Há um livro em que Peixoto escreve, “morreste-me”. Li-o há anos e a expressão agradou-me. O escritor referia-se ao pai. Como se a constatação da morte nos que amamos seja dor não expectável, ultrapasse a compreensão. Para os nossos construímos um muro de eternidade, refrigério que viabiliza o quotidiano. De ilusões também se vive, são condição necessária à sobrevivência.
Não consigo aplicar-te a mesma afirmação. Em mim és eterno, não me morres. Ou morres comigo, que é a forma da humana eternidade. Cada um sabe de angústias quando a morte ronda quem julgámos pertencer-nos, sabe do atabalhoado assombro da vida formatada em pesadelo-prisão que não esvai à luz solar e antes se define e sombreia. Sabe que a solidão o abraça até à asfixia. No limite, somos todos solitária subjectividade.
Tantos anos vivemos e nunca sonhei contigo. Vivo. Ou morto. Só hoje, um ano depois de. Não entendo bem porquê, mas surges-me de mistura com um amor. Como se eu fora adolescente e tu estivesses já fora de ti, a memória a derreter em pingos grossos. No sonho, seria adolescente. Foi um sonho nocturno e de breu, a nossa rua como então, sem vestígio de luz. No caminho para casa, seguíamos mão na mão, eu guiando o namorado, solitário par na noite escura. E havia sombras a nascer dos valados, erguiam-se à medida que passávamos. Assustavam-me. Eram curiosas sombras emparelhadas - de mulheres e homens, de homens e homens; cada par beijava-se unido em abraço apertado que desfazia à nossa passagem – indiferentes a nós (creio que não nos viam), saltavam o valado e perdiam-se na noite. A posteriori, julgo existir um simulacro dos quadros de Bosch naquela amálgama de corpos erguidos em impulso de mola, a escuridão negando-lhes o reconhecimento. Também eu e o meu amor nos abraçámos brevemente a meio da estrada de terra, receosos de sombras esconsas que se içavam da escuridão num só corpo, para nela se perderem dobrando a unidade. Mas eu tinha pressa de chegar. Queria, com urgência, apresentar-te o meu amor; suponho que desejava a tua apreciação isenta, sem a confusão da doença. Portanto, desliguei de impressivas sombras que se erguiam do valado em cegueira de paixão que nada vê. Desejava dar-to a conhecer, sentia em mim esse apelo. Mas quando nos abeirávamos do poço, avistei-te lá ao fundo, antes da curva. Estupefacta, apontei-te ao meu companheiro. Encontravas-te no meio da estrada - nós três ocupámos sempre o meio da estrada de terra. Gritavas para os vizinhos adormecidos. A tua voz invectivava-os entaramelando as palavras. O meu espírito encheu-se de noite. Pensei que atravessara um purgatório por ti, mas não me vias. Chamei-te. E tu, nem um soslaio. Continuaste a vociferar tropeçando na língua, nas vogais, nas consoantes, facto que aumentava a tua irritação. Além de extremamente doente, parecias bêbado. Corri para a tua sombra espessa talvez porque sobre o pijama vestiras uma gabardina comprida que nunca tiveste. Parecias um profeta enlouquecido. Desvairado, gesticulavas frases sem nexo e apostrofavas os que vivem perto de nós, como se considerasses seu dever levantarem-se a meio da noite para te escutar; como se as tuas palavras fossem redentoras. Contudo, não houve porta que se abrisse, luz que iluminasse as trevas onde só a agitação da tua sombra riscava o ar. E eu a correr para ti, sempre a correr para ti. Acordei sem ter chegado.
A estupidez que foi não te ter levado para casa, não teres visto as laranjeiras pela última vez, ter-te dado o desgosto de sair sem ti do único lugar onde sabia que não querias estar. Não ter estado à tua beira nos momentos derradeiros. Quem sabe a razão de, no pesadelo, te encontrar tão outro de ti. Não reparaste em mim porque sofrias uma crise, ou só buscaste forma de me negar?! Assim como assim, embora com objectivo diverso, digo como o poeta “mas chorar não estima neste estado/aonde suspirar nunca aproveitou.”