quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Notas de Rodapé

 

 Para hoje, a meteorologia anunciava chuva a meio da manhã. E logo gente avisada e ciosa procedeu a arrumos vespertinos e arrecadou haveres que o tempo seco deixou pavonear por rua ou quintal. Culpa deste inverno primaveril. Na mente de muitos, pairava certa luz esperançosa, quem sabe, chovia antes. Mas a noite vestiu o mundo arrastando a escura cauda de silêncio semeada de horas mortas  e inanes. Horas mortas são flores emurchecidas, não levantam cabeça e perdem-se  a contemplar a paisagem de si, escorrem em inútil clepsidra.  Portanto, hoje, o people tratou das tarefas exteriores, andou aos recados numa fona e, os que podiam fazê-lo, foram esperar a chuva em casa. Chuva a horas certas. Como se fora uma telenovela ou um programa de rádio. Mas não é. Portanto, Dona Chuva (o respeitinho é muito bonito) decidiu. E não foi na cintura da manhã, não senhor. Ora eu, que antigamente – não havia cá meteorologias ao minuto e nem eu atentava nas existentes – calhava de fazer compras pesadas nos dias de tormenta brava e suava as estopinhas para conseguir chegar com elas a casa - encharcadíssima, pois claro -, eu hoje tinha a tarde de trabalho marcada. Portanto, lá fui. Convicta na persistência dos enganos meteorológicos.

Primeiro caíram uns pingos grossos e dispersos, coisa de quem afina o motor, perro por falta de uso. Nosso Senhor estava no seu posto a experimentar o regador, deixa ver se o ralo não entupiu. E é claro, estava entupido de mil imundícies pequenas – tanto tempo sem regar, nem podia ser diferente - e a pobre da água, sentindo-se tolhida, corria por onde e como podia. Então Deus disse, ora bolas, tenho que desentupir isto. E parou os pingos. Logo eu, já em modo de sopeira, me estiquei toda para arejar roupas de cama e abri janelas. Sem temor, deixei os édredons de penas à esparavela  de nuvens sobrancelhudas. E só por Deus ser Deus é que não pensou para si, estás mesmo a pedi-las. Pois andava eu a vassourar com alma quando quase a deixei cair. Chovia a sério. Nosso Senhor consertou o regador do céu e nem avisou (já tinha avisado, não é). Ai valha-me Deus, que as penas molhadas cheiram a pêlo de cão e quem é que pode dormir com tal cheiro. Lá fui. Acabidei tapetes já respingados, fechei janelas à indiscrição da água que, farta de prisões e anti ciclones, batia o pé e se firmava nas gotas querendo por força encharcar tudo. Pingava aqui; pingava ali; molhava acolá. Chovia. Uma chuvinha a desejo que talvez dê para lavar a cara às flores e repor nos montes a clorofila .

Mas, enquanto a alma me renasce, os ucranianos começam a viver uma guerra que não querem nem merecem. De que desconhecem a extensão. Porque são os alvos. Eles e não nós (por ora).  Entretanto, o mundo assiste. Em directo ou diferido, é à escolha. Eles choram, fogem e juram dar luta ao ogre que é (pre)potente. A tecnologia é atroz, nada é segredo (ou muito pouco), tudo se discute e opina sem compaixão. Ad nauseam. A  todas as horas o jornalismo chove novidades que são genuína tristeza. Intriga-me que pareçam quase felizes a brincar às guerras, talvez convictos da sua importância; mas, noves fora, nada. Encontraram tema, usam gorros e abafos bonitos e estão lá. Anunciam o horripilante enquanto jantamos em nossas casas. Os ucranianos fogem do seu mundo para o incerto, e nós aquecemo-nos no conforto do que nos pertence. E toda a gente fala sobre. Fala. E fala. Mas na Ucrânia não precisam de palavras. É demasiada impiedade. Isto não vai acabar bem.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Sombra Chinesa

 

Já os filhos eram barbados quando Francisca se fez cliente do Chico da carrinha. E logo a aldeia começou a medir simpatias e compras pelo tempo que o carro do Chico se atardava na porta do Nunes. Fosse o tempo que fosse, era certo e seguro o monte de beatas no chão quando, enfim, se ouvisse o motor resfolegando mansamente, o Chico soprando mais fumo que o cano de escape. As novidades, buscadas nos armazéns de Lisboa, chegavam a casa de Francisca em primeira mão. Escolhia cores e padrões, arrecadava o que bem entendia e só depois a mercadoria passava aos olhos do vulgo. Na antevisão de compra certa, a deferência do Chico e da mulher ganhava foros de hábito e estabelecia entre as duas, por artes da vendedora e única a pôr o pé dentro de casa, uma cumplicidade nos adereços de feminina e indutora persuasão. Crente nos elogios que recebia aquando de tais visitas, Francisca deixava-se guiar pela opinativa filha do Pelinhos. Mulher feita a sós consigo, muita vida lhe fora sonegada e sentia-se remoçar nos apartes que a outra acrescentava a meia voz.  Nas provas de roupa, qualquer elogio era harpa de anjo, uma pena esvoaçando no silêncio que as envolvia. A outra soltava uma admiração à vista do pescoço alto, o toque da mão  a impressionar-lhe a nuca enquanto afastava a mata de cabelo para apertar fecho ou botão; gabava-lhe a pele de rosa se a ajudava a enfiar-se em sofisticada combinação de nylon, mãos de ama solícita alisando o tecido fino desde o acerto na finura das alças ao sublinhado no declive da anca; e logo se curvava aprimorando o remate rendado em sábio desafogo de dedos rentes a joelhos que de repente davam em pensar e os desejavam a despropósito; ou afirmava-lhe o pezito de chinesa se acaso propunha a meia de vidro, uma mão de experiência cingindo-lhe o nylon e subindo devagar pela perna a que de repente parecia nascer pele nova; no aperto de colchetes, cabeça assomando por detrás da sua no espelho, os odores de ambas a estontear e quase num abraço, relanceava um olhar de pormenor, crítico e agradado, que lhe fazia subir as cores, e terminava certificando de viva voz a firmeza do seio. E a ela que nunca se retivera nos atributos que lhe pertenciam, porque lhe pertenciam e eram seus fizesse ou desfizesse, a ela baralhavam-se as ideias, pois não seriam todos os seios assim. E quando perguntou a quem os conhecia bem, são firmes, o Nunes sorriu para o molho no fundo do prato, rapou de uma côdea e, no arrastar suave de ensopá-la, garantiu antes de a meter à boca, são bons. Tornou inquieta, mas são firmes. E o Nunes, que vinha das perrices de um motor que o azucrinava, atalhou, para mim não há outros que lhes cheguem aos pés. E depois, olhando-a sorridente e ainda a mastigar, se queres ver a firmeza, mede-a de pé, um lápis ou caneta debaixo da mama; se não cair…Ela desconfiada, e como é que sabes, vá, diz lá. O Nunes assegurou já a levantar-se da mesa, a mente no serão à volta do motor, sei. Mal ele encaminhou à oficina, correu por um lápis ou esferográfica no quarto dos filhos, despiu-se numa pressa e só parou quando o lápis caiu a rebolar esquinas pelo lajedo.


Nota: soube hoje que o senhor Zé - que não voltei a ver - está em casa da filha desde a noite de sexta-feira. A melhorar. Hoje pediu um café e, contra a vontade da medicina, foi sentar-se um bocadinho na sala. Parece um bom augúrio. Começo a ficar esperançosa. Quem sabe, ainda nos revemos a caminhar. 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Sombra Chinesa

 

Francisca Amora era filha do petroleiro, única fêmea da ninhada. Herdada a condição, o homem vendia, desde garoto, um líquido azulado que servia aos fogões e outro rosado para alimento de candeeiros. Antes do sol, já ele corria montes e herdades. Dias inteiros por fora, sofrendo sóis de estorricar e frios que deixavam gretas sangrentas nas mãos calejadas e reumáticos padecentes em noites inquietas. Lembro-lhe a figura franzina e despida de agasalho, boina basca já sem cor, tamancas em pés esmorecidos, as vasilhas de vidro transparente dependuradas do suporte da bicicleta, o recheio colorido a sacolejar. Acorria aqui e ali, num esforço de pedais que lhe saía da magreza andrajosa sempre marejada por incisivo odor a petróleo. Morreu de tísica quando os rapazes espigavam e já a mulher onde Deus a chamara depois de o ventre inchado sem remédio.

Não havia na terra quem estranhasse a herdada miséria daquela casa onde as crianças aportavam a recados e, por uns tostões, Francisca  engarrafava o fogo fátuo da pobreza, media regatos de sol rosado, criador de amareladas noites caseiras; ou a bebida turquesa de fogões sedentos e que fosforeciam a poder de empurrões no êmbolo. Por morte do pai, os irmãos fugiram a salto para França. E à garota, nem palavra. Sozinha, não coalhou no desgosto, vendeu os bidons de petróleo ao taberneiro e deitou mãos ao trabalho. De uma tarefa a outra, deslocava-se na bicicleta que fora do pai. Pau para toda a obra, tanto podia estar a ajudar nas carnes da salsicharia como a fazer limpezas na escola primária e na igreja, a colaborar na caiança de verão das herdades ou na vindima. À medida que enformava, nasciam invejas nas mulheres e crescia o apreço no olhar dos homens. Sem outro adereço que uma juventude bem-sucedida, a beleza de Francisca encandeava. Terá sido o que levou o Nunes ao enlevo. Uma dezena de anos mais velho,  assentara arraiais na aldeia e ali montara oficina; tudo que se movia a motor lhe passava pelas mãos. As gentes vinham por avaria em tractores, motores de rega, ceifeiras mecânicas, motorizadas e até mesmo alguns automóveis. A educação no trato e a eficácia manual deram-lhe nome. E, a despeito da surpresa inicial e de invejas e insinuações femininas prenhes de cobiça, agradou-se de Francisca e arrastou-lhe a asa. Depois de curto namoro, casaram de papel passado, contrariando as desbocadas que vaticinavam a eterna alforria masculina e a desgraça final da garota. Crescido nos dinheiros, Nunes fez ponto de honra em servir-lhe tudo que não tivera e, por junto, em casa e na oficina, desembocavam todos os toques que a modernidade permitia. Sem um alfinete que apontar, e arrufada por tamanha boa sorte caber à miséria sem préstimo de Francisca, a aldeia amuou. Era como se a garota fosse culpada de um desperdício irreparável e o mal empregado dinheiro do Nunes nela se perdesse.  A altura do salto de Francisca deixava-a longe da sua condição e, em vez de congratular-se, a aldeia remoía o mau estar que só o tempo e os três filhos minoraram.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Dos Olhos Tristes

 

Há sofrimentos tão inúteis, mundos de dores malquistas  que são injustas vergastadas   a fustigar os de sempre. O senhor Zé foi apanhado por um veículo que fazia a marcha atrás e foi buscá-lo ao passeio.  Não sabe quem o deixou caído. Levantou-se como pôde e foi para casa. O pobre julgou que a dor fosse da queda. Aguentou cinco dias o pulmão perfurado por uma costela. Encontra-se no hospital distrital. À beira da morte e em sofrimento atroz. Que tem de fazer cirurgia. E o cardiologista convicto que o coração não aguenta. Quis visitá-lo mas só à filha é permitido.

É verdade que os mais velhos morrem mais, são mais débeis e estão mais próximos da paragem definitiva.  Que a morte da Violeta me atordoou e me pareceu um sinal.  Que há alguém a alimentar a Lili cega de todo. Na vida, o senhor Zé e as cadelas formavam um triângulo unido que unido segue para a morte.

Fica o caminho. Um claro deserto. E sempre a imagem dos três a adoçá-lo, uma sombra lá ao fundo onde imagino que vão surgir de um momento para o outro. Tão breve foi  o encontro para o tamanho da saudade.  

sábado, 12 de fevereiro de 2022

A Casa Amarela

 

É uma casa alegre de mulheres tristes. Mais que alegre, a casa de dois pisos é receptiva, clara, tons pastel nos lugares certos. Aqui e ali, um pormenor de bom gosto, talvez influência da mais jovem. Por cantos e recantos, dispostas com arte, flores naturais e artificiais alindam e acompanham. Abundam fotos de família e amigos com pátina de tempo e mérito. Apesar da delicadeza semeada, da conjugação repousante das cores, dos pequenos ardis decorativos, há pela casa rasgados sulcos de saudade arados no chão da memória. O interior deste gineceu particular guarda a história de uma família, caminho  quase a completar-se, círculo que se fecha. Ao primeiro olhar, o défice: falta vivacidade, perfume juvenil. A casa é serena, sem sombra de desarrumação. Talvez nem conheça passos de infância, saltinhos, pulos, bater de palmas, birras em agudos que desapetecem,  ridículos de ternura adulta opada de diminutivos. A casa chora para si a incógnita ausência de um brinquedo atrás da porta, por cima das mesas, no patamar da escada. E as paredes, ridentes e perfeitas, continuam virgens de inocências garotas, não existe sinal de risco de lápis ou dedadas infantis. Mas como pode uma casa ser alegre, sendo triste quem a habita e a percorre, quem lhe alisa os refegos quotidianos. A claridade das paredes guarda infiltrados segredos e anseios, lágrimas e rogos, revoltas e acasos de má sorte. Que casa sobrevive em alegria à mágoa que lhe corrói os interiores.

Ontem lanchei nessa casa de alegria só por fora. Bebi um chá que me soube a não sei quê. Julgo que a diferença no sabor lhe vinha de ser feito também para mim. E há muita alegria em noventa e muitos anos descerem a escada e mergulharem na cozinha no preparo de um chá. Desvaneci. Pareceu-me que as duas mulheres suspenderam desgostos e maleitas, éramos apenas três mulheres sem história em volta de um chá. Foi um tempo de nada, mas foi. Vou guardar a bênção de ter sido.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Sombra Chinesa

 

Tudo no espírito dos homens se inicia pela novidade: os estudos, as conversas, os mais íntimos anseios. O que se repete, não se repete, é novo. A tendência do pensamento para a dúvida, o gosto pelo desconhecido e o esforço de compreensão do mundo são  intrínsecos e não alimentam apenas ciência, arte ou filosofias. Protecção e acicate dos homens, a novidade abana a placidez sem diferença do quotidiano. Instiga à procura. Contudo, aceite sem regateio, reluz a constante mutação do universo. E sabe-o qualquer, a mesma condição que origina o inédito e espevita atenções e curiosidade, logo o mastiga e transforma em facto banal. O lado comum dos homens ergue-se contra o que é novo e, como corpo de soldados em peleja, transmuta e esmorece a notícia, o facto, a situação.  Desinteresse instalado, o novo perde a aura e vai mergulhando no olvido, faz-se parte da amálgama de mundo conhecido. A realidade assemelha-se a  pesado e preguiçoso dragão, engolidor de novidades e seus despojos. 

Passaram luas e sóis, e quando Lourenço acordou do desgosto, mais magro, olhos fundos e pele emaciada, soube-se que retomou o rame-rame dos dias. Então, à revelia do próprio, o povo carpiu-lhe o desgosto, assistiu-o de razões e, pressuroso, o lamentou. Os homens abandonados, conhecidos por “os deixados”, eram tidos em alta conta e, em tal estado de indigência, a aldeia transbordava compreensão, “parece cão sem dono”. Entretanto, as mulheres esconjuravam a má sorte dos homens casados -já eram dois -  usando rezas e o excelso poder do sangue de galinha e sal respingados em semi-círculo à porta de casa, crentes na expulsão de maus espíritos. Que aquilo não era coisa divina; era matéria a expensas do belzebu.  Para o colectivo, Lourenço emparceirava com Afonso, ambos solitários navegantes.  De Cândida, não houve mais notícia.

Mas o mundo é um frémito. E não existiu fogo na aldeia que não soubesse da notícia. O filho de D. Chica Amora, que todos julgavam emigrado em França, estava preso. Num rufo, se apagaram Cândida, Lourenço, Afonso.  E os mais. Chica Amora reinava com seu desgosto de asa negra e muita lágrima, ruidosamente soprado no lenço de mão. E a aldeia, eximindo-se de juízos e fixada no desgosto materno, murmurava chocada, “o que uma mãe sofre a um filho. A vergonha que é! Pobrezinha”.

 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Flores de Papel

 

É certo que te lembro, não existe um modo para esquecer-te. Tampouco o desejo. Porque vim de ti de tanta maneira e não apenas pelo embrião que alimentaste involuntária. Pergunto-me se nos teus incautos dezassete anos fui desagradável surpresa e tenho de concluir que, a princípio, me aceitaste incrédula e temerosa. Nunca falámos disso. Já ao meu carinho faltava poiso quando a cédula pessoal e o que de ti conheci me informaram: não fui a concretização de um desejo mútuo. Por que terei nascido senão por um acaso  - de certeza um forçado acaso – da tua fertilidade. Quão agradável seria pensar-me fruto de amor extravasado, borbotão impulsivo e indómito onde corpos e almas se perdem para mais se encontrarem. Mas o certo é que fizeste dezoito anos ainda solteira, já eu um segredo, em voltas misteriosas no útero. Por essa altura, receios à parte, amavas-me em profunda certeza de raiz aprumada. Quem nos diria que, conscientes e malogrados, os meus dezoito se despediam de ti numa festinha de intraduzível pesar em que teimaste e sabíamos ser-te a derradeira. A doença sobrepunha e espezinhava, comandava-te em ferocidade, eras joguete. Os inesquecíveis, acabrunhados dezoito anos.

 Desculpa a pretensiosa ousadia, mas ninguém como eu te soube. Mesmo. Apesar do tanto que não vi, a atenção foi uma constante. E, agora que penso nisso – como é que o não pensei antes -, é certo, não te encontro na vida alguém mais atento. Não é mérito, bem sei que a atenção filial é muito insuficiente. Aconteceu-te ser solitária excessiva e, talvez por essa via, me fui infiltrando por dentro da tua existência. Corrijo, da nossa vida. E permanecemos. Duas. Diversas e inseparáveis. Eu, Inábil e infantil, semi consciente do que escondias e quase exterior à crueza da tua verdade. Ainda assim, amorosamente atenta.

Dou-te flores. Sempre. Hoje e em todos os dias, a insuficiência florida da minha amorosa atenção.

Deixa que te abrace como dantes, a perguntar estupidamente, “mãe, gosta de mim?”, certa da resposta que ensaiava à vista e nunca me chegou textual. Fico, portanto, à espera de ouvir, “não”. E tonalidade mais terna não é passível de existir.

 O que eu gosto de ti, caramba. 

PS: sei, era ontem. Mas ontem, como bem sabes, estive um bocadinho para o imprestável.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Sombra Chinesa

 

Estudando fora, era no fim-de-semana que eu sabia novas. Minha avó, que sucumbia a velhice encurvada e nodosa, cabelos de neve e olhos piscos, tinha gosto em explanar os mexericos.  O discurso que me aguardava fazia o seu momento de glória. De gosto, atardava-se em pormenores, a dar-me tempo de saborear novidades, na tagarelice dos velhos que pescam ouvinte.  Foi assim que me chegou a fuga da mulher do senhor Lourenço do banco. De uma penada, a notícia varreu Veridiana e família para debaixo do tapete. Em estado de censura, minha avó empunhava qualidades para melhor zurzir a personagem: uma senhora tão fina e sossegada, tão dona de sua casa, ninguém a via no aqui e ali das demais. E vai daí, da noite para o dia, saiu a compras na cidade e não voltou. O marido correu tudo por ela. Pegou no carro e foi a casa das poucas amigas que, de boca em o maiúsculo e olho remelgado, negaram tê-la visto. Muitos o viram de cabeça perdida, dizem que até despenteado e manga regaçada, coisa nunca vista. 

Na cidade, Lourenço envasava na entrada do banco: pose vertical, feito senhor, farda, boné, parecia tropa graúdo. Era simpático, abria a porta do banco como se fora a de sua casa; dava informações e cumprimentava toda a gente que passava. Mas nesse dia malquisto em que o pasmo da aldeia o observou,  não viu ninguém. Sem maneiras, rumou aos pais da mulher que viviam em cidade grande; duas pessoas sisudas, o desdém a desfear-lhes a boca se visitavam  a filha na aldeia. Chegado ao destino, a incrédula surpresa e o alvoroço deles. Não sabiam dela, não tinha aparecido; havendo novas, avisavam. O homem descoroçoou, regressou triste e desarrumado, uma corcunda desgostosa  substituindo a inteireza do porte. Por força da admiração que ribombou na aldeia, o caso ficou na memória comum e até a mim balançou. Enquanto minha avó se perdia em pormenores e lamentos, eu revia o ar citadino de D. Cândida, os adereços que inaugurava, o rasto de perfume, as ondas largas da permanente em moldura do rosto. Pensei que estaria farta de avental e chinelo caseiro, de ficar em casa a tratar da lida e a ver revistas (tinha ar de se entreter a folhear publicações de moda e decoração). E magoou-me o despropósito de minha avó que pronto a despiu de atavios delicados e lhe apôs um “ela” displicente. Inquirido sobre motivos, Lourenço  aparvalhava numa gaguez súbita e repassava a pente fino a última manhã. A mulher não lhe parecera diferente quando a deixara na estação da ferrovia; como de hábito, levava apenas a mala de mão;  não houvera zanga, ela não era de arrufos ou amuos. Em vão vasculhava a memória uma vez e outra.

 Depois, em apreensivos dias e noites, Lourenço aflorava todas as hipóteses: se a roubaram, se a mataram, se está caída num barranco qualquer, há tanto meliante à solta; se havia um amante e ele, bacôco, nem desconfiara. Propostas todas as variantes loucas e de que no íntimo duvidava, o carteiro veio pôr cobro a dilemas, trouxe carta de D. Cândida. A Zefinha, a quem Lourenço recorrera para dar um jeito nas roupas e na casa, logo se pôs em campo e juntou os fanicos da carta morta no cinzeiro da sala. E tudo se soube à voz pequena. Lacónica, Cândida informava  que estava bem e não queria voltar a vê-lo.  E a garota, sem remorso da indiscrição, arengava, um homem tão jeitoso e que a trazia mais estimada que vidro em cristaleira. E filosofando invejas, dá Deus nozes a quem não tem dentes; se fosse comigo… E eu sorrindo da hipótese. A Zefa não tinha o aprumo de carácter nem a sabedoria das ondas largas; faltava-lhe toda a singularidade, apanágio de D. Cândida. E murmurei para minha avó, vou ter saudade de D. Cândida. Ela decidida, qual saudade, mal a conheces. Calei. Como explicar-lhe que gostava de entrevê-la a entrar no automóvel e lhe admirava o silêncio desregulado da algazarra na mercearia.  Como dizer-lhe que, uns com conhecimento, outros sem ele, a todos tocava a sua evidente diferença.