Para hoje, a meteorologia anunciava chuva a
meio da manhã. E logo gente avisada e ciosa procedeu a arrumos vespertinos e
arrecadou haveres que o tempo seco deixou pavonear por rua ou quintal. Culpa deste
inverno primaveril. Na mente de muitos, pairava certa luz esperançosa, quem
sabe, chovia antes. Mas a noite vestiu o mundo arrastando a escura cauda de
silêncio semeada de horas mortas e
inanes. Horas mortas são flores emurchecidas, não levantam cabeça e perdem-se a contemplar a paisagem de si, escorrem em
inútil clepsidra. Portanto, hoje, o
people tratou das tarefas exteriores, andou aos recados numa fona e, os que podiam
fazê-lo, foram esperar a chuva em casa. Chuva a horas certas. Como se fora uma
telenovela ou um programa de rádio. Mas não é. Portanto, Dona Chuva (o
respeitinho é muito bonito) decidiu. E não foi na cintura da manhã, não senhor.
Ora eu, que antigamente – não havia cá meteorologias ao minuto e nem eu atentava
nas existentes – calhava de fazer compras pesadas nos dias de tormenta brava e
suava as estopinhas para conseguir chegar com elas a casa - encharcadíssima,
pois claro -, eu hoje tinha a tarde de trabalho marcada. Portanto, lá fui. Convicta
na persistência dos enganos meteorológicos.
Primeiro caíram uns pingos grossos e dispersos, coisa de quem afina o motor, perro por falta de uso. Nosso Senhor estava no seu posto a experimentar o regador, deixa ver se o ralo não entupiu. E é claro, estava entupido de mil imundícies pequenas – tanto tempo sem regar, nem podia ser diferente - e a pobre da água, sentindo-se tolhida, corria por onde e como podia. Então Deus disse, ora bolas, tenho que desentupir isto. E parou os pingos. Logo eu, já em modo de sopeira, me estiquei toda para arejar roupas de cama e abri janelas. Sem temor, deixei os édredons de penas à esparavela de nuvens sobrancelhudas. E só por Deus ser Deus é que não pensou para si, estás mesmo a pedi-las. Pois andava eu a vassourar com alma quando quase a deixei cair. Chovia a sério. Nosso Senhor consertou o regador do céu e nem avisou (já tinha avisado, não é). Ai valha-me Deus, que as penas molhadas cheiram a pêlo de cão e quem é que pode dormir com tal cheiro. Lá fui. Acabidei tapetes já respingados, fechei janelas à indiscrição da água que, farta de prisões e anti ciclones, batia o pé e se firmava nas gotas querendo por força encharcar tudo. Pingava aqui; pingava ali; molhava acolá. Chovia. Uma chuvinha a desejo que talvez dê para lavar a cara às flores e repor nos montes a clorofila .
Mas,
enquanto a alma me renasce, os ucranianos começam a viver uma guerra que não
querem nem merecem. De que desconhecem a extensão. Porque são os alvos. Eles
e não nós (por ora). Entretanto, o mundo
assiste. Em directo ou diferido, é à escolha. Eles choram, fogem e juram dar
luta ao ogre que é (pre)potente. A tecnologia é atroz, nada é segredo (ou muito
pouco), tudo se discute e opina sem compaixão. Ad nauseam. A todas as horas o jornalismo chove novidades
que são genuína tristeza. Intriga-me que pareçam quase felizes a brincar às
guerras, talvez convictos da sua importância; mas, noves fora, nada. Encontraram
tema, usam gorros e abafos bonitos e estão lá. Anunciam o horripilante enquanto
jantamos em nossas casas. Os ucranianos fogem do seu mundo para o incerto, e
nós aquecemo-nos no conforto do que nos pertence. E toda a gente fala sobre.
Fala. E fala. Mas na Ucrânia não precisam de palavras. É demasiada impiedade.
Isto não vai acabar bem.