quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Amélia

 

 Amélia não condoía com crianças.  Se a curiosidade as plantava espiolhando o espaço proibido, enxotava-as em exaltação odienta, o corpo irado afastando-as do portão. De rosto enfiado pelos ferros da grade, os garotos esquadrinhavam a rua de terra bem vasculhada e, ao fundo, o bebedouro das vacas e o tanquezinho, relevos de cal que avultavam junto à nespereira que, em seu tempo, rebrilhava ao sol cravejada de nêsperas carnudas e em cacho, o apetite crescendo olhos e boca adentro. Espreitar a casa de Amélia era desejo incontível, enredava a criançada em mistério e temor e, levada pelos contos de inverno ao brasido, a imaginação tecia hipóteses mirabolantes e hiperbólicas.  Mau grado a voz desabrida e a vara apertada na mão a dispará-los em fuga, calcanhares a bater no traseiro, acicatava-os o isolamento da velha. Imaginavam sabe Deus que tesouros escondidos, que inefáveis doçuras no interior da casa, que voltas de mistério e secretismo no lugar. Ao espírito infantil, aquele espaço surgia tocado de magia e pavor, um conto ao vivo, corpo presente.

Contudo, Amélia não compadecia. Ainda que  os frutos solassem o chão e a árvore ajoujasse, distribuía ralhetes e ameaças de varapau, vergastas de escorraçar mirones. Daí a começarem a chamar-lhe bruxa, foi um pulinho. Se os invectivava, havia sempre um ou outro que atirava, bruxa, antes de largar a correr. Mas, no mundo dos adultos, Amélia era respeitada, tinham-na visto envelhecer sem maldade, em trabalho e solidão. Havia até quem pensasse entender tal recolhimento. Portanto, caiu como bomba a novidade de Violante. Mais valera dizer que foi rastilho ateado e bem sucedido.

 O supermercado familiar de Violante Travessa vivia a sua hora de ponta, que é como quem diz, a azáfama das onze. Domésticas faziam as compras do dia na pressa de preparar o almoço, avós tratavam de agrados para lanches e almoços de netos. Aqui e ali, um homem desfasado, espécie de ponto e vírgula numa frase. Pelo espaço quase de gineceu, despontavam como flores mais altas num jardim, ainda que um ou outro fosse na realidade mais baixo que elas. Que isto, verdade seja dita, as jovens de hoje já ultrapassam muito homem maduro. Abençoada juventude. Dos representantes masculinos, certificava-se ali um reformado; aquele, de abstractos olhos, era solitário por força da circunstância; o outro, movia-se no à vontade da opção; este, mais jovem e tocado de pressa, certamente cônjuge moderno dos que levam filhos à escola, dão banho, preparam lanches e mochilas, jogam à bola com os miúdos no quintalito das avós, cuidado olha a roupa estendida e os vasos. E, na entrada do super, cartão de boas vindas e melhores despedidas a contar euros singelos, a evidência prática da atenção de Violante que se repartia entre a vigilância de quem entrava e o teclado da caixa registadora, a gaveta a abrir e fechar e, mais lá ao fundo, no espaço do talho, o ruído entrecortado do cutelo desfigurando as peças de carne, a torná-las de panela. E as ordens ao salta-pocinhas, ajuda aqui a D. Alzira, leva lá as compras de D. Mariazinha que estão aí junto às garrafas vazias, vê lá o cliente que está na prateleira dos doces.   

domingo, 26 de setembro de 2021

Amélia

 

Amélia vive solitária na casa do Altinho. A seriedade do gesto e a zanga afivelada no rosto moreno garantem-lhe a distância de outra gente e põem-na a salvo de companhia e conversas. Ninguém sobe ao Altinho senão com motivo. Ainda assim, toca o sinito dependurado no portão sempre fechado e ela acode descendo de mau modo a ladeira e inquirindo motivos sem destrancar o ferrolho. Jamais alguém lhe entrou em casa ou avistou visita ou família que viesse por ela. Os mais velhos lembram-se que chegou em friorenta alvorada de Janeiro, no comboio das sete. Era então uma jovem mulher e carregava mala de peso. Alugara aquele monte pequeno e desprezado, uma janela à frente e outra atrás, as portas de madeira destratada e furada pelo bicho, dedadas de invernias e calores a subir pelas tábuas carcomidas e a desconjuntar. Uma miséria, garantem. Não se sabe por quanto o arrendou, os donos viviam na cidade e nunca por ali se demoraram ou deram confiança. Diz-se que o ganharam de herança, mas os mais novos sempre o conheceram nas mãos de Tia Amélia. Para eles, o Altinho e Tia Amélia são inseparáveis.

Nos tempos idos, senhora de novo poiso, Amélia aproveitou as encostas para pastagem de três vacas que chegaram ainda bezerras e em carrinha de caixa aberta. E é incerto se comprou o Altinho antes ou depois de começar a fazer negócio com os animais. Mas, a chegada de janelas e portas novas sacudiu incertezas, aquilo pertencia-lhe, era proprietária. De longe, os olhos mais afinados viram nascer um jardinzito e adejos de cortina nas janelas. Sobre Amélia havia fraco saber. Que era de poucas falas e, pela pronúncia de vogais escancaradas, parecia ser do sul; que conversava com os animais o que economizava com as pessoas;  que, por artes só dela, ensinava o caminho aos ruminantes e apenas os conduzia ao pasto, à tardinha, coisa nunca vista e ponto de admiração, as vacas regressavam a casa e esperavam a dona ao portão, só não tocavam a sineta. Sempre trajando de escuro,  Amélia parecia não mudar de roupa, cada peça ao serviço da utilidade e a desprezar arrebiques. Mas, contrariando hábitos arraigados, jamais cobriu a cabeça com lenço.  Os velhos lembravam a trança negra que lhe descia pelas costas e que, quando as rugas fizeram caminhos e lhe desaguaram pelo corpo, passou a recolher num carrapito lasso que deixava escapar alguns anéis de cal, primaveras do rosto. E o mulherio espantado, aquilo é que devia ser um cabelo bonito, valha-a Deus, pois se ainda a trança lhe avulta.

Passaram festas e enterros. Nasceram e morreram crianças. Vieram gripes e surtos de doença. E tudo Amélia sobrevoou. Se adoeceu, não chamou alma. Não compareceu num funeral, nem firmou pé em festa laica ou religiosa. O sino da igreja jamais a convenceu e padres e freiras de pregação falavam-lhe ao portão e, embora com respeito, ouviam-lhe a impaciência catalogante a lamentar palavras e tempo inúteis. O monte criou certa garridice por via do trabalho e esmero de Amélia e a sua figura esguia, em constante fora e dentro, tornou-se hábito.  Os dias eram-lhe curtos, tratava das vacas, ordenhava, fazia o queijo fresco. E vendia tudo. Tinha clientes certos que lhe admiravam o asseio e a pontualidade e se chegavam ao portão entreaberto em hora aprazada. Entretanto, muitos passavam na estrada e miravam o montezito que branquejava lá em cima, uma ermida secular. Quem sabe se, sem a conhecerem ou lhe saberem a história, ali imaginavam uma família pacata vivendo em harmonia.

 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

As "Coisas" de Dulce Maria Cardoso e as minhas coisas

 

         Quase sempre as crónicas de Dulce Maria Cardoso na Visão, “Autobiografia não autorizada”, narram sucederes que me tocam e iluminam as trevas absortas. Então, como quem regressa a casa, voltam-me as palavras. Chegam enferrujadas do limbo onde permaneceram em novelo inerte, mortas sem anúncio. A Dulce tem isso de notável, reencaminha-me. Leio-a e ecoa-me nas profundezas mais benévolas. Será egoísmo do mais puro o que em mim denota semelhanças. Ou não. Todas as vidas da mesma época têm alguma similitude que lhe advém sobretudo da condição social e da mentalidade que propicia. O certo é que, sem nos igualar - cada vida é única -, a escritora esmiúça percursos, vasos comunicantes de ideias e sentimentos. Acredito que essa contiguidade quase íntima com o leitor seja ingrediente da escrita de qualidade que lhe reconheço. Portanto, é sentir que acontece com os seus leitores em geral.

         Ora, esta semana, a crónica da Dulce descreve a sua estranheza no mundo dos intelectuais lusos ao privar com eles pela primeira vez. Um estranhar que não redundou em entranhamento, a escritora apresenta-nos a evidência: não pertence.  Mas quem não sofreu já o ingrato papel de ser carta fora do baralho. Li-a e logo me assaltou a memória de certa viagem de autocarro, juventude ladeada por senhora de beleza cuidada e delicadeza ímpar. Ao invés do que sucedeu a Dulce com os senhores da guerra, a minha colega de assento foi simpática e entabulou conversa. Mas cada um olha o mundo não com os olhos que Deus lhe deu, e antes com os olhos que foi ganhando, o olhar é trabalho de uma vida. O seu mundo era tão diverso do meu que, a cada frase, nos distanciávamos, facto a que era alheia. Às suas afirmações eu fazia acenos e ia acrescentando ideias na convicção de que conversávamos de pés fincados em chão diverso. Não recordo já o que debatemos durante duas horas - e foi por certo muita coisa -, gravou-se-me apenas uma imagem. Era a hora de almoço. Envolta numa nuvem de calor e fraqueza, eu regressava esfomeada de uma consulta. Levantara-me de madrugada, fizera 50 km, palmilhara ruas e ruas. Onde já iria o pequeno-almoço.  A senhora ia também de regresso. Numa paragem intermédia e já com atraso, confidenciei que desejava chegar o mais rápido possível. Interessou-se, quis saber se almoçava só. Assenti. Ela sorriu benévola e acrescentou que nesse caso bastaria ir ao frigorífico e tirar um sumo, fazer uma omelete com fiambre ou assim e comer uma ou duas peças de fruta, era receita que ia seguir já que vivia só.  Também sorri. Como e para que dizer-lhe que em minha casa não havia frigorífico e a água da bilha estava amolentada de calor, que nunca o fiambre chegara à nossa mesa e ainda menos um sumo de fruta. Como dizer-lhe que a nossa fruta eram as laranjas de época e não era época. Qual a necessidade de fazer-lhe sentir que em minha casa já todos tinham almoçado e eu que me desenrascasse. Ia parecer que me lastimava quando apenas dava conta de diferenças. Contudo, gostei bastante da minha agradável e perfumada companheira que me atenuou a viagem. Brancura marmórea vista do meu barro. Não a esqueço.

         Voltando à crónica da Dulce. Da Dulce que usa muito a palavra “coisas”, cuja, dizem os tais que sabem, não é palavra de escriba que se preze. Ora bolas, Dulce. Claro que é. A menina não precisa para nada desse mundo de intelectuais que convive em circuito fechado e gabarola e lhe é estranho. Afinal, vamos lá a ver, não foi a menina que ganhou o prémio?! Não continua a ganhá-los e a vender bem? Olhe que ainda este ano na Feira do Livro vi, com estes que a terra há-de comer, gente que pedia e comprava obras suas; gente que perguntava por elas e levou não só a obra que procurava mas também a sua Autobiografia não autorizada. Quer apostar que vendeu mais que qualquer desses senhoritos (as)? O povo que lê sabe escolher a letra e não se atém a irrisórias vaidadezinhas. E de que se queixa, se não teve prefácios sonantes nem apresentadores xpto, mas conseguiu mais, muito mais que esses compadres e comadres todos (ou quase) com inveja uns dos outros. É de coração, faça o favor de aceitar os meus gratos parabéns. E não pare, o seu dizer preenche.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Até Sempre

 

Morreu Jorge Sampaio. E, passe o egoísmo, cada vez me falta mais mundo. Não sei se acontece a todos, mas sem desmerecer da camada jovem, reconheço-lhe fraco contributo na minha paisagem. Não me iludo, eles também me ignoram. Preciso, nem sequer me vêem. Somos mundos diversos que, por necessidade, dever  ou casualidade, se tocam e interpenetram umas vezes por outras. O que lhes sugere o nome Jorge Sampaio é uma incógnita, talvez saibam vagamente que foi presidente da nossa república. Ignoram o que perdem. O que perderam. Lamento, mas não assistiram a Jorge Sampaio presidente. Ou eram infantis em demasia para apreciar um homem de classe e saber do orgulho português se apresentava ou recebia os notáveis estrangeiros. Tínhamos confiança nele, estávamos à vontade, não nos envergonhava.  Não sei se foi a educação inglesa (terá ajudado), mas sou incapaz de imaginá-lo sem a correcção e delicadeza que surgiam naturais e os media divulgavam sem que o quisessem fazer.  Um presidente que soube estar. Sinto-me orgulhosa e sortuda por ter vivido durante os seus mandatos na qualidade de chefe máximo da nação. A liderança pelo exemplo não perde eficácia. Obrigada, Presidente.

Fez outras coisas e desde cedo. O jovem Sampaio lutou activamente pela democracia desde os tempos da faculdade. E após a presidência da república não cruzou braços. Entregou-se a defender causas e lutas humanitárias e, fora de Portugal e por qualidade própria, foi eleito para órgãos desse teor. Tenho a certeza que deu boa conta do recado.

Um democrata a sério e uma pessoa de excepção só poderiam resultar no presidente que todos lembramos. Mau grado a evidente dificuldade portuguesa no sector, ele conseguiu, foi o homem da justa medida. Elegância no agir.

Fica em nós a sua gratíssima memória e a frase que fez eterna: 25 de Abril, sempre.

 

Bem haja, Senhor Presidente.

 

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Sombra Chinesa

 

Não amofine o leitor com os desvarios dolorosos que, sem surpresa, assolaram a casa de Formosinho e Veridiana. A desgraça de uns é, tanta vez, a sorte de outros. E desgraças existem que são necessárias aos pequenos estados de graça, benefício de cada homem.  O certo é que Veridiana fez ponto de honra em não retirar ao filho o prazer das férias e Formosinho arranjou modo de Jaime não tornar a casa, seguindo directo para os estudos.

A ignorância é, por vezes, sábia; no caso, foi desagravo. A mãe merecia-lhe amor entranhado, mas Jaime era novo, queria viver. E, embora por bem parecer alguns o neguem, a mente dos homens - e mais a dos jovens - molesta-se nos males sem remédio e breve se sente aprisionada, anseia o ar livre da ordeira vida comum. Não que o amor diminua ou a tristeza evapore. Mas há um sim à vida que corre nas veias e recusa trevas, chamamento que preserva o sujeito e se cumpre em egoísmo e espontaneidade. Mau grado o não podermos segui-la de olhos fechados, a tendência para o prazer pertence-nos. Em caminho dificultoso, é bordão a que cada um se atém.

Posto que assim foi determinado, o nosso desanuviado herói, afeito a securas da terra, descobriu o inédito prazer da água salgada nas incógnitas praias da costa alentejana, então em estado semi selvagem. Na companhia do amigo, demandou areias e águas, maravilhado descobridor de marés e caranguejos. Conheceram Melides e trocaram simpatias com as poucas turistas que viajavam em bando mesclado, desempoeiradas e livres. Tudo nelas era efeméride e novidade: num mundo de homens, ombreavam com eles a beber cerveja e alvejavam sentadas nos cafés, uma chusma cobiçosa de holofotes masculinos a escrutinar o grupo.  Na Zambujeira do mar, dormiram ao fundo da praia, eles e um bando de alemães gozando o luar de Agosto sobre o mar de platina. Ali conheceram a francesinha que se perdeu de amores pelo amigo Paulo e os demorou por uma semana, o tempo que lhe sobrava até Nantes. No dia da partida, Paulo de mãos nos bolsos a acenar-lhe contrafeito e ela emoldurada na janela da carreira, a impiedade solar a exibir-lhe a devastação que as emoções embaciavam.  Mais só do que tinha chegado, a francesa desmoronava e o lencinho de mão era curto para o desgosto. Jaime mirou-a, nariz vermelho, olhos inchados. Mas ela não o reparou, não houve um soslaio para os aldeões que entravam, não apercebeu a mulher de escuro sua parceira de viagem, um cesto de vime no colo. O afã dos olhos grudava em Paulo que já rodava o corpo e ganhava outros interesses. Jaime interdito, compungido do quadro, a recuar num canto parado da manhã, fingindo interessar-se pelos barcos de pesca lá ao fundo. Incomodava-o a espessura da tristeza no rosto da garota, onda desenrolada em tentativas de acesso à fleuma rochosa do amigo. Paulo aparecia-lhe enjoado da situação e mais desejoso de mar alto que os pesqueiros ancorados.  Estranho desencontro, relevaria apenas do sentir de cada um, ou enraizava no diferendo educativo que cindia comportamentos e permitia a uns a liberdade das lágrimas e a outros recomendava neutro desapego. Ignorava se a indiferença de Paulo seria conquista ou apenas natureza. Mas o sol e a juventude dissolviam premências, o tempo era ainda eterno e a carreira que antes ronronava mansamente arrancou em arrotos de gasolina fumarenta e desapareceu na curva. Ficou-lhe o rostinho lacrimoso da garota. E invejou Paulo, supôs mesmo que o amigo a não merecia.

sábado, 4 de setembro de 2021

Sombra Chinesa

 

Ainda Jaime não chegara à costa alentejana e já a doença trovejava.  A débil esperança de Formosinho era planta ingénua  que o rigor da tempestade destruía. Esvaída, Veridiana acamou e, em involução, a casa desvitalizava. Emurchecia. Por detrás de janelas semicerradas, as horas perdiam dinamismo. Ordeiras, amontoavam umas sobre as outras, desvanecendo em minutos de respeito e passo certo, sussurrados no relógio da entrada. Um misto de odores de farmácia e maleita, cheiro de drogas e pestilência, escapava-se do quarto e adensava a penumbra de corredores, assenhoreava-se de salas e beirava a porta de entrada onde um corrupio de  visitas agoirentas acorria a cheirar a morte. No receio de acordar males maiores, e mau grado o peso do corpo, Celestina como que adelgaçava, cirandando descalça e em bicos de pés. E a todos excluía com a determinação médica que inventara, não pode ter visitas. O estado de  Veridiana acordara-lhe amoroso zelo animal, mescla de intuição e instinto protector, como se fora cria sua. Era incontável a espreitar a doente que sumia sob as cobertas, a chegar-lhe um copo de água à secura deslavada dos lábios, a refazer-lhe a dobra do lençol e ajeitar-lhe a cabeça na almofada. Minada pela morfina, Veridiana tinha momentos de gratidão lúcida por tais cuidados sem reponto ou queixa. Alma de enfermeira cosida a todo o pano, Celestina provia qualquer necessidade, trazia e levava a arrastadeira, dava-lhe à boca a míngua de colheres de papa que conseguia engolir e, de seguida, amparava-lhe a prontidão do vómito. Percorria-lhe o corpo com algodão embebido em água tépida que perfumava, tentando afastar o incómodo odor de morte que senhoreava pelo quarto. Retirados os espelhos, em firmeza e ternura de gestos, soerguia a doente e vestia-lhe as camisas mais bonitas, afeiçoava laços e esticava rendas e bordados, inábeis disfarces  do corpo cadavérico, um agudo de ossos a desfear a pele. Por fim, penteava o que fora basto cabelo e, em desvelo materno, rematava compondo Veridiana, desfazia rugas da cama, soprava um pózinho que ninguém via. Prestes nos rituais de limpeza, Celestina chamava a si a serenidade que não sentia e, enquanto as mãos se afadigavam, ia contando as últimas da aldeia. Porém, ora a dor, ora a sonolência da morfina, afastavam  Veridiana da realidade. Se agora vivia no impasse da dor, logo vegetava no limbo da droga, desinteressada dos dias e das noites, dos emigrados espelhos, da falta de visitas. Acordada, os olhos alheavam pelo quarto como se o não conhecesse e, se Formosinho se sentava por perto e a lucidez lhe chegava em breves ondas, esquecida talvez da promessa, repetia instante, promete que não o chamas, promete.