domingo, 29 de maio de 2022

Cavaleiros do Apocalipse

 

É um dia depois do outro. E assim. Num dia estou nas urgências hospitalares (não contigo, felizmente); e no seguinte te festejamos. Ter 89 anos é obra, neste momento não existe na terrinha quem se te compare em longevidade, és um campeão, sempre foste, no bem, no mal, no assim-assim. O nosso campeão.

Tudo vais deixando pelo caminho. Já quase perdeste o andar e a idade também te obrigou a pôr de lado a bicicleta. Deslocas-te de automóvel a ver gente, tomas o teu pequeno almoço e lês o jornal. Para além desse agasalho de quatro rodas na dependência de periclitante atestado, agarras-te ao bordão e, diariamente, travas batalha pela manutenção das pernas, caminhas esforçadamente. As laranjeiras, de certeza tão ou mais tuas filhas que nós, estão a habituar-se – mal - a mãos de boa vontade, menos sábias e isentas ternura, estranhas, tenteando cumprir. Triplicaste em single o tempo que permaneceste em doble. E conservas a tua marca: embora te canse mais e quadripliques os perdigotos, o mau génio assola-te o sentir, os gritos rompem-te o mutismo mal desconfias que alguém ousa tirar-te poder ou te engana. Não és, nunca foste, homem de ternuras. Jamais te surpreendi um gesto terno ou beijo a descaso – ou a caso. Tudo escondeste. Sempre. Não te vi beijar ou abraçar quem fosse. Assisti-te o choro uma única vez por morte súbita do irmão mais querido. Acredito que tenhas chorado pela companheira que perdeste – com e sem lágrimas –, mas apenas te vislumbrei os olhos húmidos na despedida. Pouco te queixas, agarras-te à vida com a força de raiz aprumada e vencedora  que os anos afundaram até onde.

E hoje, hoje mesmo, és o vitoriado vencedor. E nós quatro seremos o brinde que mereces, um de nós sempre na dianteira, mais brinde que tudo o resto. Mas isso é de somenos. Brindemos. Na mente tenho a tua breve queixa de vez única e a propósito de um neto, um desabafo de voz embargada “custa muito viver sozinho, eu é que sei”. E no silêncio que se seguiu havia tanto desalento como fundura de mágoa.

É tudo vida. Faz parte. Cá estamos, não é? Juntos e a celebrar(-te).

PARABÉNS, PAI

 

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Retoma

 

Quando ela vivia na ponta do Algarve eu acorria a Lisboa se acaso seguia viagem no Alfa Pendular. Almoçávamos juntas a cada três meses e confidenciávamos uma à outra a vida contável. Os comboios ma traziam e levavam. Não vinha por mim, mas sentia em cada vez que, mesmo entre comboios, o nosso encontro existia.

Chegava primeiro e aguardava-a na gare. O meu coração em festa via o comboio crescer, os travões sustendo a marcha até à inacção. Depois, assistia ao abrir de portas das carruagens e cismava a tentar adivinhar de onde surgiria. Reconhecia-a mal punha o pé no primeiro degrau e corria a ajudá-la com a bagagem. Os comboios são um amor latente que me vem da infância. Na minha mente mantêm inalterado mistério, imagino que podem parir personagens inesperados e gente invulgar. Ou, quem sabe, desembarcam pessoas que não vejo há séculos e em incredulidade me reconhecem, a dúvida a ganhar peso na pergunta “não é fulana?”. Na realidade, não tenho memória de me trazerem senão o que já esperava. E muito mudaram. Não se alimentam de carvão; o rosto do maquinista já não espreita afogueado a bandeira verde desfraldada na gare pelo chefe de estação; desapareceram os rolos de fumo que o envolviam e eu mirava expectante, inventando que quando se dissipassem havia de lá estar outra coisa que não um comboio; falta-lhe a carruagem negra e inviolável com os dizeres “CORREIO” rebrilhando amarelos, que eu julgava atafulhada de cartas até cima e os agulheiros – não conhecia outros funcionários da CP senão eles - custavam imenso a despejar, via-os mesmo lá em cima dos montes de cartas a encher sacos e sacos de correio. Outra particularidade dessa carruagem era a boca aberta – uma tira como a dos marcos de correio - sedenta de missivas e onde a menina Susana, subindo um degrauzinho, deitava diariamente um aerograma. A menina Susana que era assaz jovem, vivia com os sogros e detinha uma tristeza muda a que apetecia dar consolo.

Mas agora o panorama é outro. A minha amiga mudou de casa e vive mais próxima. Quase, quase, frente a uma estação de comboios conhecida. E vemo-nos infinitamente menos. Ela espera-me em casa e chego pontual, a aproveitar todos os minutos que nos pertencem. Continuamos a almoçar juntas e, em conversa, vamos ver a água. Mas, enquanto eu não me canso daquele manso rumor, a ela incomoda-a o sol. E sentamo-nos na sombra, em lugar que escolhe, a desfiar pormenores. Talvez alargando nós. E eu mentalmente, desculpa estar de costas, não é minha intenção ofender-te, tenho mesmo ganas de me sentar ao contrário. Por mim ficava à tua beira, desimportada do sol a bater-me na tola, olhando o espelho que os barcos cortam de manso e tu festejas contente. São barcos alegres, bem diferentes dos que, em meus verdes anos, me levavam e devolviam. Mas fazem a mesma viagem e sou incapaz de olhá-los sem nostalgia. Eu sei que sobre ti rodopiam, em voos de sol, as feras gaivotas de olho de lince que descem abruptas sobre os peixes. E, apesar dessa injustiça cósmica de sermos alimento uns dos outros, vê-las lembra-me mar, areia e eternos dias soalhentos.

E depois de a deixar em casa, regresso tão ensimesmada que me esqueço de ligar o ar condicionado em dia de calor.

 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Sombra Chinesa

 

E a vida seguiu o seu ritmo, cada um em seu mester. Neste ínterim, a filha do Pelinhos não assomou à rua de Francisca e nem a carrinha do Chico alguma vez por ali se perdeu. O povo comentava “são pobres e mal agradecidos, tanto que a rapariga deu a ganhar aos dois e agora, no meio desta desgraça, nem a cara lhe dão”. Mas o Chico tinha suas razões. A GNR espiolhava os cantos mais escusos e ele já se via atrás das grades, que o conteúdo da carrinha era tudo menos coisa licenciada. Portanto, resolveu alterar planos e tornar ao Norte, adiando o regresso a casa por um ou dois meses. Voltaria quando a poeira assentasse e os GNR recolhessem ao posto. E se bem o pensou, melhor o fez. Antes que aos representantes da lei acudisse alguma ideia estuporada, deixou à mulher uma braçada de produtos e, na traseira da carrinha, arrumou ao escuro o resto da mercadoria. Partiu pela fresca, em madrugada clara, ainda os galos não cantavam.

Quando minha avó desvendou os entrefolhos da notícia, logo Ernesto se elevou do vulgo e guindou a meu herói. Lembrava-o a conversar com os mais velhos, um rapaz comum e de olhos bons. Galvanizava-me o seu interesse pelos desprotegidos da sorte, que tudo o resto eu desconhecia. Mas, e talvez por intenção de minha avó, criei medo à recém-descoberta PIDE, entidade que antes desconhecia. A velha amaldiçoava a organização e falava-me dela com tal desprezo e temor que me convenceu. Era gente da nossa igualha que se disfarçava de amiga e se infiltrava na confiança de qualquer e nos delatava sem escrúpulos a troco de míseras benesses que lhes caíam como sopa no mel em tempos de carteira vazia e olhos de fome a mirá-los à mesa da janta. Possivelmente por me julgar ainda imatura, a velha não me contou das sevícias que infligiam em nome da defesa de um Estado podre que desprotegia os mais necessitados e os queria para sempre de cabeça baixa, foçando na miséria que os impedia de ser gente.

 Por essa época, iniciei a leitura de romances e a imaginação levava-me a caminhos de luta onde eu mesma era uma heroína; a dada altura, encontrava Ernesto e ficávamos amigos do peito até à morte longínqua, irmanados pela geografia natal e por ideias a que eu ainda desconhecia filiação política.

Pardal caído do ninho, Francisca sofria e desmesurava com o filho que descobria. Perguntava-se se não seria engano, uma mentira bem enrolada que alguém inventara para o prejudicar. Inquiria o marido e o mais novo mas também eles no escuro. Agasalhada na esperança que ela mesma inventara, negava a realidade.  Mas quando foram por novas no quarto alugado em Lisboa, a proprietária confirmou, eram as quatro da matina bateram-me à porta como quem vem tocado a fogo. Abri. Era a Guarda. Nem um salve-a Deus, que a gente daqui não usa disso. Arredaram-me à bruta e subiram a escada como se conhecessem a casa. Vejam vocês que até sabiam qual era o quarto do Ernesto. Apanharam-no a dormir, coitadinho. Que, e não é por a mãe estar a ouvir, é um rapaz muito educado, assim fossem todos. E Francisca, lencinho de mão a limpar a pressa de uma lágrima, assentia de cabeça, voz embargada e ciciante, é verdade, é verdade.

domingo, 15 de maio de 2022

Sombra Chinesa

 

Na aldeia, o interesse pelo mancebo retido boiava em águas salobras de muita dúvida e, sem notícia, os dias corriam devagar, uns atrás de outros. Sem saber o que fazer, aflitos e ignorantes, medrosos do que poderia suceder ao filho, os pais pediram ajuda à professora. Sabiam todos que D. Brites tinha um irmão na GNR e que trabalhava em Lisboa. Depreendia-se ser graduado, pois visitava a irmã em carro do serviço e com chofer. Por vezes, surgia fardado e, pela vestimenta, todos compreendiam que era alta patente. D. Brites, uma solteira púdica e reservada, sempre muito lesta no uso da régua, cumpria amplamente o determinado por lei ao estatuto de professora primária. Era pessoa crente e autoridade muito respeitada.  Das visitas que o irmão fazia, se inferiu serem muito próximos. Foi devido a esse amor fraterno que, bem mais tarde, se soube o paradeiro de Ernesto. Ou talvez a dívida seja ainda maior, mas disso ninguém soube. Portanto, pouco depois do pedido de socorro do casal Nunes e Francisca que se apresentaram em lágrimas na casa da professora, como que por artes mágicas, D. Brites informou os pais que Ernesto se encontrava em Caxias, proibido de visitas. Foi ainda por intercessão da mestra que, passado algum tempo, os pais conseguiram enviar-lhe alguma roupa interior, víveres e os amados livros. O irmão de D. Brites revelou a sua importância entregando em mão os presentes e recebendo carta impoluta que, se não descansou os pais, lhes foi unguento na ferida e apaziguou a dor - estava vivo, conseguia escrever.  E disto não se falou na aldeia que D. Brites avisara peremptória, “pela saúde do vosso filho, nem uma palavra sobre o assunto ou comprometem o mensageiro e sabe Deus o que pode acontecer aos dois”. De modos que a professora se aveio com a má vontade popular que muito lhe estranhou o comportamento, tão amiga do garoto e agora faz uma destas. E rematavam, têm tudo de mão beijada, como é que podem entender o padecer de quem vive com uma mão à frente e outra atrás. Francisca, capaz de beijar o chão que Brites pisava, a muito custo se retinha. Mas o bem do seu menino e a gratidão por quem se prestara a tão grande favor, selavam-lhe a boca; e respondia com silêncio e lágrimas às vozes do povo. Vinha-lhe às vezes uma saudade da filha do Pelinhos, a vontade de lhe chorar no ombro em desabafo. Mas esse tempo de provar e pensar em roupa sentia-o longe, como que noutra vida. O afastamento da outra ilustrava uma verdade que antes preferira ignorar, era uma amizade comercial, agrados de vendedora que lhe tinham caído na fraqueza, perturbavam-na ainda. Melancólica, ouvia-lhe o riso, sentia-lhe a vibração da voz, a eficácia das mãos alisando uma prega, desfazendo uma ruga, ajustando a cinta de saia ou vestido. Pensava para si se haveria na aldeia mulheres como ela, bem casadas e famintas. Ou se todas as mulheres padeciam dessa injustiça primeva e peculiar de eternas insatisfeitas e para quem os homens são companhia insuficiente. Se, talvez, uma amizade feminina e inteira a ajudaria a preencher lacunas e a ordenar os sentimentos. Que amigas, por ali, nunca as tivera. Mas, filosoficamente, acabava reconhecendo que sentia apenas o que é comum de todos e não distingue homem de mulher, a insuficiência inesgotável que mora em cada homem, como se haja nele, contínua, a necessidade de se cumprir.

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Sombra Chinesa

 

A maioria lamentava-lhe a má sorte e compadecia dos pais, a GNR a vigiar-lhes a casa e os movimentos, por mor de ver se eram coniventes e acobertavam ideias contra o governo. Outros o louvavam em segredo, um rapaz corajoso, isso é que ele é, sempre ao lado dos mais fracos; e olhem que não tinha necessidade, nada lhe falta. Estes lastimavam contristados, só ele sabe o que por lá pena, diz que está na solitária e os pobres pais não têm ordem de visita. Que, havendo ordem para escrever à família, é tudo espiolhado e passado a pente fino, o pobrezinho nem pode alumiar o mal que lhe fazem. É má sina ser apanhado, fazem-nos sofrer de muita maneira a ver se os obrigam a acusar os camaradas, gente com as mesmas ideias. E rematavam em desalento, terá sido acusado ou já andaria debaixo de olho há um ror de tempo e descobriram alguma coisa por onde pegar. E havia os entendidos que sentenciavam, mais lhe valera estar preso por roubo ou assim, de certeza sofria menos, não há gente mais desalmada que a polícia política; aqueles são capazes de tudo.

Ernesto virou tabu nas conversas de viva voz. Apenas nas solidões mais áridas ou na intimidade entre marido e mulher, acautelados por olhares em redor, surgiam desabafos e comentários. Às crianças nada se disse e, para não prejudicar Francisca e Nunes, a aldeia fazia de conta que Ernesto continuava na cidade, empenhado nos estudos.

Mas os homens a tudo se habituam. Dizem os entendidos que é fenómeno de adaptação. Portanto, seguindo a ordem natural, o que começou por ser novidade, breve se tornou facto e foi assimilado. As visitas da  GNR, cada vez mais esporádicas, como que findaram depois de adquirida a certeza que os pais desconheciam os ideais do rapaz, um conspirador subversivo que ameaçava o governo de Salazar e Américo Tomás, autoridades máximas e sacrossantas que lhes pagavam o sustento, lhes ordenavam lealdade e denúncia acima de quaisquer valores de sangue ou simpatias e os empertigavam em temida sobranceria de pança, botas e cacetete.

Enquanto isto, por onde andava sua excelência a filha do Pelinhos? Pois a nossa heroína de pouca monta estorvava-se da cliente e, na companhia do Chico, voltara aos montarecos solitários que branquejavam na paisagem e onde, por isto ou aquilo, sempre iam vendendo alguma coisa. Por essa altura, a terra como que esquecia as efemérides temporais e se fixava no presente primaveril. Pelo vidro aberto da carrinha a mulher aspirava os pródigos cheiros da terra que desabrochava em verde estuante  pontilhado de mantos floridos e silvestres, ora roxos, ora amarelos ou rosados. E ela a inspirar como quem se enche de vida e desviando do rosto o desalinho dos cabelos, que bem cheira a primavera. Era o odor a terra bebé, um começo de mundo indestrutível, oferta da natureza pontual. Ao volante, o Chico, homem de curta poesia, avançava, pelo menos ainda não sofremos o pó e calor que há no verão. E acrescentava convicto, corremos mais montes, gastamos menos gasóleo e, chegada a noite, é menor o cansaço. Sem resposta, a mulher embebia na paisagem. Longe do Chico e dos melindres da terra, descansava. Ia observando a paciência de sobreiros que reverdeciam; pássaros arrelampados e lestos, esvoaçando na frente do carro.  Imaginava que o ar estava saturado de uma alegria venturosa que desbordava em harmonia de trinados submersos por asperezas do motor.

Quando a mente se me pára

 

A culpa – ó mentalidade judaico-cristã – é do calor. É de tudo, but me. Digo eu. São estes dias encalmadiços, esta aragem que não há, este sol que madruga. É da água que não nos quer e anda em nuvens emigradas, borrifando os longes de nós. É das moscas da fruta e mais outras muitas que proliferam em nuvem e, como diz meu pai, nem a cura para o bichaço acaba com elas. Pois é. Por vezes, que são bastas vezes, pára-se-me o raciocínio. Ora vejam (leiam).

Um dia destes, resolvi dar uma voltinha por Lisboa. Mesmo. Às vezes, os provincianos gostam de ir tomar o ar da cidade, ver a paisagem humana, andar nas ruas que estão sempre no lugar, mas para eles  - digo, nós -  são novidade. É ar que se toma às colheres e age como remédio que não cura mas alivia, dá uma aberta à doença. Fui de companhia com quem entende a capital ao volante e nada sabe de subterrâneos. Mas eu sou de debaixo da terra e arrasto as companhias para esse interior temido. Os meus motivos são a rapidez e o descanso de ter apenas paisagem humana à disposição. Portanto, deslocámo-nos de Metro.

É claro que no Metro sou um ás. Entendo de todas as linhas (são apenas três) e vou-me orientando. Não obstante, é frequente enganar-me a mim mesma e a outrem. Ainda não compreendi a razão de me chegar à frente a informar quem seja, se raro acerto. Pobre de quem se abeira por tal motivo. Nestes casos, a intenção é insuficiente.

Bom. Claro que fizemos compras baratíssimas e sentámo-nos no Metro a mirá-las em duplo contentamento: por serem nossas e por não nos escalpelizarem. Ainda na estação, eu, entendidíssima em linhas de Metro, tinha-a informado do percurso e dissera qualquer coisa como, “temos de mudar em S. Sebastião”. No caso, sentadinhas lado a lado, cada uma com seu saquinho, ela tirou uma mala que achava um máximo e eu estava testando fechos e interiores, a mão no fundo das divisórias a palpar o tecido do forro. E eis senão quando a oiço dizer, “olha o S. Sebastião”. Achei um despropósito. S. Sebastião é aquele santo com ar de adolescente copinho de leite, quase nú e atravessado de setas ao desbarato. Dei uma olhadela incrédula à paisagem humana pensando que alguém se poderia mascarar de S. Sebastião, que isto há gostos para tudo. Não vendo nada suspeito, supus que podia um passageiro trazer uma imagem do santo à vista de toda a gente, seria devoto ou assim. Mas continuei sem enxergar nada de nada. Investiguei o exterior, quem sabe, era dia do santo e havia nos pontos de paragem um altar ou um andor com a imagem, podia até haver uma procissão que atravessasse a rua por ali por ser mais fácil. Foi isto que pensei. Mas continuei na mesma. Na estação, não havia sinais do santo. Quando olhei intrigada para a expectante colega, a mão ainda dentro da mala, fez-se-me luz (finalmente!): estávamos em S. Sebastião. Devo ter gritado "ai! S. Sebastião!", ou afim. Saímos disparadas e só tivemos tempo para correr de encontro – mesmo de encontro – às últimas pessoas que acabavam de entrar, o sinal de partida num aviso. O Metro arrancou deixando-nos na estação deserta – uns já tinham subido e os outros seguiam viagem. Quando contei de viva voz a estultícia que me assaltara nesses breves minutos, rimos demais e em bom som (ainda estou para saber como é que consegui pensar tanta parvidade). Uma vez ou outra, absorver em paragens cerebrais deste teor, não é completo desastre. Aquelas gargalhadas a ecoar foram o melhor do dia, regressámos mais leves.

 

domingo, 8 de maio de 2022

Sombra Chinesa

Foi neste quadro dúbio e só por ela apercebido que a notícia deflagrou e lhe varreu dúvidas e desejos. Ernesto, o filho mais velho, fora preso. E a prisão do rebento era sofrimento bastante e de maior urgência.

 O rapaz levava-me anos de avanço nas letras e estudava para doutor não se sabia bem de quê e nem isso interessava. Na aldeia só riscavam doutores de leis e médicos, tudo o mais era lavoura de pouco mérito. A professora que lhe ensinara as primeiras letras, se alguém o nomeava, assentia impante, uns laivos de ternura na voz, tem muito boa cabeça, um aluno como não há. Os pais orgulhavam-se sem modéstia desse filho exemplar e esperavam-no formado e bem de vida. Era de boas falas e fazia-se próximo aos desvalidos, facto que, com o correr dos anos, aumentava a estranheza dos progenitores, damos-te tudo, estudas na cidade grande como o Jaime, para que acompanhas com pobretanas que não têm onde cair mortos, que conversas com eles, se em tudo te são diferentes. A resposta de Ernesto chegava embrulhada em sorriso aberto, não podemos esquecer o berço e olhem que os homens, quaisquer que eles sejam, têm muito em comum. E a mãe simplificando ideias numa pontinha de orgulho, este rapaz sai ao meu pai, tem coração de oiro.

Nunca se soube quem propalou a notícia, mas o certo é que, de mistura com a comum perplexidade, saltava à vista a aflição pesarosa da família.  Estupefacta, a aldeia perguntava-se como podia ter acontecido, Ernesto era boa alma, nada fazia supor que pudesse ser preso. E onde estaria. Teria roubado, matado alguém, seria crime que os pais não perdoavam e por isso não iam de visita. Mas, tal como a notícia chegara anónima, assim aconteceu com a secreta justificação que ilibou pais e irmão e estarreceu todos, parece que é preso político, coitadinho. A aldeia encheu-se de cochichos e temores sussurrados em vozes pequenas que espiralavam em tibiezas reticentes. Dizia-se mesmo que alguém – seria qualquer aldeão – lançara as más novas. E era indubitável, tal pessoa só podia ser da PIDE. Havia, pois, redobrado cuidado com o que se dizia e a quem. Duvidava-se de um por apurar a orelha para conversas de rua, de outra porque perguntava demais, de algum que sempre fora invejoso e de má catadura, deste porque aparecia com dinheiros novos, daqueloutro que era vingativo e mau como as cobras.  A sensação de desconfiança só abrandou – e a brandura é o princípio do esquecimento – quando alguém se lembrou que o PIDE podia ser de fora, um fornecedor da mercearia ou da taberna, um ourives itinerante, o amola tesouras que vinha da aldeia vizinha, o carteiro proveniente da vila, ou mesmo algum dos agulheiros que chegavam e seguiam de comboio depois de cumprido o turno. E, à medida que a confiança renascia nos olhos – todos ansiavam pretexto para voltar a confiar -, a compaixão pelo jovem enraizava.


quinta-feira, 5 de maio de 2022

Sombra Chinesa

Talvez o encanto do mundo se manifeste também nos desencontros e as histórias, mais que por sincronias, evolvam através de perplexidades e involuntários mal entendidos entre os homens. Por vezes, na viagem de emissor a receptor, a mensagem  sofre alteração, distorce, inflecte em direcção inesperada.  Assim sucedia entre as duas mulheres. Que os desejos de uns não são os de outros. Uma esmifrava-se em cuidados e psicologias baratas de vendedora à conquista, e,   mal satisfazia o intento, esquecia tudo.  A outra apegava-se a esse mundo de lisonja que agradavelmente a sobressaltava e lhe afagava a vaidade em idade de carrapito que não usava. À filha do Pelinhos interessava apenas a cliente, os atributos de Francisca morriam-lhe após o acto de mirá-los. Em ímpeto de boa vendedora, enaltecia-lhe pormenores do corpo, coisa de propositada intimidade entre mulheres, caía bem à cliente e a si trazia o que importava: dividendos. Reconhecer e mostrar os pontos fortes de cada uma, pessoalizava a relação comercial, quase a iludia. E tornava mais receptiva a vaidade das possíveis compradoras, fixava-as no produto. Inconsciente do seu poder, a filha do Pelinhos ia além da intenção. Porque, em Francisca, os elogios faziam mossa. Antes, os espelhos devolviam-lhe imagem de hábito que aceitava sem se deter e não lhe ocorria melhorar. Agora, dava por si verificando as afirmações da outra. Observava-se pela primeira vez; era, em simultâneo, observador e observado.  Mas confundia-se na admiração do que sentia e antes julgava apenas consequência do jogo marital, coisa de acontecer entre homem e mulher, como se em cada quadrado sua dama sem mistura; e agora, só desordem. Ajuizava para si que tal sentir era impróprio, doentio e reprovável. Não que notasse na vendedora algum avanço ou olhar menos rotineiro. Bem o catalogava, era isenta mirada de avaliação. Porém, confuso e delator, subia-lhe um rubor insensato que a afogueava. E havia o estúpido desejo de que os dedos que lhe afloravam a pele fizessem caminho. Recriminava-se mentalmente. Disfarçava cores e suor. Julgava-se anormal e prometia de si para si não provar as novidades que, qual Ali-Babá explorando a caverna, o Chico exibia frente ao seu nariz, o vagar de uma mão aberta a fazer vulto por dentro do tecido, em sugestão insidiosa. Cria que, sem passar a porta, a filha do Pelinhos não causaria dano e decidia firme, compro colchetes, elástico, pano de lençol. Não contava com a instigante perseverança da vendedora que fazia contas a mais uns trocados, nem com o desejo que lhe rebentava em urgências  de ouvi-la e vê-la, esperando sempre na ajuda de veste e despe. Portanto, sucumbia varrendo propósitos e havia sempre uma vez seguinte.