segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Fora de Prazo


Criei nas traseiras o meu lugar de bordar. O lugar está sempre disponível e cinge-se a uma cadeira plástica a que não falta uma almofada fofa que até era da gata que Deus tem. É que ela merece o céu pela bondade, beleza e ternura que derramava, e os animais talvez tenham também uma alma, por que razão não hão-de tê-la, vá, é coisa que se não vê, portanto... Se há um céu para pardais que são uns passaritos burros que nem uma porta, enfiam-se pelos canos dos respiradores e das chaminés e quando se sentem presos é uma aflição de asas cano abaixo, cano acima,  e depois vai uma pessoa desmanchar aquilo tudo e  chaves de fendas e o camandro, mais os cocós e as penas que a aflição expulsa,  que se um dia levo mais tempo a tirá-los ainda me saem depenados e me pregam um valente susto. Ora, se há céu para eles, aposto o que quiserem que a minha gata está lá em cima sentadinha numa nuvem a ronronar mansamente e ao solinho. Mas, para saúde dos pardais, e neste interim confio na inteligência divina, é bom que os dois céus não sejam contíguos, a doce gata adora pássaros; na boca e não em vôo.

Bom, é melhor que volte ao assunto de origem. Dou por mim a ter ocupação que recua pelo menos meio século. Para o que me havia de dar, então não me chega ser velha pelo cartão de cidadão (ia a escrever bilhete de identidade) ainda me lanço mais para trás e de agulha em punho. Que nem sempre tenho disposição de bordadeira. O mesmo é dizer, bordo de apetite e quando calha. Se calha, não há vez em que não recorde um texto de Maria Judite de Carvalho onde ela afirma que, na infância, observava o labor das bordadeiras de serviço em casa de seus pais, tias, empregadas, avós, mãe, e nem desconfiava que bordavam o seu enxoval. Ora bem. Que tarde acordei para o meu enxoval. Se me descuido um bocadinho, morria e nem uma peça, que bordadeiras na família não houve, querem ver que degenerei?! Também é verdade que a escritora acha que os tempos não se dão hoje a tais inutilidades. Qual bordar toalhas, qual carapuça. Conclusão, estou eu dando pontinhos certos mas muito atrasados e também inúteis. É preciso ter galo.

domingo, 30 de agosto de 2020

Caminhada

 (continuação)

Recomeço a andar pensando-me atrasada para o quotidiano quando, do outro lado da rua, psst, pssst, venha cá que lhe quero perguntar uma coisa. Atravesso e ela, conspirativa, encaminha ao portão. Conheço-a de algumas vezes e já me contou que não passa dali por via do covid. Quer novas de uma conhecida que vive no meu bairro.  Mais certo é procurar pretexto para dois dedos de conversa e  esquecer os avisos do filho. Ultrapassa a marcação e aproxima-se. É uma velha castiça, veste de viuvez e durante a conversa, sobem-lhe em viagem constante as mãos  maquinais, ora uma ora outra, até ao cabelo grisalho, domando caracóis que se rebelam à grade dos ganchos. Conta-me das consultas a que já faltou e das que devia marcar, e veja lá que aqueles coirões nem abrem consulta nem nada, eu que já fui operada à vista e preciso mesmo de lá ir. Diz isto quase em cima de mim e, ao notá-lo, recua dois passos, ai Nossa Senhora, a gente não pode estar assim, mas que é que quer, esqueço-me. Pergunto a dar-lhe corda, mas ficou a ver mal?, e ela desejosa de contar, na ânsia de companhia e partilha, ó amiga, eu fui ali ao doutor da vista que já não via um burro à minha frente, de modos que disse para o meu Tóino, ai credo, eu deixei de ver desta vista. E ele levou-me logo ao médico particular. Que o meu Tóino, não desfazendo, é um filho como não há, melhor que muita mulher; em casa não se acanha,  faz o que for preciso. Pois o médico mandou-me ir a uma consulta no hospital e olhe, foi mesmo ele que me operou. Vim para casa com um penso na vista e o filho só o tirou no dia marcado. Pôs-me os pingos, tudo. Mas ó mulher, quando me tirou o penso, só via flores. Virada a mim, diversão de um só dente comprido, mãos domando cabelos desenvoltos, estou-me a rir agora, mas olhe que me assustei; para onde me virasse, com este olho, só via flores. Bom, o filho levou-me outra vez ao consultório, está visto. Entrei e o médico, então, e eu, o senhor doutor fez-me aqui um rico trabalho. Ele zangado, então não ficou a ver?! Eu, ver vejo, mas só vejo flores. Ó mulher, e não é que se virou a mim com sete pedras na mão, não queria ficar a ver, não queria ficar a ver? Já vê. E eu enchi-me de medo, diz que endoida quando se zanga, nem lhe disse mais, mas pensava, e de que é que me vale ver, se só vejo flores, valha-me Nossa Senhora se fico assim para sempre, que desgraça. E abrindo o gancho do cabelo para rectificar o penteado, mas olhe que ele tinha razão, mandou-me ter paciência e esperar. Uma manhã acordei e vi a banquinha de cabeceira, via tudo como dantes.

Eu provavelmente a sorrir, é tão tarde, tenho de ir andando. Ela de incisivo despudorado e empunhando o vasculho, e eu tenho de varrer a rua. E virámos costas.

sábado, 29 de agosto de 2020

Caminhada

(continuação)

Viro à direita. Na aragem, a conversa com o velhote vai desprendendo farrapo aqui, farrapo ali. Piso a cama de caruma,  os pés em cuidados de poeiras no interior dos ténis. O pedaço de caminho de terra batida está deserto, cheira a campo e restolho húmido e à esperança das originárias manhãs solares, casas ainda de olhos fechados, talvez no interior um despertar vagaroso. Pelos casais,  os cães ladram-me de hábito e ainda a aclarar a voz, pêlo acamado pela noite e olhos desfocados, outra vez, não te fartas de um dia, e outro, e outro, nos fazeres sair dos bidões, está um animal muito bem a descansar e lá vem o teu cheiro sacudir-nos e  derrubar o sono. Passo na berma a evitar pinhas desdentadas, impúdicas bocas abertas, o redondo com defeito. Funéreas. Foram  deitadas ao valado por inclementes automobilistas muito dados à pontualidade nos empregos e que passam a tirar a mãe da forca, nuvens de pó subindo das rodas. Ali e acolá, os pinhões órfãos reclamam mão que os cate, criança que os coma, dedos segurando martelinho que há-de mostrar-lhes o corpo branco meio despido, um pudor que se nota em restos de película. Enquanto isto, a preocupação com os pés faz-me pensar aos pontinhos.  Se me concentro no pisar, logo o fio de pensamento traceja ou o perco, feita impressora sem tinta. Entro no alcatrão e ocupa-me o descanso dos pés quando, Bom Dia! Levanto os olhos e ela está na minha frente, guardada por cães e gatos, foice na mão direita que não pára de segar. Paro eu. Não lhe sei nome, é o nosso primeiro encontro, mas estou habituada ao contentamento na cauda dos bichos seguindo-me em corridinhas do outro lado da cerca. Mediadas pelo arame, conta-me que tem onze gatos e oito cães, gosta de animais. É viúva vai para vinte anos e aponta a quinta, sou eu que trato disto tudo, mas com oitenta anos, diga-me lá, que forças tenho para a poda e a enxada. Depois, pernas ensarilhadas nos gatos, um de olhos azuis a mirar-me ciumento, conta que acabida os bichos abandonados e uma organização traz-lhe o alimento. Com os subsídios - férias e natal - paga a esterilização das gatas, que fazem um cagaçal quando aluadas e depois são mais gatos a sustentar. Penso na injustiça, este controlo de natalidade não devia levar-lhe os subsídios. A mão que ceifa reclama, mas ela atarda-se a encerrar o quase monólogo, tenho o filho bem casado, mas tão  longe, eles querem lá saber disto aqui. E sem transição, olhe tenho que ir indo, está a ficar calor e ainda me falta a rega. Afasta-se trôpega, gatos e cães felizes esgueirando-se na frente, virando à esquerda e à direita. Alguns, fiéis ao hábito, acompanham-me à rede; outros guardam a casa em pose de gato de loiça, olhos de indiferença. Virei-me ao caminho pensando nos anos em que, sem a conhecer, passava a procurar-lhe os sinais e descansava. E no tempo em que a cortina descida na porta e a rua cheia de folhas me assustou, será que adoeceu, perguntei a uma vizinha. A gente cria laços com quem nunca viu, os efeitos da bondade são nítida presença.

 

 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Caminhar

 

Às sextas, a minha rua,  se acaso por ela caminho, é outra. Ou talvez não, talvez eu, por via de um café com leite escurinho, seja outra. Mais penetrante. Saio mais cedo e vejo a Violeta e a Lili muito para lá da curva que sobe, uns pontinhos móveis à volta das pernas do homem ainda boneco de brincar. E proponho-me ao ritual. O velhote não sabe que eu o oiço e incentiva-as de longe, olha quem vem lá, olha, olha. Elas obedecem, viram-se, mas logo se desinteressam e continuam cheirando aqui e ali. Apresso-me e, braços abertos (não sei para que os abro, mas abro), sai-me sempre no mesmo tom, olha a Violeta! E aí sim, no silêncio da manhã, a cadela reconhece a voz  e desentraita ao meu encontro, corre a mais não poder. Lili firma o olhar e quando se convence que sou eu faz-se próxima na sua corrida vagarosa e a ofegar. Entretanto, eu e Violeta procedemos aos cumprimentos, sobe-me pelas pernas, lambe-me as mãos; afago-a e digo baboseiras do estilo, tão bonita, tão queridinha, é uma querida a Violeta, coisa mais doce. Formiga-me um desejo de pegar-lhe ao colo e apertá-la, mas temo que não goste, os animais são como os bebés, não apreciam apertos. E repito para o cansaço da Lili, elas competindo ternuras. Depois, vamos as três ao encontro do velhote. E diz ele na sua fala entaramelada por via do AVC, os olhos delas mal dobro a curva já andam a procurá-la. É um doce este velhote. Acontece que já as vi dobrar a curva e não procuram nada senão cheirar as ervas do caminho, cheriscar aqui e ali. E sou-lhe ainda mais grata pela mentira. Ora hoje reparei que atravessou a rua para  sentar-se. É verdade que costuma fazê-lo no muro, descansa depois da subida. Mas estava ainda lá em baixo. Sentei-me a seu lado, os meus olhos indiscretos e involuntários a notarem efeitos da próstata envelhecida. Ele a ofegar mais que a Lili, estou pior da minha perna hoje, ando à espera da operação e nunca mais. Eu, mas é o coração? E ele, não, são as veias entupidas; diz que é para as desentupir, mas não me chamam.  Desculpei a medicina com o covid, mas bem senti que mentia. Os velhos são os grandes desprotegidos sociais. Somos nós todos a arrumá-los num canto, começando na família e terminando nos governos. Descompadecidos com quem no mundo se gastou, abreviamos-lhes a partida tanta vez indigna. Ingratos que somos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

E agora?!...

 

Ainda que avessa a noitadas, amo a noite. Sou uma nocturna galinácea, exceptuando a anatomia que me faz desejar uma cama e não o poleiro. Cabe à noite o mistério e a cadência de sonho e impossíveis de que os homens padecem sem emenda. Noite é o tempo em que o corpo descansa e a mente desperta para o outro lado da vida. Em geral, a noite dispensa deveres e urgências de relógio e prima por sedutora ausência de amarras.

Pensando bem, é provável que eu também goze dos ritmos de sono das galinhas (não investiguei, mas deve haver um estudo científico sobre). Ora, nas noites em que sou vencida mais cedo (é uma luta), é vulgar acordar às duas ou três da manhã e saber-me pronta para o dia que ainda não há. Não é muito agradável. Escrever e ler desapetecem e, apesar de estar sempre disposta, considero extemporâneo descer à cozinha. Mas, por vezes que são raras, apraz-me ler. Foi assim que hoje me vi a retomar o livro de Maria Judite de Carvalho “Diários de Emília Bravo”, obra também intitulada de “Diário de uma Dona de Casa”. Gosto da sua escrita despretensiosa e certeira na crítica. E porque estes escritos estão datados e têm início no ano de 1971 são uma oportunidade para eu mesma aprender como vivia e quais os problemas de uma classe média lisboeta completamente alheia ao que eu mesma, aldeã de corpo e alma, experimentei (uns bons furos acima). Há na escritora uma preocupação social muito presente e, na maior parte dos dias, deixa uma nota sobre leituras que considera, teatro e cinema que vê, notícias, conselhos.  Como se, através de palavras e em conversa breve, desejasse encaminhar a mulher comum, lhe mostrasse uma outra forma de pensar, os pequenos-grandes deslizes de uma ditadura à portuguesa em crónica quotidiana e sem outra ressonância, facto que me aproxima da autora.

E queixa-se a dada altura, decerto com razão, que as casas hoje são dormitórios e não casas. Isto porque se lembra de as ditas –  faz questão de frisar não pertencerem a pessoas ricas – terem escritório, living, um quarto para cada filho e quarto da empregada além do quarto de casal, quarto de costura, quarto de vestir. E hoje que era em 1971, por não haver já esse género de casas (as tais que não eram de gente rica), uma amiga ou conhecida estava a ponderar dividir o quarto comum das duas crianças por um tabique dado que tinha apenas três quartos, o seu, o dos garotos e o da empregada. Sim, porque a amiga trabalhava e entrava às nove, portanto não podia prescindir da criada (e os quartos de empregada eram casinhotos bem ruinzinhos, digo eu).

E esta conversa às três da manhã baralhou-me completamente o esquema de classes. Então….afinal vivi enganada durante mais de sessenta anos. Verdade, fui a única responsável, Je. É que, no meu entendimento, aqueles não ricos da Maria Judite sempre foram os meus ricos a sério. Portanto, depois desta madrugada, pergunto-me, onde é que eles andem?! Os ricos.

 

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Coisas Pequenas

 

Visitas-me e o mundo transforma-se, parece outro. Enche-lo com a tua voz matizada, a inteligência que perpassa, o bom humor, a tua atenção a mim, a delicadeza terna que me cativa. E é alegria sem nome matar a saudade e sentir-te a mesma. Nessa hora voraz, elidimos distância e o embaraço de tanto pecíolo de mútua humanidade - em demasia, talvez.  Contudo, o júbilo dos nossos encontros entristece os meus dias de costume.  À luz que vem de ti, o quotidiano  espessa, cria grumos e fibroses. Adoece de não ser. Agitas as águas e sobe-me o lodo, malefício de águas paradas. Depois, o tempo vai depositando poeira indiscriminada sobre ausência e presença esporádica. E fica mais fácil viver.   

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Les Uns et Les Autres

 

Li há dias que os campos de refugiados de Moçambique têm maioritariamente uma população cuja idade vai até aos 18 anos. Ou seja, são crianças e adolescentes fugindo da guerra, com fome e sem lar – uma tenda para três famílias -, gente abandonada a si mesma, mães em idade de brincar com bonecas e que não desenvolveram pelos filhos o tão propalado “amor maternal”, avós a quem a vida não ensinou o mimo, gente que maltrata o futuro porque o futuro se chama mais uma boca a retirar-nos parte do nosso quinhão. Não têm casa. Vivem em lugares de miséria. À míngua.

Em época de veraneio visito uma estância com solares e mansões de férias e esporádicos fins de semana. Casas impecavelmente limpas e pintadas, que aguardam os proprietários e seus carros potentes e silenciosos. Estão prontas a habitar, sebe aparada, piscina limpa e desinfectada, espreguiçadeiras como novas, os baloiços das crianças verificados. No jardim, viceja a alegria adubada e regada, proclame colorido alheio à contenção de pobre que não se dá ao desfrute de combinar cores, antes depende de ofertas e de podas minúsculas alimentadas a desvelo e gratidão. Não me movem invejas. Quem não gostar de um T qualquer, zero ou um, num lugar calmo e plantado na beira do mar, levante o braço. Não é inveja. Mas alguma coisa vai mal no Reino da Dinamarca quando se tem assim uma casa fechada durante onze meses e, noutro lado do globo, uma tenda para três famílias, cada uma com três gerações.

E depois, quantas refeições se perdem  e desbaratam, quanta esquisitice dos nossos garotos. Ao invés, os moçambicanos fugidos da guerra - e outros de que não falo agora - têm fome, vivem subnutridos de pão e carinho, e é fácil que a doença os arrebate sem perguntar. Quem serão os que sobrevivem, como se pensarão a si e ao mundo depois da malvada injustiça que lhes pusemos no regaço.

Do lado de cá da miséria, os senhores do mundo e da praia. Têm acesso reservado por portão franqueado com  código e chegam depois das dezassete. Não se misturam, flanam entre eles e dão-se ao desplante de deixar na areia a sua marca a ocupar os melhores lugares. E como andam em tribo, são vários guarda-sois, toldos, cadeiras. Ficam semanas sem a visitar – têm suas piscinas e outros pontos de passeio -, mas o estendal permanece. Marcam o território.

Esta gente não se enxerga. E nós deixamos. Diz uma garota voluntariosa, se tivesse um tractor ou uma camioneta de caixa aberta, passava aqui uma noite e levava esta tralha toda.

 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Incómodo

 

Liga pouca vez e apenas quando lhe apetece ou precisa. Melhor acentuar a segunda hipótese. E gasta duas horas ao telefone. Duas horas. Tanto tempo numa queixa pegada. Do outro lado arrisca-se, pois, conheço bem esse mal.  Mas é como se quem escuta seja mudo, boca que abre e fecha e não sai som.  O assunto dela infla a todo o pano, tudo o resto um arremedo, bagatela. E conta. Reconta. Ele são passeios, questões, crítica e constatação de longo alcance e muita história. Do outro lado o cansaço murmura, mas isto não tem fim. Num arremesso de coragem, a mentira, desculpa interromper mas é que tenho de ir sair. E ela contente, já desabafei, estou melhor. E beijos e tal. Mas a dor de cabeça que fez nicho no ouvinte. Ora, sabe lá ela dessas coisas.

domingo, 9 de agosto de 2020

Tudo Ligado

 

Conheço-a desde sempre, é uma árvore no meu bosque. Calada, voz melodiosa, mãos calmas de precisão tarefeira. Vi-a muita vez, assisti-lhe conversas, alegrias e desgostos. E mais a admiro, nunca uma queixa dolorosa. Ao invés, relata as dores que lhe pertencem como facto inamovível, coisa que acontece e lhe cabe, a voz isenta de comiseração ou auto piedade. Deve chorar, mas não lhe observei uma lágrima e já enterrou fundos amores. A Pandemia afastou-nos mais do que as suas pernas doentes do telefone: deixei de visitá-la na casa onde vive sozinha. Ainda assim, liga-me de longe em longe. E eu, que não telefono por lhe conhecer a dificuldade de locomoção, fico com má consciência.  Mas alegra-me ouvi-la. Fala-me dos filhos e dos netos, das dores que tem de aguentar por estar à porta dos noventa, de uma cabeleireira de muito ano que, em intervalo certo, a vai buscar a casa, lhe corta o basto cabelo branco e a devolve ao lugar. E não poupa nos elogios.  Depois, conta-me das dúvidas que tem em passar uns dias em casa da filha mais nova, que eles querem muito mas eu estou tão ruim de pernas, vou lá fazer o quê. E sai-lhe espontâneo o passeio de há dois anos, vê tu bem que até me levou à praia; tão bonita a água do mar, o pior foi andar na areia. Fui com a neta e a filha, elas ajudaram-me até à água, sentaram-me lá dentro e quando vinham as ondinhas a água subia-me ao pescoço. Foi das melhores coisas da minha vida. Elas foram dar uma volta, espairecer, e eu fiquei ali a sentir-me tão bem de cada vez que a água vinha. Coisa tão boa e fresca, nunca tinha experimentado. E remata, ainda bem que não morri sem experimentar a água da praia.

E eu a pensar em Sophia que tanto amou o mar e na poesia que escreveu e em nós baloiça nitidez e transparência marítimas. Mora nesta velhota iletrada o mesmo sentimento desvanecido, igual rendição à água.  E isto sim, é milagre que se repete e existe.

 

sábado, 1 de agosto de 2020

A Nossa Pobre

A nossa pobre habitava uma barraca esconsa ao fundo do quintal  de uma taberna. Portanto, cumprimentávamos e fazíamos a travessia, os bêbados a desviarem-se com respeito. Por ainda ser manhã e não estarem muito bêbados; e porque éramos “as meninas do colégio”, conheciam-nos o uniforme, bata preta e gola branca. A minha grande pena durante os três anos em que fiz aquele caminho, era não ter casa que pudesse oferecer. Constatei, era bem mais pobre que eu. A senhora tinha três ou quatro filhos pequenos, sempre sujos e esguedelhados e o casebre impressionava, tal a miséria e desorganização,  roupas, tachos e panelas ensalganhados, a amostra de mesa um amontoado  sem espaço livre, loiça suja espalhada até à rua. Éramos duas garotas e visitávamos a pobre aos sábados de manhã, depois da aula de canto coral. Talvez tivéssemos sido eleitas ou tínhamo-nos voluntariado, não sei. Íamos contentes com os sacos de géneros e apenas víamos os garotos já que a pobre tinha de trabalhar. Como achávamos a barraca muito suja, por norma fazíamos o que não era pedido e desatávamos a lavar loiça, varrer o chão de terra e eu, que sempre tive a mania de assoar crianças, aprendi que o ranho seco se resolve em paciente insistência de água e sabão. Ora, um sábado houve em que, depois de arrumações que pouco resultavam, nos enchemos de pena da mãe de família e fizemos o almoço: batatas fritas e ovos estrelados. Era a única refeição que eu sabia fazer e lembro-me da colega a contar os tostões (devia ser rica, tinha sempre moedas) para comprar os ovos que o pacote de géneros não incluía. A função  correu mais ou menos, descontando o facto de as batatas fritas aos palitos terem ficado um desastre, meio cozidas e empapadas no óleo, porque o fogão era de petróleo e estava entupido. Não foi grande ideia, mas saímos contentíssimas com a surpresa, pensando na satisfação do cansaço materno ao entrar em casa. Hoje penso diferente. Mas pronto, hoje sou adulta e não seria capaz de comer aquelas batatas.

Veio-me a pobre à mente por via da crónica de Dulce Maria Cardoso na Visão, onde se queixa que a roupa dada aos retornados era muito grande e nada de jeito. Gorou-lhe as expectativas. Mas aposto que se ma dessem a mim ou à pobre, a gente desmanchava aquilo tudo e ajeitava qualquer coisa, um vestido, uma saia, uma blusa. E ficávamos contentes. Mas a Dulce não era do nosso patamar, estava um bocadinho acima. Por isso sonhava com  um kispo xpto que não havia no meio dos monos da caridade canadiana.