quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Avesso da Poesia

 

        Há um livro em que Peixoto escreve, “morreste-me”. Li-o há anos e a expressão agradou-me. O escritor referia-se ao pai. Como se a constatação da morte nos que amamos seja dor não expectável, ultrapasse a compreensão. Para os nossos construímos um muro de eternidade, refrigério que viabiliza o quotidiano. De ilusões também se vive, são condição necessária à sobrevivência.

        Não consigo aplicar-te a mesma afirmação. Em mim és eterno, não me morres. Ou morres comigo, que é a forma da humana eternidade. Cada um sabe de angústias quando a morte ronda quem julgámos pertencer-nos, sabe do atabalhoado assombro da vida formatada em pesadelo-prisão que não esvai à luz solar e antes se define e sombreia. Sabe que a solidão o abraça até à asfixia. No limite, somos todos solitária subjectividade.

        Tantos anos vivemos e nunca sonhei contigo. Vivo. Ou morto. Só hoje, um ano depois de. Não entendo bem porquê, mas surges-me de mistura com um amor. Como se eu fora adolescente e tu estivesses já fora de ti, a memória a derreter em pingos grossos. No sonho, seria adolescente. Foi um sonho nocturno e de breu, a nossa rua como então, sem vestígio de luz. No caminho para casa, seguíamos mão na mão, eu guiando o namorado, solitário par na noite escura. E havia sombras a nascer dos valados, erguiam-se à medida que passávamos. Assustavam-me. Eram curiosas sombras emparelhadas - de mulheres e homens, de homens e homens; cada par beijava-se unido em abraço apertado que desfazia à nossa passagem – indiferentes a nós (creio que não nos viam), saltavam o valado e perdiam-se na noite. A posteriori, julgo existir um simulacro dos quadros de Bosch naquela amálgama de corpos erguidos em impulso de mola, a escuridão negando-lhes o reconhecimento. Também eu e o meu amor nos abraçámos brevemente a meio da estrada de terra, receosos de sombras esconsas que se içavam da escuridão num só corpo, para nela se perderem dobrando a unidade. Mas eu tinha pressa de chegar. Queria, com urgência, apresentar-te o meu amor; suponho que desejava a tua apreciação isenta, sem a confusão da doença. Portanto, desliguei de impressivas sombras que se erguiam do valado em cegueira de paixão que nada vê. Desejava dar-to a conhecer, sentia em mim esse apelo. Mas quando nos abeirávamos do poço, avistei-te lá ao fundo, antes da curva. Estupefacta, apontei-te ao meu companheiro. Encontravas-te no meio da estrada -  nós três ocupámos sempre o meio da estrada de terra. Gritavas para os vizinhos adormecidos. A tua voz invectivava-os entaramelando as palavras. O meu espírito encheu-se de noite. Pensei que atravessara um purgatório por ti, mas não me vias. Chamei-te. E tu, nem um soslaio. Continuaste a vociferar tropeçando na língua, nas vogais, nas consoantes, facto que aumentava a tua irritação. Além de extremamente doente, parecias bêbado. Corri para a tua sombra espessa talvez porque sobre o pijama vestiras uma gabardina comprida que nunca tiveste. Parecias um profeta enlouquecido. Desvairado, gesticulavas frases sem nexo e apostrofavas os que vivem perto de nós, como se considerasses seu dever levantarem-se a meio da noite para te escutar; como se as tuas palavras fossem redentoras. Contudo, não houve porta que se abrisse, luz que iluminasse as trevas onde só a agitação da tua sombra riscava o ar. E eu a correr para ti, sempre a correr para ti. Acordei sem ter chegado.

         A estupidez que foi não te ter levado para casa, não teres visto as laranjeiras pela última vez, ter-te dado o desgosto de sair sem ti do único lugar onde sabia que não querias estar. Não ter estado à tua beira nos momentos derradeiros. Quem sabe a razão de, no pesadelo,  te encontrar tão outro de ti. Não reparaste em mim porque sofrias uma crise, ou só buscaste forma de me negar?! Assim como assim, embora com objectivo diverso, digo como o poeta “mas chorar não estima neste estado/aonde suspirar nunca aproveitou.”


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O Sustentado Peso da Memória

  Ninguém consegue explicar a razão de o pensamento ir buscar pessoas que não fazem parte do quotidiano, com quem, adormecidos, nunca sonhamos e que a súbita memória desembrulha de anos e nos apresenta a sós. Não sabemos se por recreio particular, se apenas um seu fait divers, um "ora vamos ver o que acontece".  E a consciência dá por si a reconhecer um rosto, um corpo, os gestos precisos, o sorriso, o olhar. E outros pormenores. 

Há uma eternidade vivemos ambas numa instituição religiosa. Ainda hoje não compreendi a razão por que caiu num convento (ex-convento) do Alentejo, vinda da Afurada, zona que desconheço.  Soube por ela e pelos autocarros que vi passar tantos anos volvidos, ser lugar perto do Porto.  Provavelmente também pelo endereço de extensas missivas trocadas. Ignoro qual de nós quebrou a cadeia de correspondência iniciada quando a vida nos retirou do Alentejo e nos lançou aos acasos em que é fértil. A sua lembrança alegra-me e também me penaliza: esqueci o apelido, tem um dos nomes mais vulgares em Portugal e, oficialmente, não constou da instituição hoje extinta, as directoras já outra coisa, que a morte  nos muda nesse desinteresse de ser coisa quando antes fomos pessoa. Penso mais nela à medida que envelheço. Na minha mente continua jovem, uma inteira mulher do norte em corpo e voz, mas de alma não condizente. Braços compridos e desenvoltos, corpo de varina despachada, o traseiro a avultar.  Nada faria adivinhar naquela mulheraça a gentileza para com os outros e o amoroso desvelo que me dedicou. Tenho presente que me ofereceu, verbalizada, a sua amizade sem reservas. Que insistiu, nem sei porquê; eu, toda entornada em drama existencial, não estava para aí virada. Não se rendeu. Borboleteava em meu redor pretendendo ser útil, a adivinhar-me vontades que não tinha. Oferecia-se para isto e mais aquilo. Talvez não soubesse da abulia em que me deixava ir. Ou, melhor que eu, a via ela. Lembro-a a baixar-se e atar-me os sapatos que eu não conseguira abotoar, a buscar uma caneta, a endireitar-me os livros na cabeceira, a lavar-me a roupa íntima, a espreitar-me da porta uma vez e outra, a sua cabeça toda caracóis e sorriso na nesga entreaberta. Por vezes contrariava ordens e entrava a avaliar-me a febre, mão na testa. Punha-me o termómetro e saía num valha-me Deus que trazia as freiras num corrupio e remédios e o que fosse. Nesses momentos, a preocupação franzia-lhe os lábios em biquinho e escondia o dente que tinha sobreposto e lhe personalizava o sorriso.

  Não sei explicar como, mas houve um  dia em que se fez luz: entendi que éramos amigas, tínhamos dado o salto (eu dera o salto), morava em cada uma a amizade da outra. Foi tempo de singularidades e confidências. Ela fazia-me resumos de vida de que eu pouco retirava. Pedindo que contasse mais, encolhia os ombros, olhava-me sorrindo e puxava pelos meus assuntos: conta lá outra vez  como são as laranjeiras carregadas, gostava de as ver. Ou, mostra-me  o retrato do teu irmão. Coisas assim. Nunca lhe ouvi uma queixa de saudade - só visitava os seus nas férias do Natal. Contudo, amiúde, a tristeza fazia casa no seu olhar. Não sabendo como agir, eu respeitava esses silêncios que hoje penso destilarem amargura e desilusão. Sentia que alguma coisa nela se ausentava, talvez as certezas.

E perdi-a. Dei-me ao desplante de perdê-la. Será por isso que a memória, em ocasiões muitas, pimba(!), a faz presente. Aprecio essas visitas tão incompreensíveis quanto a amizade que, sem motivo, a garota me dedicou.


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Mário Augusto

  O amor que tive pela escola foi sempre o que inda é: o gosto por ouvir e ver pessoas que discorrem em presença, gente que se arrisca ao arame na frente de todos. Prefiro quem conversa a quem expõe. As aulas de disciplinas como ciências naturais que, se me não engano, incluíam zoologia, botânica e mineralogia,  estavam a cargo de um professor enciclopédico e pouco didático que debitava matéria sem abrir o livro e se considerava a si mesmo - depreendíamos do magnífico ar magistral - um supra sumo, espécie de acumulador de células cinzentas pairando acima das nossas humildes cabeças  (continuo supondo)  julgadas próximas do estado monocelular - jamais esquecerei a ênfase posta no "arre que são burras!". Não nos conquistou para as ciências exactas. De nós oito (as turmas eram muito reduzidas),  três ficaram-se pelo que hoje é o nono ano e seguiram caminho em repartições públicas; uma seguiu medicina, profissão que sempre desejara; as restantes  são professoras. Aquele mestre, que nos leccionava três disciplinas da então secção de ciências, empurrou-nos para fora da exatidão, fez de nós seres meio poéticos em busca do algo mais que devia haver. Em mim, teve  notável influência. Bem acordada, deu-me pesadelos.

E como somos cada vez mais os mesmos - ao longo da vida,  preservamos e até ampliamos a essência -, mantenho essa apetência para, gostosamente,  observar o pensamento em acto.  Daí ter-me inscrito no curso sobre cinema com Mário Augusto; também pelo tema. E soube-me a pouco. Face às dez sessões e meia - que foram treze - de António-Pedro Vasconcelos, as quatro apetecíveis sessões de Mário Augusto foram aliciante aperitivo. Deixou-nos um livro feito para complementar as quatro sessões do curso. Então e os parêntesis que abria; então e os "só um pormenor"; então as "só uma coisinha interessante"; então e o seu entusiasmo contagiante pelo mundo do cinema; então e o seu ar de homem bom e simples?! Mas pronto, agradeceu muito, afirmou nunca ter tido uma plateia tão vasta e constante. Mas - há sempre um lamentável mas -  vive no Porto, o comboio avaria e chega às duas da manhã, coisas assim que perturbam quem as vive, tem mais que fazer e já se poupa a dissabores físicos.

Por um acaso feliz, descemos no mesmo elevador após a primeira sessão. Uma senhora vinha dizendo que achara interessante e aproveitei para acrescentar que isso se devia em grande parte ao orador que já conhecia dos programas sobre cinema, ora desaparecidos. Mário Augusto teve a generosidade e a delicadeza dos que são grandes de verdade: agradeceu-me como se nunca alguém lho tivesse dito; e também informou que continua com os programas, mas em horário pouco convidativo. Depois continuou conversa com o amigo com que entrara e eu fiquei encostadinha no meu canto. E quando saiu desejou-me boa noite e agradeceu de novo. Gosto quando os meus pressentimentos são verdadeiros: sempre o pensara tal qual, uma pessoa simples e sábia, incluída naquele número que soa a excepção. 

Ontem, no final, muita gente ficou para cumprimentá-lo. Mas aí já não consigo um pio. Desejo muito que Mário Augusto aceite novo curso. Eu e tantos como eu que, mais actuantes, no site respectivo se queixaram do exíguo de sessões. 

Se não, boa sorte, Mário. 

domingo, 6 de outubro de 2024

Manhã no Museu

  Um dia destes fui a passeio ao maat que inda não conhecia. Ok, já sei que tem oito anos feitos na semana que passou e houve festa, o programa estava afixado. Oito anos para mim é coisa recente, de há poucochinho. E porque a exposição presente estava à beira de ser passado, as educadoras de infância queriam por força vê-la. Pareceu-me motivo convincente. O edifício é bastante agradável e a exposição constava essencialmente de instalações artísticas e fotografia (lembrei-me da Gracinha). E pronto. Lá fui integrada no grupinho. Integrada, no verdadeiro sentido do termo, acho que não cheguei a estar. Porque sou velha e antiga, não me agrada tirar por duas vezes os ténis e as meias para entrar numa sala; e ainda me agrada menos pôr-me a rebolar chão fora ao som de música e a olhar os balões que enchem o tecto.  Este tipo de coisa, com toda a gente - alguma - a olhar, não me descontrai. Mas gostei de vê-las inter activas e despreocupadas logo na primeira sala que tinha o chão barrado a casca de pinheiro igual à que espalho nos canteiros das flores e exigia gente descalcinha. Tinha tambores, címbalos e uma data de instrumentos que não identifiquei, mas toda a gente queria tocar: eram ruidosos e de batuque. A instalação assaz bonita e toda rendada em estampados vivos e cordas feitas  de tecido (ao estilo Joana Vasconcelos). O autor é um brasileiro de nome Ernesto Neto. 

As colegas saíram animadíssimas e com pés castanhos. Voltaram a calçar meias, apertaram ténis e lá seguiram para a sala dos balões onde, como atrás frisei, voltaram a descalçar-se. E eu o que fiz enquanto elas se divertiam e des-stressavam de sala em sala? Bom, andei a ler as histórias que por ali estavam escritas na parede; umas sobre os artistas e outras sobre as obras. Junto à sala dos balões encontrava-se uma sequência de fotos que só entendi após a leitura. A história tem potencial. O caso começa em Luanda quando um grupo de cientistas resolve, com dinheiros públicos e privados, construir uma nave e ir ao sol garantindo isenção de queimaduras por viajarem de noite. Portanto, tinham apenas oito horas para explorar o sol e, quem sabe, trazer um pedacinho do mesmo para os laboratórios de pesquisa. Além do mais, a equipa angolana não descartou a hipótese do ambiente geral ser muito quente e inventou uns fatos especiais e resistentes a altas temperaturas, rodeados por tanques de cerveja gelada - excelente ideia. E conseguiram chegar ao destino e despachar-se no tempo previsto (não existem fotos da estadia no sol). Havia ainda uma foto da chegada dos astronautas e que era bastante similar a trabalhos nas obras. Sorri.

Também assisti um filme enorme de que não entendi bem a utilidade, mas deve tê-la e a fotografia era boa. O mais relevante pareceu-me ser uma mulher negra que começava por esgatanhar a terra e logo (deu muito trabalho) se enterrava a si mesma naquela terra laranja intenso que imaginamos ser solo angolano. Gostei-lhe da respiração a notar-se na terra, como se as duas fossem uma só. Mas fui a única pessoa que assistiu ao filme completo e os seguranças já me olhavam de lado. Desandei.

Entretanto, fui investigar uma instalação composta por rectângulos de vidro transparente e multicor em forma de sala aberta, com uma espécie de poço colorido a meio. Deu boas fotos porque as cores e as pessoas fora e dentro da construção formavam um conjunto singular de aspecto irreal. 

Depois de experimentarem tudo e se fotografarem  dentro das instalações (algumas nem abordei por terem fila enorme) rumámos à fotografia. Ali, vinguei-me: esperaram elas por mim. Levei que tempos a ver e ler as fotos estilo diário de Daniel Blaufuks. Eram fotos com legenda. Falavam da traição do tempo segundo Blaufuks. Não gostei que o senhor tivesse escrito portugal, apesar de entender a minúscula (a frase era, "portugal é um país racista"). Eu faria vários comentários ao comentário com que ele legendou cada uma das fotos. Mas demorava mais de um ano. Portanto, desisti.

       A finalizar, o Museu da Electricidade onde apreciámos a exposição de fotografia de William Klein. Desvaneci. Ou seja, voltaram a esperar-me. A fotografia de Klein é quase indescritível e o que o fotógrafo conta sobre a naturalidade das suas fotos vale a pena ser ouvido. Klein era um ser dotado e não apenas na fotografia.

      Bom, saí a recear a visita ao  CAM onde espero ir antes que passem oito anos por causa da morte que cada vez me existe mais. Oxalá não lhe tenham retirado os quadros da minha estimação para colocarem instalações inter-activas. Mania de experimentar. Entendo-a na infância, está certíssima no espírito das educadoras de infância. Sou medieval e contemplativa, já disse. Ou só preguiçosa.