Hoje
era para ser um dia de coisas boas, mas a segunda noite má dentou-me a alegria.
Nada sem remédio, diga-se; todos os dias têm uma noite, portanto vivo em esperança.
Almoço marcado com uma amiga. A vida tem-nos trocado as voltas, apostada em
gorar os nossos encontros. Acho uma maldade andar assim a rebentar os nossos balões
de oxigénio. Mas hoje foi de vez, rompemos o enguiço. Esperei-a na beira da via
férrea, paciente e saudosa do cheiro que evolava das traves sustituídas agora
por blocos de cimento. À vista da linha do comboio transmuto, viajo para lugar
longínquo onde tudo é diverso e outro. Ali, hei-de renascer. Não entendo a
nostalgia do que não vivi nem o facto da via férrea me ser família. Mas já me
resignei, é questão de aceitar, não lhe assiste explicação plausível. O efeito
dos caminhos de ferro no meu espírito é um mistério. Quem sabe se fosse
maquinista, revisora, fiscal... Mas não sou. E pronto, Durante a refeição conversámos,
trocámos presentinhos, e acabei a embarcá-la.
Ao princípio da noite, o concerto. Tão, mas
tão bonito. Pela primeira vez, tive pena de não ter adquirido o programa. E
portanto não fiquei sabendo o nome da fadazinha que apareceu de branco vestida
com uma sobressaia de tule vermelho e um rabo de cavalo bem puxado acima, a
franjinha garota a rematar. Sim, sim, uma fada: Jovem, leve e magrinha, com
cinturinha de vespa cingida a fita vermelha e voz de cristal. Desconheço a que
modalidade do bel canto pertencia, mas era uma voz cristalina como ela inteira.
Linda, linda, linda (oxalá eu tenha sido um bocadinho assim, há quem diga que
os meus rabos de cavalo lá bem no alto tinham certa graça, mas era coisa em que
então não pensava). Pois esta menina, que era uma menina na casa dos vinte,
cantou em inglês – suponho que era galesa -, com voz límpida e clara como água,
canções de filmes. Canções mais sentimentais que natalícias, mas talvez mais deliciosas
por isso. Comoveu-me, sim; até porque, lá bem em cima, a letra passava em
português. E o público não regateou palmas e assobios em barda. E ela, uma
Audrey Hepburn desvanecida, agradecia em vénias sucessivas, mãos postas. Já
assisti ao canto de outras mulheres – várias – no mesmo auditório. Mas nenhuma
aliou a figura ao canto. A maioria canta quase extática. Mas a garota era toda
movimento. Não que bulisse muito. Ao contrário. Era a expressão do rosto; eram
os braços e as linhas que descreviam, os arcos tristes, a alegria a sacudi-los,
a melancolia a adoçá-los em alongamento prolongado; eram as mãos de dedos que abriam
e fechavam como anémonas; eram os olhos vivos e irrequietos, ora ardentes ora
dolorosos, tão doces se agradecia ao público.
E o
coro da Gulbenkian e a orquestra, excepcionais, alegres, a mexerem connosco. O
maestro, de que também ignoro o nome, a ensinar refrões para todos cantarmos.
Por comparação com as músicas de ano passado, este concerto foi melhor e
completamente diverso. Quem tem uma fada sininho a cantar com sensibilidade e
voz de tal timbre, tem muito mais do que deseja. No final, os músicos e coro
endoidaram e, num ar de rock e batida forte, puseram narizes, armações de rena,
barbas e barretes, agitaram os cachecóis vermelhos e dançaram enquanto cantavam
e tocavam. Contagiado, o público imitava-os.
Depois foi seguir num carrego enlevado. Eu e mais
duas sacadas de livros que também assistiram. Para o ano, eu seja ceguinha se
não levo também uma peça de roupa vermelha. Ai isso é que levo.