segunda-feira, 26 de maio de 2025

Martha Freud (?)

 

        Bom. Depois do balde de água gelada que foi, para alguns, o resultado das eleições. Depois de os benfiquistas o sofrerem duplamente (sim, a clubite futebolística em Portugal é tão ou mais rotunda que um resultado de eleições desta natureza). Depois de me habituar – de novo – a ser doente e, mais ou menos, deixar de me preocupar com isso. Depois da lei seca que foi não escrever ou escrever o mínimo. Depois de treinar com afinco a mão esquerda e verificar o fraco resultado. Depois de pormenores que não cabem num post. Depois de tudo isso, resolvi-me pela retoma de actividades. E seja o que Deus quiser.

        Portanto...andava eu às voltas com Martha Freud quando fui abalroada. Antes de continuar, devo garantir que preferia não ter lido este livro. Parece-me preferível uma suposição sem fundamento palpável (Freud não seria flor que se cheirasse) a uma quase certeza de tanto defeito numa única pessoa. Ah! É claro que poderão dizer-me banalidades como “ a verdade acima de tudo”. Qual verdade?! Quem é que pode impedir-me de, em determinadas circunstâncias, preferir a ficção à verdade. Ninguém pode. E nem eu deixo. A ficção salva-nos da crueza e mesmo crueldade do real. Se não fora o poder da imaginação, não sei o que seria de nós. De mim, pronto. A realidade tem um sinal mais tão possante que poderia destruir-nos, partir-nos em pedaços sem conserto possível. E é verdade que nos destrói e faz em cacos que só o imaginário pode colar. O imaginário é a nossa aura de luz, uma ressurreição dos mortos que nos eleva da terra tal qual vimos no catecismo católico; a única possível nesta vida.

        Digo eu que esta Martha é uma mulher ressabiada, já nada em Freud lhe agrada. Mulheres existem que guardam dos homens com quem viveram uma vida, memórias gratas e ingratas. Parece-me isto natural, ninguém está incólume, o bem e o mal não existem separados pertencem ao que é humano. Porém, das teorias freudianas, passando por filhos e amigos, até à relação matrimonial, tudo fracassa. Freud é um pai desligado e com filhos preferidos e o oposto; segundo Martha é causa do transtorno de alguns e sempre lhe calhou (a ela) a educação e vigilância dos filhos ainda que, pelo que conta acerca das viagens que fez, entendamos que nem ela esteve tão presente na vida dos filhos quanto seria desejável. De qualquer modo, o que Freud nos diz sobre o casamento com Martha é redutor, “tem a casa em ordem, trata dos filhos e poucas vezes esteve doente”; portanto, conclui que teve sorte. Aos amigos parece que acabou por atraiçoar afirmando como suas teorias formuladas por eles em primeira mão. E, segundo ela - que afirma não concordar com as teorias freudianas -, as grandes e íntimas amizades de Freud eram de teor homossexual ainda que sem expressão física. É forte esta afirmação. Surge-me descabida e contraditória em quem não crê em teorias sobre a importância da sexualidade! Mas é um facto que Freud se indisponibilizou com vários amigos que antes lhe pareciam almas gémeas. De tudo o que li, abismou-me que o caso de Ana O, sobejamente conhecido e relatado nos manuais escolares, não tenha sido um caso de Freud, mas apenas contado por ele. Não abona o psicanalista; nem a pretensa Martha (julgo que a verdadeira Martha foi muito mais digna que a do livro: nada escreveu).

        E depois há as adições. O vício do tabaco que viria a matá-lo; a cocaína que inalava supondo-se que seria para estudo de si mesmo sob tal efeito; ou para lhe dar não sei que poderes. Não posso deixar de pensar no que me disse um amigo de longa data, “há muito psicólogo e psiquiatra que ingressa no curso porque pretende estudar-se a si mesmo”. Admito que possa ser uma razão. Aceito que a compreensão pessoal seja porta para a compreensão dos outros. Mas parece-me um tanto esquizofrénico imaginar o solipsismo profissional como único interesse.

        Hoje não me parece que os psicanalistas sejam uma espécie de deus para os pacientes. Será que Freud se sentia um deus durante as consultas?! Mas não gostaremos todos de ser um deus em ponto pequeno para alguém?! Não sei, por exemplo, se um professor não gosta de experimentar esse poder sobre os alunos. Porém, a Martha do livro retira o tapete ao psicanalista quando analisa os casos que teve e lhes atribui – pelo menos à maioria - mau fim. As suas pacientes suicidam-se, não têm cura sustentável, e outros eteceteras. Esta Martha é arrasadora. A verdadeira pode ter sido uma sofredora. Que sabemos nós?!

        Mas é indubitável: as teorias de Freud permanecem um marco. Criticáveis, mas, para sempre, um marco. O preço, alguém o pagou. Tudo tem o seu preço.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Martha Freud (?)

 

        A primeira vez que ouvi falar de Freud tinha dezassete anos e gostava um imenso do professor de Psicologia. Era uma personalidade singular: se nos olhava, via-nos realmente; nesse momento éramos o mais importante para ele e, apesar dos óculos muito graduados, lá no fundo das lentes havia uns olhos iguais aos de ninguém, todos humanidade derramada. O meu professor de psicologia era um sujeito baixinho, magro, sempre de invariável fato cinzento; tinha boca pequenina e parecia fazer um biquinho quando falava porque tinha uns dentinhos para a frente e ligeiramente encavalitados; era e ainda é em mim uma figura adorável. Muito querido e respeitado por todos os alunos, entre nós era carinhosamente tratado pelo diminutivo do apelido. Dava aulas como só ele sabia e usava de rigor nas apreciações e classificações. A nota de psicologia aferia a medida do bom aluno. Já não recordo o seu primeiro nome. Mas nenhum outro mestre se imiscuiu tão dentro de mim. Quando adoeci gravemente, foi visitar-me, acção que me encheria de espanto se estivesse no meu juízo perfeito, e foi exclamativa figura de estilo para as freirinhas. Não me levou flores, nem doces; antes desenterrou um subsídio escolar extra e, quando fui incapaz de assinar o papel a confirmar o que me tinha sido entregue, guardou-o no bolso e sorriu a dar-me palmadinhas na consternação, “não tem importância”. Por acaso ou bondade divina, assistiu-me a duas ou três aflições. Numa delas, levou-me com ele a beber uma bica. Suponho ter sido a minha estreia em cafés e em bicas. Concluo hoje que era alguém inteiramente capaz de se pôr no lugar da outra pessoa; daí saber sempre como agir. Aquela ida ao café, dada a minha circunstância, foi superiormente adequada.

        Bom. Tanto deitar de conversa fora veio a propósito do último livro que me ofereceram, Autobiografia não escrita de Martha Freud, de Teolinda Gersão. Ora o termo Freud lembra-me as aulas de psicologia. Daí este parêntesis que durou um enorme parágrafo, indicador da minha infinita gratidão e respeito. 

        Voltando ao tema: estou perto de terminar a leitura da obra. O certo é que sempre me intrigou a relação entre Martha e Freud. Não por curiosidade feminina, ou sequer por saber dela algum pormenor. Basta olhar fotos de Freud e ler as suas teorias para reconhecer que não terá sido uma pessoa de convívio fácil. Ignorante de tudo, dizia eu para os meus botões, grande paciência terá tido aquela mulher. E agora, Teolinda resolveu escrever sobre ela a partir das cartas dele. Quem sabe, a escritora foi dominada por idênticas perplexidades. E resolveu dar o corpo ao manifesto, pesquisar as cartas de Freud e mais os livros que descrevem aspectos da sua vida pessoal. O romance (muito pouco romanesco) é sem dúvida um grande trabalho de investigação a partir do qual nasce essa autobiografada de nome Martha, e que é namorada, noiva, mulher de Freud; e lhe sobrevive. Estou em crer que o pioneiro do inconsciente como impulsionador da acção era um despotazinho que fazia mau viver. Ciumento incurável - e logo inseguro -, exigindo à noiva simbioses ideais e despersonalizantes, bastante contraditório nas suas afirmações. De acordo com as cartas, e apesar dos seis filhos, não nos aparece como pessoa muito motivada para o sexo. A pseudo Martha afirma que o marido o considerava mesmo como causa de uma série de males (do que lhe estudei, tinha interpretado que só o mau sexo ou a falta dele seriam motivo de distúrbio). É claro que nenhum de nós sabe se esta Martha coincide com a do realmente. Pronto, é um romance. O que sabemos, vem-nos da Martha de Teolinda misturada com o que se adivinha da Martha mulher de Freud, a partir das cartas do pai da psicanálise. Essa Martha, parcialmente criada pela escritora, surge-nos como “pessoa comum” e dentro desse “ser comum”, irrompe perfeita. Interroga na hora certa e interroga-se; nunca se diminui a si mesma, mesmo se aparenta tal ou cede às obsoletas exigências freudianas; tem sempre o pensamento certo perante os erros cometidos pelo marido em relação a si mesma ou aos que lhe são queridos. E foi imensamente cerceada nas suas aspirações e desejos pelo tirano Freud que apenas pensava em si mesmo e nas suas teorias e trabalhos.

        Sobre as paixões e adições de Freud ainda há o que dizer. E mais. Portanto, mal tenha uma aberta nas tendinites e bursites e o liquido não sei onde que me tira o sono, mais o raio que os partam, cá estarei a contar.

Entretanto, fiquem com Deus e os anjos dEle e nossos.

domingo, 4 de maio de 2025

Dia da Mãe

 

        Pergunto-me ao longo dos dias, se o que sinto é saudade; se este cinza de alma nasce da tua falta conjugada com a impossibilidade de substituição. Criei absoluta consciência de que o irremissível da morte nos fez impossíveis uma à outra. Não tenho sonhos bons contigo, nunca tive. Tu que sempre foste pacífica, a quem nunca, nem uma vez, ouvi um grito, e tiveste o último filho em casa, povoas as minhas aflições nocturnas. Não porque estejas, apenas porque não estás e te necessito severamente. Ou porque afinal nem morreste, era falsa a notícia da tua morte, encontras-te em hospital que ignoro e corro léguas por ti (por que razão andarei sempre a pé?). Mas não te encontro. Acredito que nem em sonhos alguma vez nos encontraremos.

        Talvez a eternidade e o espírito religioso, que nos acompanham desde os primórdios, sejam o sonho do homem, uma forma de não se defraudar com o efémero que nos sujeita; ou serão um prémio menor, qual guloseima, entretém de criança que lhe interrompe a choradeira. Porque todos queríamos – e isso é indiscutível - a vida como a conhecemos, com todos os que, até ao fim, fizeram a diferença dentro e fora de nós; a vida com os contratempos e surpresas que nos medem as forças e trazem novas pessoas e oportunidades; a vida com a beleza estranha e patética que lhe atribuímos.

        O eternamente bom, por mais que o pensemos, não seduz. Falta-lhe a efémera e frágil medida humana. Será que te encontro de novo nesse hipotético mundo de satisfação sem falhas?! Mas o que seremos então?! A sermos, seremos outras. Não um outro eu. Mas uma diversa natureza. O que quer que nos caracterize não terá dimensão humana. Estaremos talvez tão desligadas como nunca fomos. E, no entanto, não concebo, seja qual for a forma que (e se) assumirmos, a suposição de que passemos incógnitas uma pela outra. Isso, eu sei sem saber: não acontece.

        De ti herdei a afeição, a sensibilidade, a alegria e o gosto por cantar. Também certo desleixo com a aparência, a aceitação da transcendência e a compaixão. Não tenho a tua voz maviosa, nem o teu discernimento inteligente; faltam-me os teus silêncios compreensivos e talvez nos meus olhos não habite aquele amor intransponível que tinhas por nós quatro. É verdade que no início lutei contra ti e me insurgiam comparações, talvez por saber que saía a perder; ou porque a juventude se quer sem muleta.

        Garanto: nunca entenderei como sobrevivi à tua perda. E menos entendo qual a utilidade disso. Viver contigo e de ti foi o melhor da minha vida. Obrigada.