção da peça, ao zénite do maestro e compositor Ravel e à sua mais que previsível loucura/doença. Não tem a grandeza de "Les uns et les autres", nem a pretende. Apresenta-nos Ravel, o homem e o músico. O génio que traduzia a música que tinha na mente e de repente - ou não tão de repente assim - deixa de a saber traduzir; ela está lá, mas já não consegue pô-la em pauta. Sofrer de tal doença neurológica deve ser profundamente dramático. O filme foca-se na difícil concepção do Bolero sem esquecer a sua apoteose. Talvez a cineasta que concebeu e dirigiu o filme tenha exagerado um pouco a importância musical da peça, parece que o maestro não a achava genial nem do melhor que criou. Mas seduziu-me a personagem Ravel. E é fora de dúvida: de tudo que o seu génio concebeu, o Bolero é o que mais se ouve. 

terça-feira, 2 de julho de 2024

Salamanca

  Antes de viajar, e contrariando o meu gosto por surpresas, decido o que desejo ver/visitar. De acordo com a companhia nem sempre dada a museus e que tais, escolho e anoto os imprescindíveis.  O restante, que antevejo não poder ser abrangido, deixo na mesma anotado, quem sabe há uma reviravolta que o proporcione. Ora, frente à Catedral de Salamanca fica o Museu de Arte Nova, um dos meus imprescindíveis. Percorri-o sozinha, facto de que tirei benefício. É uma frescura para os olhos aquele museu; e um derreter de alma.  Situa-se num palacete muito claro devido ao revestimento do tecto ser, em grande parte, constituído por  um vitral lindo que me lembrou a Lello; e à parte da casa que suponho em tempos ter sido a frente (e ainda será, mas não entramos nem saímos por lá) e é, no primeiro piso e no rés do chão, completamente vidrada e suportada por estrutura em ferro, tão delicadamente concebida que mais parece renda beijando o vidro. Acrescente-se que o tom cinza claro nas portas e umbrais agrada ao olhar de quem entra, desfatiga.  As peças são pequenas maravilhas expostas em vitrine ou são mobília compondo a sala. Subindo ao primeiro piso, maravilha-nos a vista total do tecto, um longo vitral a coar a luz em tons diversos com predomínio de azul. Olhando ao redor, verificamos estar em sala ampla com varanda corrida a toda a volta, mercê da estrutura de ferro que  a abraça e ampara, permitindo a expansão do vitral. Damos por nós num corredor que percorre a sala e é delimitado pela citada varanda.  Abaixo do belíssimo vitral do tecto, o friso também em vitral que o guarnece e como que emparelha e olha a varanda abaixo que percorre a sala e é também cor e luz de vitral. Deslumbre. Dando costas à varanda abismamos no conjunto cinza das portas fechadas: umbrais guarnecidos de motivos florais e na bandeira da porta o semicírculo de vitral com motivo rosa. Um achado de conto de fadas. Ao longo do corredor rectangular, encontram-se outras portas iguais ou parecidas. Junto ao tecto, as paredes interiores rematavam num friso de flores pequenas suponho que em gesso e que, salientes, pareciam descolar do lugar onde alguém assim as fez nascer. Imagino que aquela varanda interior existiu para contempladores de bailes ou outras actividades que aconteciam em baixo, no grande e arejado salão ora vazio. Abençoado seja quem inventou todos os requebros da Arte Nova. Fotografei o que consegui e me chamou: figuras de mulher, em maioria. Não por sectarismo, eram as que mais abundavam. Gostei da mulher mariposa, lembrou-me os meus braços de vinte anos. E das duas bailarinas, mãos dadas, em bicos de pés e tão airosas no rodopio leve das saias.  Fascínio. A umas captei pela beleza, outras pelo movimento que  emanam, outras apenas por gosto e rendição. Gostei de tudo. Só as jarras e jarrinhas de arte nova brilham na ausência da flor, são a própria floração. 

Raras vezes me deixo tentar pela loja de artigos de museu (exceptuo a Gulbenkian). Mas, o Museu de Arte Nova é-me irresistível. E apesar de serem ofertas, saí contentinha. A minha dádiva foi estar lá inteirinha e observá-lo amorosamente.