quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Sugestão

  O outono ama ser precoce. Chega nas folhas que amarelecem, na aragem que desceu um tom, nos dias que encurtam a olhos vistos. Lento e inexorável, vai assentando. Já olhei a inútil tristura das calças sem sentir calor (pobreza dos que as não largam seja verão ou inverno) e começa a apetecer-me a ideia do tricot e dos programas de rádio. Mas não estou cheia de praia. Recuso a imagem de mar outoniço, não quero mudança na água nem que as gaivotas se assenhoreiem do areal e sobrevoem os banhistas, a posse gritada no vento. Quero ainda as águas calmas de ondas sussurantes e o intenso prazer da pele. A liberdade. E o azul, o profundo azul, o azul em cambiantes de céu e mar, esse mar por que morro ano inteiro e me ressuscita em cada verão. O verão que é de tudo e tão pouco meu, mas que, o quanto me pertença, é no mar que o viverei.

Cumpridos os protocolos a que a estação obriga, e mais aqueles que me estafam mas gosto, a praia foi ficando para trás. Portanto, passado o período de azáfama, decidi dar-lhe/me uma semana (na verdade apenas quatro dias). Grande ideia. Aproveitei os calores excessivos (isso mesmo) e fui, diária e contente, até à praia. Uma alegria. Bastava pensar que, desde a manhã ao quase noite, estava por minha conta, emigrava para o elemento que me faz sentir viva; e, a esta certeza, logo o bem-estar me alagava. Fui beneficiada por um conjunto de factores: tempo formidável (na praia corria uma brisa e estava muito menos calor que no coração amodorrado  do meu Alentejo), água na temperatura certa, livros para ler, e companhia umas vezes sim e outras não. E mais a presença de uma sereia que se baralha nas questões da lateralidade e portanto tive de ir buscá-la ao caminho - já seguia desarvorada e tonta no sentido oposto. Mas como valeu a pena. Fica-nos na memória esse dia de banhos e conversa.

Que despautério, como é que o outono se atreve a chegar tão cedo, as cegonhas ainda nem abandonaram os ninhos. Vazios, eles entortam como se a solidão lhes pese e esguedelham em desânimo que se nota da estrada. O reconhecimento desse vazio absorvente mergulha-me em melancolia e sinto que é chegado o tempo de guardar dentro de mim o caminho da praia. Ora, nada disto aconteceu ainda.

Este ano, a mente traz-me a vozinha breve de uma menina graciosa, um patinho posto em fato de banho de folhos. E trauteava, sozinha e em solilóquio compenetrado, um pedaço de cantiga (talvez ensinança de avó), "o mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz...o mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz...". Que doçura!

domingo, 20 de agosto de 2023

A Montanha Pariu um Rato

  Finalmente, cortámos a meta, que é como quem diz, entrámos em casa. Pareceu-me quente. Mas chegávamos suadas, extenuadas e com fome. Pensei, impressão minha. E lá fomos as duas, chavinha na mão, até aos aposentos. Que, haja Deus, estavam mornos. Ar condicionado? Nada. Mas o estômago exigia e, livres de bagagem, procurámos um restaurante próximo. Era um bom lugar de refeições plastificadas e que nos ofereceu bebidas frescas a gosto e em quantidade indeterminada acompanhadas de hamburguer, cujo foi tão meu amigo que só me abandonou noite alta. Um querido, ele.

Entretanto, de volta ao nosso território de fim de semana, constatámos: os quartos nem eram maus, mas eram quentes e sem outros paliativos que o duche. Calhou-nos viver neles a maior onda de calor algarvia (azar). O facto é que, de alguns anos a esta parte, e apesar de sair pouquíssimo, o calor vai sempre comigo, onde quer que me desloque. Não que eu seja uma brasa, avalio que será antes um "caso sério" entre nós, e de tamanha evidência como o cantado por Rita Lee.  Sem entrar em mais intimidades, posso afirmar que não contei os duches nocturnos e também não sei como sofreu a minha amiga aquelas horas de ar parado. O entre banhos era tempo de leitura - em boa hora levei comigo Bruno Vieira Amaral - e sauna. Uma beleza, portanto. Mas a Flor. Se na primeira manhã me surgiu desditosa e emurchecida, na segunda estava desfeita e deu-me uns bons dias peremptórios, "hoje não saio daqui para nada; não dormi e estou tão cansada que me sinto doente. Se não tivesse comprado o bilhete de volta, partia hoje mesmo - e num desalento - ai, nem quero pensar que nos falta ainda uma noite". Claro que este desabafo me deu livre trânsito. Preto no branco, fui desdobrando o meu rol de queixas. Mas resolvi sair, encerrar-me na prisão de um quarto quente é que não. Salvaguardadas as três horitas de praia (tempo fugaz, esse) - ao invés da minha pessoa, a Flor é de apetites visuais e não imersivos -, essa manhã solitária e fresca em Faro foi um acontecido bem. Comprei um semanário e segui sempre a direito - estratégia para não me desorientar -, buscando esplanada de boa sombra. E por ali me quedei posta em recato. Vicejando, por assim dizer.

Apertar uma cinta de mágoa e ficar a empolá-la o quanto possa, não resulta. A minha amiga aprendeu que nem tudo que luz é ouro (do conhecimento das freirinhas, tinha inferido, sem experimentação, o da casa). É mesmo verdade, "as aparências iludem". Por mim assentei:  era um  um fim de semana de afectos que se tornou também inesperado. Conheci Faro e a sua zona histórica onde admirei um Afonso III indiferente às estações, pelejando sem descanso e cheio de genica; senti o calor de igrejas e ruas; tirei uma ou outra foto; não apreciei a ria como pensava e antes lhe contrapus o Sado livre de excrescências, caminho aberto até Tróia; peço desculpa à ria, mas não consigo gostar de águas em que não me apeteçam banhos. Mas trouxe comigo o sabor dos gelados de lima e de limão e hortelã, duas pequenas maravilhas que a Flor me deu a conhecer. E trouxe-a a ela e à sua desilusão, lamento mudo que todo lhe escorria pela figura; trouxe-lhe o "em dobro" de cansaço. Há vezes em que não podemos fugir ao que somos: breve e irremissível poeira cósmica. 

E que  Deus esteja connosco.

A Montanha Pariu um Rato

 Quando a Flor ligou a convidar, aceitei sem hesitação: era um fim de semana fora do hábito, oportunidade única para estarmos a sós, descansadamente - as peripécias do ano escolar tinham  adiado os encontros por indisponibilidade e afazeres inúmeros; eu jamais pisara terras de Faro-cidade. Agarrei a chance. Coube-me resolver a questão dos bilhetes e a ela de hospedagem em conta, Faro já lhe fora habitação por anos.

Nessa madrugada, a perspectiva de um fim de semana diferente, descansado e com praia, tudo me fez agradável. Ia rever uma amiga, conhecer uma cidade e uma ou duas praias; a perspectiva de viver cerca de setenta e duas horas, sem horário e fora do costume, era forte atractivo. Que mais desejar?!

Pois é, só que me esqueci o quanto sou dada a distracções e irremediáveis recorrências. E foi assim que, as duas juntas e na estação certa, vimos mal a hora e a linha onde transitava o nosso Alfa (olhámos o quadro das chegadas e não o das partidas, deduzindo que o comboio trazia atraso). Da linha errada, asneadas e palermas, vimo-lo partir do lado oposto - era mesmo um lindo comboio. Não houve mais remédio que novos bilhetes e mais horas de espera. Mas estávamos a iniciar o périplo e entretivemo-nos a pôr a conversa em dia. A minha amiga, bastante cansada, ansiava chegar ao destino e dedicar-se a remansoso repouso. Relembrava que o lugar de pernoita era fresco, muito sossegado e as freirinhas que nos acolhiam uma bondade. Soava-me bem; além disso, a minha pessoa está familiarizada com percalços, são-me comuns. E fizemos a viagem na maior. Contentes do destino, apesar da chegada em hora de sufoco (que quiséramos evitar). 

Já no destino, a fila para os táxis aumentava e, dos ditos cujos, nem rasto. O conhecimento da Flor sobre transportes públicos de Faro foi providencial. Saímos da fila e, adquiridos os ingressos, entrámos num autocarro urbano. Foi o cabo dos trabalhos chegar ao destino. O autocarro ajudou-nos apenas em parte do caminho e o resto foi andar e andar sob o sol. Com duas agravantes: a minha amiga carregava bagagem pesada por, dali, seguir directa para férias no norte de Portugal; e a casa para onde seguíamos encima uma ladeira mais ou menos íngreme. Eu, menos carregada mas com o material de praia a ocupar ombros e mãos, não podia ajudar. Pela primeira vez na vida senti-me valente - seguia muito menos cansada e adiantava-me sempre (sou de andar na cauda de qualquer grupo). Fui, em constância e durante os três dias, a camisola amarela.


terça-feira, 15 de agosto de 2023

Dispersos

     Enfim encontrei alguém que partilha a minha opinião:  a biografia de Moser sobre Clarice Lispector tem demasiado autor e admiração pela obra da escritora. Na minha perspectiva de leitora, traça mesmo uma Clarice que não é inteira verdade. O meu ego  saltou de contente quando li na revista do Expresso a entrevista a Ruy Castro: igualamo-nos a pensar sobre a escrita de biografias. Moser parece-me demasiado jovem e empolgado (ouvi e vi algumas entrevistas) para ter a isenção necessária. Portanto, registo o apontamento de fim-de-semana com tempo para comprar e ler o jornal (há quanto o não fazia!). A diferença que é afastarmo-nos de casa!


    Faro pareceu-me cidade incaracterística e desalinhada no seu conjunto. Contudo, o centro histórico obedece a esquadria. O Paço Episcopal e o Seminário são duas linhas de cal amodorradas em austero ângulo recto. E a catedral em que não penetrei (mania de igrejas fechadas) e mais parece torre de castelo inexistente, está conforme ao lugar; convicta, pergunta a afirmar, estaria eu melhor noutro sítio?! No amplo quadrado de circulação, amaciado por passos e carruagens de séculos, o silêncio negro das pedras  refulge em halo de calor.  A meio de uma praça, força bélica e determinada, D. Afonso III, rei de Portugal e dos Algarves mantém-se na Vila Adentro.  Sujeito a agruras do tempo e veleidades dos homens, o senhor-rei persiste na pose guerreira, espada em riste. Dá-me alguma confiança a pose. O rei está pronto a combater os mouros que a vida nos envia.


    Em busca da praia do Farol, o passeio pela ria  não ultrapassa o prazer de um banho sem arrepios. De, em curtas horas, uma infinidade deles. Eu e os peixes. As águas são de apetite e não há vez segunda. Em contraponto, penso na minha praia, na vastidão de areia e mar, na serra que molha os pés lá ao fundo, em gaivotas que, à tardinha, voam baixo e saltitam areia fora reivindicando o seu reino nocturno; na frescura da água, por vezes excessiva; nos dias de recolhimento e leitura; em minha irmã que comunga do gosto pelo mar. Este, é outro mundo. Aprendo que não vale o meu. 


quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Ó, por Amor de Deus!

  Demorei. Talvez pelo cansaço de dar férias. A cada ano, apanha-me com mais garra e derreou a sério. Bom, houve um aglomerado de factores inesperados e algumas peripécias que me vieram parar no colo e julgo inútil botar no papel. Parvidades. Portanto, agora que herdei este estado de mente (quase, quase demente), e como uma desgraça  - diz o povo - quer companhia, sobreveio-me também um herpes que me dá certo ar de Manuela Moura Guedes do actualmente: há qualquer coisa no meu rosto que não joga.

E posto isto, tenho a participar que a minha história eclipsou, escafedeu, foi à vida dela e deixou-me para aqui entregue aos doces (?) afazeres femininos. Faltou-me, é certo, o avental empapoilado de folhos, a cintura de vespa cingida por laço desabrochado que nem rosa farfalhuda, o cabelo bem penteado e de corte moderno, o sorriso de quem tudo faz sem esforço. Ao invés, fartei-me de praguejar, tinha o avental preto, daqueles que usam as velhas viúvas nas aldeias (é que gosto deles, fazer o quê? Além disso lavam bem e não  necessitam ferro) pois esse tal estava  uma autêntica desgraça e sem laçarote, mas atado à frente com dois nós ainda assim não desmanchasse - o terylene é muito fanfarrão e, se confiamos numa aselha, mal a gente se precata está o avental à solta. Bom, quem me conhece sabe que andar penteada é coisa que nunca consegui. Ou é de mim ou do cabelo. Escolho o cabelo, às vezes gosto do papel de vítima. Portanto, imaginem que fiz um rabo de cavalo muito parecido com aquele de que Solnado escarnecia, "chamar rabo de cavalo àquilo", adstrito a um mostruário de ganchos repartidos irmãmente pelos dois lados e que pretendiam ampará-lo - sem sucesso- no ser de ponta abaixo ponta acima. Mas como é que eu podia sorrir nestes preparos, não me dizem?! E a seco, sem um café com leite. Bom, não é inteiramente verdade, num dos dias enfiei a minha droga de trazer por casa e trabalhei, trabalhei. Teve de ser (só não pespego aqui outro dito popular, para fugir à colectânea). Considero obtuso falar da minha cintura que não é de vespa vespíssima como elogiava Pessoa à sua namoradinha (dizem que o Senhor Poeta era homossexual, mas não ligo, gosto imenso do namoro deles; à parte os malogros de Ofelinha que ficou para tia, imaginá-lo a subir e descer o passeio só para que ela sorrisse é de peso). Pois. Não me lembro de ser vespa, configura-se-me que nunca fui tal. Até por não saber bem onde pôr os cintos. Mais abaixo, ou mais acima...onde é que raio fica a cintura, senhores. Ora esta.

E posto isto, visto que além da inspiração também se me foi o juízo, deixo-vos em paz e vou - talvez - espairecer no fim de semana. Sou muito grata ao Deus dos católicos apostólicos aos quais pertenço por herança, alguma convicção e quase nenhuma prática sacramental: afinal é mais fácil espairecer com uma amiga casada com Deus. Um Deus é outra coisa. Sempre Outra Coisa.


PS: desculpem, mas esqueci de contar que o portátil também se armou em parvo e o wordpad é o que me resta (pelos vistos). E portanto, puxem dos óculos que não tenho tempo para reescrever. Eu quero mesmo é ir a passeio. E oxalá.

Fiquem com os anjos da Terra e a protecção dos etéreos. Aposto que não gostam do verão, bom mesmo é estar sentadinho nas nuvens.