Bom. Depois do balde de água gelada que foi, para alguns, o resultado das eleições. Depois de os benfiquistas o sofrerem duplamente (sim, a clubite futebolística em Portugal é tão ou mais rotunda que um resultado de eleições desta natureza). Depois de me habituar – de novo – a ser doente e, mais ou menos, deixar de me preocupar com isso. Depois da lei seca que foi não escrever ou escrever o mínimo. Depois de treinar com afinco a mão esquerda e verificar o fraco resultado. Depois de pormenores que não cabem num post. Depois de tudo isso, resolvi-me pela retoma de actividades. E seja o que Deus quiser.
Portanto...andava eu às voltas com Martha Freud quando fui abalroada. Antes de continuar, devo garantir que preferia não ter lido este livro. Parece-me preferível uma suposição sem fundamento palpável (Freud não seria flor que se cheirasse) a uma quase certeza de tanto defeito numa única pessoa. Ah! É claro que poderão dizer-me banalidades como “ a verdade acima de tudo”. Qual verdade?! Quem é que pode impedir-me de, em determinadas circunstâncias, preferir a ficção à verdade. Ninguém pode. E nem eu deixo. A ficção salva-nos da crueza e mesmo crueldade do real. Se não fora o poder da imaginação, não sei o que seria de nós. De mim, pronto. A realidade tem um sinal mais tão possante que poderia destruir-nos, partir-nos em pedaços sem conserto possível. E é verdade que nos destrói e faz em cacos que só o imaginário pode colar. O imaginário é a nossa aura de luz, uma ressurreição dos mortos que nos eleva da terra tal qual vimos no catecismo católico; a única possível nesta vida.
Digo eu que esta Martha é uma mulher ressabiada, já nada em Freud lhe agrada. Mulheres existem que guardam dos homens com quem viveram uma vida, memórias gratas e ingratas. Parece-me isto natural, ninguém está incólume, o bem e o mal não existem separados pertencem ao que é humano. Porém, das teorias freudianas, passando por filhos e amigos, até à relação matrimonial, tudo fracassa. Freud é um pai desligado e com filhos preferidos e o oposto; segundo Martha é causa do transtorno de alguns e sempre lhe calhou (a ela) a educação e vigilância dos filhos ainda que, pelo que conta acerca das viagens que fez, entendamos que nem ela esteve tão presente na vida dos filhos quanto seria desejável. De qualquer modo, o que Freud nos diz sobre o casamento com Martha é redutor, “tem a casa em ordem, trata dos filhos e poucas vezes esteve doente”; portanto, conclui que teve sorte. Aos amigos parece que acabou por atraiçoar afirmando como suas teorias formuladas por eles em primeira mão. E, segundo ela - que afirma não concordar com as teorias freudianas -, as grandes e íntimas amizades de Freud eram de teor homossexual ainda que sem expressão física. É forte esta afirmação. Surge-me descabida e contraditória em quem não crê em teorias sobre a importância da sexualidade! Mas é um facto que Freud se indisponibilizou com vários amigos que antes lhe pareciam almas gémeas. De tudo o que li, abismou-me que o caso de Ana O, sobejamente conhecido e relatado nos manuais escolares, não tenha sido um caso de Freud, mas apenas contado por ele. Não abona o psicanalista; nem a pretensa Martha (julgo que a verdadeira Martha foi muito mais digna que a do livro: nada escreveu).
E depois há as adições. O vício do tabaco que viria a matá-lo; a cocaína que inalava supondo-se que seria para estudo de si mesmo sob tal efeito; ou para lhe dar não sei que poderes. Não posso deixar de pensar no que me disse um amigo de longa data, “há muito psicólogo e psiquiatra que ingressa no curso porque pretende estudar-se a si mesmo”. Admito que possa ser uma razão. Aceito que a compreensão pessoal seja porta para a compreensão dos outros. Mas parece-me um tanto esquizofrénico imaginar o solipsismo profissional como único interesse.
Hoje não me parece que os psicanalistas sejam uma espécie de deus para os pacientes. Será que Freud se sentia um deus durante as consultas?! Mas não gostaremos todos de ser um deus em ponto pequeno para alguém?! Não sei, por exemplo, se um professor não gosta de experimentar esse poder sobre os alunos. Porém, a Martha do livro retira o tapete ao psicanalista quando analisa os casos que teve e lhes atribui – pelo menos à maioria - mau fim. As suas pacientes suicidam-se, não têm cura sustentável, e outros eteceteras. Esta Martha é arrasadora. A verdadeira pode ter sido uma sofredora. Que sabemos nós?!
Mas é indubitável: as teorias de Freud permanecem um marco. Criticáveis, mas, para sempre, um marco. O preço, alguém o pagou. Tudo tem o seu preço.