quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Inventário de Anjos

 

Hospedámo-nos juntas por dois anos. Contudo, a vida e a ocasião dispõem e também escolhem. O mais do que fizemos foi em lugares diferentes. Mas visitávamo-nos amiúde e quase sempre com noite incluída. Ela dava-me prendas com que eu nem sonhava, como por exemplo uma máquina fotográfica. Mais tarde, passou a dar-me roupa. Fazia-me prometer que não abria o presente senão no dia de aniversário ou no Natal e que o usava nesse dia. Certa vez pôs-me a prenda na mão e disse " e agora se faz favor não vás já a correr para casa, os teus irmãos podem esperar mais um dia. Se vais para a praia, usas isto depois de tomares banho, ouviste?  (Tróia tinha balneários). É mais nova que eu, mas armava em mãezinha. Cumpri. Abri o presente depois do banho, já o sol descia no horizonte. Do pacote glorioso e tão ansiado saíram uns calções brancos e justos que me davam abaixo do joelho - usavam-se - e uma blusa azul escura só com uma manga de cava; bem que procurei a outra manga, mas não havia. Os balneários tinham um espelho a todo o comprimento da parede. Quando me olhei entrou-me funda ternura e pensei na sorte de ter assim uma amiga e ser inimaginável que nos perdêssemos uma da outra.  Tinha a certeza que ela andara a escolher o mais original que encontrasse e me assentasse bem.

De alunas da mesma turma no ensino nocturno a amigas foi um pulinho, mas o tempo e a vida são móveis e trazem no ventre a mudança. Conhecemos outra gente, fizemos outras amizades, tivemos novos amores -  deixámos de ser corda e caldeiro. Mas tenho nela a mesma confiança. Continua leal e desabrida. É batalhadora e, não havendo batalha, inventa-a. Seguimos a mesma profissão, mas a sua determinação batia-me aos pontos se eu fosse competitiva e comparasse o que não é comparável. Apesar de se auto denominar alentejana por adopção, é uma mulher do norte integral como sou uma mulher do sul por inteiro. Continua divertida e com ideias que são só dela e não lembram a mais ninguém. Lê livros sempre a maquinar sobre o que subjaz; por norma, vemos neles coisas diferentes; ela desconstrói o romance e constrói o romance do romancista, procura nele razões pessoais que o tenham levado à escrita disto ou daquilo, a criar esta ou aquela personagem e  procura documentar as suas teorias, espiolhando o que pode sobre; o romancista não sabe, mas, se a conhecesse, chegaria à conclusão de que lhe dava tanto trabalho desconvencê-la como escrever novo romance. Eu sou apenas leitora, a vida do romancista, os motivos de tema e personagens não me interessam, gosto apenas da história. Foi ela que me apresentou a Lobo Antunes, Agustina (sua escritora preferida) e a autores estrangeiros como Camus, Hemingway e outros que não lembro - comprava livros que eu lia depois.. Continuamos a conversar sobre livros e aconselhamo-nos mutuamente. Fez de mim uma amante de cinema, vimos juntas O caçador e Era uma vez na América. Na verdade vimos juntas muito filme, mas gostei especialmente destes e recordo-nos saltando as poças de água nas ruas de Lisboa no pós filme tentando arejar o coração apertado, o nosso amigo R, seu quase irmão e bem mais novo que nós, desanuviando o ambiente como só ele sabia e inda sabe. 

No princípio da nossa amizade, quando uma à outra nos desvendámos, um dia perguntou, quando vais a casa? Dei-lhe a data e retorquiu, vou despedir-me de ti à rodoviária. E lá estava com um grande ramo de cravos, toma, são para a tua mãe. Deu-mo sem delongas e foi embora. E eu segui viagem a pensar no seu gesto. Penso muitas vezes nesse gesto e pergunto-me se seria capaz de algo semelhante.

No meu último aniversário vestiu cetim, pintou-se, aprimorou. E eu metida num percal qualquer e sem um nico de pintura, cabelo em desalinho. Sentou-se à minha direita, uma senhora fina, bonita e competente. Borbulha nela um ar de competência que pode até assustar quem a não conheça. A mim, comovida e imersa, nem me ocorre o que conversámos. 

Esta amiga é um dos meus anjos mais terrenos.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Inventário de Anjos

 

    Há datas assim, caem-nos em cima feitas marcos quilométricos. Jamais eu notaria marcos dessa natureza ao longo das estradas. Mas estão lá. A despeito da minha ignorância, só desperta ano passado  quando uma amiga, que avalio tão zonza quanto eu, puxou do telemóvel e me comunicou que, em vez de estar a chegar à praia, caminhava numa estrada, não via o mar, e parara no quilómetro não sei quantos (ela sabia o número exacto). E eu mais tonta que ela, isso é o quê?! Ela cansadíssima, bolas pra ti e pra mim, olha não sei onde estou, mas fico aqui junto ao marco, acho que me vou sentar. Eu, espera aí que vou buscar o carro e apanho-te onde estejas. E o resto da história não interessa, mas os ditos marcos ficaram-me. 

Esta converseta sobre marcos vinha a propósito de outra amiga que me ligou no último aniversário e parabéns e tal. E respondi o que se deve; tal como afirmou um querido aluno na aula de apresentação e carregando muito no erre por defeito de linguagem, "eu sou rude, sou do campo". Digo eu que ambos sabemos agradecer apesar de campónios.  E vai daí, ao convencional do telefonema juntei, "nós duas fazemos este ano 50 anos de amizade". E ela acordada para a longevidade, "ah, pois, é verdade; temos de comemorar". Eu pensava nos outroras em que vivíamos como corda e caldeiro. Porém, Agosto é mês de férias e não passávamos juntas a minha data festiva. A bem da verdade, as comemorações pessoais nasceram quando os filhos deram um basta enérgico e mesmo contundente nas suas. E quais parabéns, e quais pais e família e bolos e palmas e eteceteras. Tinham crescido.

Essa amiga que desde o início me pareceu garota modernaça e decidida, comungou apertos e ignorâncias juvenis; obrigou-me a fazer um enxoval, ajuizando ser pertença de todas as raparigas;  enxugou-me lágrimas amargas; fazíamos os tpc juntas e ajudou-me nas férias com os meus irmãos de quem se fez amiga. Em tempo de aulas saíamos à meia noite de um comboio que nos deixava na gare deserta, um quilómetro a palmilhar sem temor em vila iluminada e solitária, facto que me fazia dizer-lhe amiúde, "ainda não percebi a recomendação da tua mãe, "ai filhas não se encostem às paredes, andem pelo meio da rua". Nunca soube se não respondia à questão por concordância comigo que achava muito mais perigo em andar no meio da estrada, se os subentendidos da mãe lhe eram claros. Seguíamos rindo e conversando de tudo e nada, como se no dia seguinte não nos levantássemos cedinho porque o trabalho. Quando em minha casa, participava activamente nas limpezas, toda ela alegria despachada e convicta, eu gosto mesmo é de limpar casas sujas e de "aventar" o lixo. E ria-se do novo sentido do termo.  Nas férias escrevia-me cartas em círculo e chamava-lhes circulares, eu a dar a volta à circular porque a escrita combinava com a forma da carta. As circulares que me enviava eram ordens para uma saída nem que fosse só até sua casa, ou avisos do dia em que chegava. E selava as ditas, devidamente assinadas por ela e um secretário, com impressões labiais fixadas por batom vermelho vivo que ambas compráramos em Badajoz, sendo verdade que o meu mano caçula deve ter espreitado a mesa de cabeceira, rodado o batom sem o destapar e fui dar com ele debaixo da minha cama, todo esbarrondado e sem proveito, os tacos do quarto em vermelhidão aflita, ai, não me digam que isto é sangue, querem ver que estou doente e não sei.  Sou bem capaz de ter dado um enxota-moscas no mano mais novo pelo silêncio acerca de; aquele batom era para nada, ficava-me pessimamente e não me atrevia a sair com ele posto.  A amiga ficava linda: amarrava um lenço (usavam-se), deixava uns caracolinhos castanhos a assomar nas laterais ou cobria-os no completo de si, branca de pele e olhos verdes, o vermelho da boca ia-lhe tão bem como a mim o inverso. Tivemos sacos de praia parecidos (que ela inventava e costurava); lenços de cabeça iguais e que bisavam o cair do batom; chapéus à beto(a) e  de que não recordo o nome, mas eram brancos e pareciam chapéus de bebé; boinas bascas que só a ela ficavam bem, mas eu usava na mesma por me emprestar certo ar revolucionário; casacos de carneira e botas caneleiras (aí eu tomava algum jeito). Um mundo de coisas pequenas e baratas - exceptuem-se os casacos de carneira - de que ela se lembrava e eu alinhava contente.

(cont.)


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Lampejos

             A vida é como os alcatruzes da nora, umas vezes em baixo outras em cima. Isto diziam os antigos no tempo em que havia noras. As noras, como expliquei a muita criança que as não conheceu, eram uma roda gigante e metálica com caldeiros pendurados. Este artefacto montava-se sobre um poço por forma a haver sempre alguns caldeiros imersos. A roda girava através de roldanas  por esforço de burro, cavalo, macho ou égua, almas do sistema já que o faziam mover. Os pobres bichos rodavam em volta do poço de olhos vendados para julgarem que iam em frente - os animais não são destituídos de inteligência. Horas cansadas as que gastavam ligados à nora, baldes abaixo e acima, sob as patas um círculo calcado e remoído de sulcos, a nitidez das ferraduras a falarem do caminho  redondo, umas apagando as outras em cada volta, aqui e ali a anarquia de desafogo intestino que pisavam e fedia. Alguns garotos, se o hortelão regava lá pelos fundos, afoitavam-se quinta fora e, aproveitando os olhos vendados, judiavam do animal. Se a marcha abrandava, logo o malvado hortelão se aproximava e lhe zurzia o lombo, "Arre burro! Em frente burro de um cabrão" (isto sendo o burro, claro; que a conversa não diferia se o animal fora outro). Acudia - até aos catraios mais judeus -  uma piedade dolorida de assim batidos andarem os animais ao engano, eternos na esperança de  chegar, talvez sonhando-se livres do jugo que os fazia presos e sofridos. Nos intervalos das voltas - enquanto o animal pisava do outro lado do poço -, os garotos,  em bicos de pés, espreitavam a água cada vez mais funda e os caldeiros em eterno vaivém, perdendo líquido que a fundura recebia em eco sinistro, alguns mergulhados na escuridão da água. Havia um sobe e desce de caldeiros que enchiam de água no poço  e, chegados ao cimo, um a um a despejavam numa calha, passagem afeita a frescura ímpar que formigava desejos sôfregos na garotada. A calha era caminho para o tanque de rega onde a água caía em sussurro contínuo. À superfície do tanque que lhes surgia enorme, libelinhas coloridas ziguezagueavam contentes, cada um perfilhando uma por via da cor. Na parte baixa do tanque, retirada a comporta (rolha de cortiça),  a água corria por forma a regar leguminosas e árvores de fruta. Deve ter nascido deste sistema de rega a complexidade escolar de problemas com tanques que em simultâneo recebiam e perdiam água. Que culpa poderia ter a água, assim límpida e fresca, caindo de manso no tanque onde uma ou outra garota ousava uns dedos e depois a mão inteira. O inventor de tal aritmética, raro entendida por crianças, por certo desconhecia passos líquidos em regueiras de terra simples, os garotos invejando a frescura e o vagar com que a água deslizava, pés num desatino sedento. Mas o hortelão. O vigilante carrancudo, um diabo adivinho que vinha pomar fora, o cabo da enxada virado a eles, "o primeiro a pôr um pé na regueira atiro-lhe a enxada acima". E atirava a enxada que batia na terra a meio caminho, um baque surdo que entendiam por "desculpem lá o mau jeito, pirem-se antes que seja tarde". Quando o homem ia por ela, acentuava a carranca e,  olhos vândalos de peçonha, vociferava, "ponham-se daqui para fora seus bardamerdas, só sabem roubar e dar cabo de tudo".

Não precisava tanto. À vista da enxada no ar, os garotos debandavam à força toda, receando o golpe e mais a sova em casa por invadirem lugar que lhes não competia. Só paravam na estrema do território. Aí, arfando, esperavam os que, com a pressa ou por serem mais pequenos, se tinham enrolado nas pernas e caído. E combinavam fazendo-se valentes, "contamos até vinte; se não vierem, vamos ver se o mama-na-burra os aleijou". E iam contando devagar não fosse dar-se o caso de terem de voltar a terra estrangeira. Mas logo os restantes apareciam esbaforidos e amedrontados, as gaiatas umas para as outras " apalpa lá o meu coração, bate com tanta força". E o minorca desligando-se da irmã, a fazer-se notado, "corri tanto que até batia com os calcanhares no cu" e acrescentava em meia afirmativa, "não fui o último, pois não?"  E os primeiros a mirá-los, um trejeito depreciativo a torcer-lhes a boca, armados de forças que não tinham, "cagarolas". Sentavam-se no chão encostados ao muro, protegendo-se na magra tira de sombra, pés de pó, o suor escorrendo em fitas de sujidade, cabisbaixos do proibido, raivando contra o hortelão. Foi aí que o Justino cuspiu de chofre, "d'hoje pá frente o mama-na-burra fica lobisomem". 

E por ali se quedaram rindo alto e inventando vidas de lobisomem. Contudo, por dentro,  roía-os o sonho nunca enunciado de um impossível banho no tanque de rega, a imaginação de brincadeiras dentro da água a que nunca chegariam. Anos mais tarde, compensaram o tanque proibido com idas à ribeira desleal que matou dois deles sem autorização. A ribeira era um nunca mais de água e só alguns - muito poucos - viram o mar e nele molharam os pés, calça arregaçada, homens já de sua casa, a puxarem de filhos temerosos, "anda, um dia cresces e vens banhar aqui". Que é deles, esses que me habitam sujos e felizes, infância gregária encostada no muro branco da Quinta Grande.