Amélia não condoía com crianças. Se a curiosidade as plantava espiolhando o
espaço proibido, enxotava-as em exaltação odienta, o corpo irado afastando-as do
portão. De rosto enfiado pelos ferros da grade, os garotos esquadrinhavam a rua de
terra bem vasculhada e, ao fundo, o bebedouro das vacas e o tanquezinho,
relevos de cal que avultavam junto à nespereira que, em seu tempo, rebrilhava
ao sol cravejada de nêsperas carnudas e em cacho, o apetite crescendo olhos e
boca adentro. Espreitar a casa de Amélia era desejo incontível, enredava a
criançada em mistério e temor e, levada pelos contos de inverno ao brasido, a
imaginação tecia hipóteses mirabolantes e hiperbólicas. Mau grado a voz desabrida e a vara apertada na
mão a dispará-los em fuga, calcanhares a bater no traseiro, acicatava-os o isolamento
da velha. Imaginavam sabe Deus que tesouros escondidos, que inefáveis doçuras
no interior da casa, que voltas de mistério e secretismo no lugar. Ao espírito infantil, aquele espaço surgia tocado de magia e pavor, um conto ao vivo, corpo presente.
Contudo,
Amélia não compadecia. Ainda que os
frutos solassem o chão e a árvore ajoujasse, distribuía ralhetes e ameaças de
varapau, vergastas de escorraçar mirones. Daí a começarem a chamar-lhe bruxa,
foi um pulinho. Se os invectivava, havia sempre um ou outro que atirava, bruxa,
antes de largar a correr. Mas, no mundo dos adultos, Amélia era respeitada, tinham-na
visto envelhecer sem maldade, em trabalho e solidão. Havia até quem pensasse
entender tal recolhimento. Portanto, caiu como bomba a novidade de Violante.
Mais valera dizer que foi rastilho ateado e bem sucedido.
O supermercado familiar de Violante Travessa vivia a sua hora de ponta, que é como quem diz, a azáfama das onze. Domésticas faziam as compras do dia na pressa de preparar o almoço, avós tratavam de agrados para lanches e almoços de netos. Aqui e ali, um homem desfasado, espécie de ponto e vírgula numa frase. Pelo espaço quase de gineceu, despontavam como flores mais altas num jardim, ainda que um ou outro fosse na realidade mais baixo que elas. Que isto, verdade seja dita, as jovens de hoje já ultrapassam muito homem maduro. Abençoada juventude. Dos representantes masculinos, certificava-se ali um reformado; aquele, de abstractos olhos, era solitário por força da circunstância; o outro, movia-se no à vontade da opção; este, mais jovem e tocado de pressa, certamente cônjuge moderno dos que levam filhos à escola, dão banho, preparam lanches e mochilas, jogam à bola com os miúdos no quintalito das avós, cuidado olha a roupa estendida e os vasos. E, na entrada do super, cartão de boas vindas e melhores despedidas a contar euros singelos, a evidência prática da atenção de Violante que se repartia entre a vigilância de quem entrava e o teclado da caixa registadora, a gaveta a abrir e fechar e, mais lá ao fundo, no espaço do talho, o ruído entrecortado do cutelo desfigurando as peças de carne, a torná-las de panela. E as ordens ao salta-pocinhas, ajuda aqui a D. Alzira, leva lá as compras de D. Mariazinha que estão aí junto às garrafas vazias, vê lá o cliente que está na prateleira dos doces.