Hospedámo-nos juntas por dois anos. Contudo, a vida e a ocasião dispõem e também escolhem. O mais do que fizemos foi em lugares diferentes. Mas visitávamo-nos amiúde e quase sempre com noite incluída. Ela dava-me prendas com que eu nem sonhava, como por exemplo uma máquina fotográfica. Mais tarde, passou a dar-me roupa. Fazia-me prometer que não abria o presente senão no dia de aniversário ou no Natal e que o usava nesse dia. Certa vez pôs-me a prenda na mão e disse " e agora se faz favor não vás já a correr para casa, os teus irmãos podem esperar mais um dia. Se vais para a praia, usas isto depois de tomares banho, ouviste? (Tróia tinha balneários). É mais nova que eu, mas armava em mãezinha. Cumpri. Abri o presente depois do banho, já o sol descia no horizonte. Do pacote glorioso e tão ansiado saíram uns calções brancos e justos que me davam abaixo do joelho - usavam-se - e uma blusa azul escura só com uma manga de cava; bem que procurei a outra manga, mas não havia. Os balneários tinham um espelho a todo o comprimento da parede. Quando me olhei entrou-me funda ternura e pensei na sorte de ter assim uma amiga e ser inimaginável que nos perdêssemos uma da outra. Tinha a certeza que ela andara a escolher o mais original que encontrasse e me assentasse bem.
De alunas da mesma turma no ensino nocturno a amigas foi um pulinho, mas o tempo e a vida são móveis e trazem no ventre a mudança. Conhecemos outra gente, fizemos outras amizades, tivemos novos amores - deixámos de ser corda e caldeiro. Mas tenho nela a mesma confiança. Continua leal e desabrida. É batalhadora e, não havendo batalha, inventa-a. Seguimos a mesma profissão, mas a sua determinação batia-me aos pontos se eu fosse competitiva e comparasse o que não é comparável. Apesar de se auto denominar alentejana por adopção, é uma mulher do norte integral como sou uma mulher do sul por inteiro. Continua divertida e com ideias que são só dela e não lembram a mais ninguém. Lê livros sempre a maquinar sobre o que subjaz; por norma, vemos neles coisas diferentes; ela desconstrói o romance e constrói o romance do romancista, procura nele razões pessoais que o tenham levado à escrita disto ou daquilo, a criar esta ou aquela personagem e procura documentar as suas teorias, espiolhando o que pode sobre; o romancista não sabe, mas, se a conhecesse, chegaria à conclusão de que lhe dava tanto trabalho desconvencê-la como escrever novo romance. Eu sou apenas leitora, a vida do romancista, os motivos de tema e personagens não me interessam, gosto apenas da história. Foi ela que me apresentou a Lobo Antunes, Agustina (sua escritora preferida) e a autores estrangeiros como Camus, Hemingway e outros que não lembro - comprava livros que eu lia depois.. Continuamos a conversar sobre livros e aconselhamo-nos mutuamente. Fez de mim uma amante de cinema, vimos juntas O caçador e Era uma vez na América. Na verdade vimos juntas muito filme, mas gostei especialmente destes e recordo-nos saltando as poças de água nas ruas de Lisboa no pós filme tentando arejar o coração apertado, o nosso amigo R, seu quase irmão e bem mais novo que nós, desanuviando o ambiente como só ele sabia e inda sabe.
No princípio da nossa amizade, quando uma à outra nos desvendámos, um dia perguntou, quando vais a casa? Dei-lhe a data e retorquiu, vou despedir-me de ti à rodoviária. E lá estava com um grande ramo de cravos, toma, são para a tua mãe. Deu-mo sem delongas e foi embora. E eu segui viagem a pensar no seu gesto. Penso muitas vezes nesse gesto e pergunto-me se seria capaz de algo semelhante.
No meu último aniversário vestiu cetim, pintou-se, aprimorou. E eu metida num percal qualquer e sem um nico de pintura, cabelo em desalinho. Sentou-se à minha direita, uma senhora fina, bonita e competente. Borbulha nela um ar de competência que pode até assustar quem a não conheça. A mim, comovida e imersa, nem me ocorre o que conversámos.
Esta amiga é um dos meus anjos mais terrenos.