terça-feira, 30 de março de 2021

Prenúncio

 

Sem aviso, o sol invadiu-nos as vidas tão cheias de coisa nenhuma. E a falta que nos fazia. Leveza clareando agruras de sombra. Um bálsamo sobre as pequenas feridas de clausura a fazer cair carapelas. Igual a sempre, corri – a coxear, bem entendido – a puxar de gavetas e roupeiros as roupas de nim, que são aquelas peças adequadas ao modo de primavera. Não têm já a espessura  dobrada do inverno e nem a impudícicia do verão. São nim. No estendal, as peças entregaram-se a eufórico agitar de braços e pernas, enquanto as saias adejavam invejados e coloridos semi-círculos nas recatadas barbas de calças monocórdicas. Mas os vestidos. Os meus prezados vestidos. Trato-os por senhor, um ou outro por vossa excelência. Transporto-os dependurados nos cabides e estendo-os tal qual, respeitosamente, num se faz favor não se deixe cair que não o quero molestado pela poeira, a terra não lhe convém. Meio vaidosos, fazem questão no aprumo que não desmancha e por ali se quedam oscilando lembranças de gente fina, coisas que sonharam ou viveram noutros corpos. Fidalgos, ofende-os o balanço da aragem e chego a  temer que nem me precisem, talvez  ao vesti-los tenha de pôr o joelho em terra, dá-me licença. Ou dão-me uma dentada de fecho éclair, partem-me a paciência no apertar de um botão, estilhaçam-me o bom humor com prosápia de bainhas deitadas abaixo. Muito senhores do seu nariz, os vestidos. Finjo que acredito serem de sangue azul e uso com eles de delicado modo, pergunto por exemplo tomando-lhes o pulso, com cinto ou sem; e depois ausculto, este ou este. E deixo que escolham. Mea culpa, dou pesado contributo para o degrau onde se julgam.

Mas hoje, na quietude que certifico da janela, há um céu de pó, deserto por desabar-nos em cima. Que vem do Norte de África, dizem. E a chuva será lama. Sem a promessa ridente do sol, o estendal olha-me em desamparo e o gato é eunuco sem lembrança. Na escuridão do roupeiro, os vestidos apertam-se uns contra os outros e escuto-lhes, murmurado entre suspiros, o desalento plebeu, ainda não é desta.

Não sei que constante afã empurra os homens a plantar, às primeiras instâncias, a flor da primavera. Será por vir a desejo. Certo é que o verão só é quando a primavera, afogueada  até ao limite de si, sobe todos os degraus do tempo. Verão é cume, planalto soalheiro que não aprecio descer. Nunca, como agora, o verão apetece. Que morar nele é já perdê-lo.

domingo, 28 de março de 2021

Sete Vidas

 

Cresci rodeada de gatos. Em casa de minha avó, a Mimi era uma meiguice de animal que, em promiscuidade relacional, originou várias ninhadas de que a atarefada senhora conservava dois exemplares adultos. Senhora de coração sem tagatés, e violando os cuidados da pobre Mimi escondida dela para dar à luz, minha avó cortava a direito antes de nos apiedarmos dos pobres bebés. Não sabíamos sequer da sua existência, jamais vi um gatito que fosse. Recordo-lhe a azáfama cheia de invectivas para descobrir a parturiente iludindo a minha insistida curiosidade  com a necessidade de a alimentar, facto que me apiedava e fazia buscá-la por breves minutos antes de  me aborrecer ou encontrar algo que, por mais aliciante, me olvidava a Mimi. Por seu turno, minha mãe amava gatos pretos que sempre houve em nossa casa. Não sei como os arranjava, mas, mal um se tornava selvagem desaparecendo até ao eclipse total na herdade vizinha, regressado a espaços cada vez mais longos, arisco e assanhado e em aguerrida repugnância ao toque humano, logo ela encontrava outro bebé. Julgo hoje que o mistério era apenas o pedido que fazia a minha avó, suposição confirmada pelo negro luzidio da Mimi. Quando fiz ninho, logo os gatos da vizinhança se passeavam pelo quintal e, nos tempos em que tinha trabalho nocturno, lembro os olhos que brilhavam na luz dos faróis e de se ensarilharem nas pernas até ao fecho da porta. Isento de novidade. No curso complementar, frequentara o ensino nocturno e havia um ou dois cães que, em fidelidade inexplicável, nasciam da sombra e me seguiam até à estação ferroviária. Permaneciam na gare até o comboio seguir viagem e só depois, como quem cumpriu missão, a abandonavam. Acredito que haja um cheiro próprio em cada pessoa e que os animais lhe sejam mais ou menos sensíveis. Talvez seja explicação para a constância canina. Contudo, nesse tempo juvenil, aborrecia-me entrar numa estação cheia de movimento e gente jovem, seguida por um ou dois cães de rua que, por mais esforços, não desgrudavam.

Ora, toda a gente sabe que tenho um gato crescido e perna curta, que já foi branco de neve e, agruras do crescimento, perdeu a pureza da cor. Mantém a meiguice terna e, afinal, os olhos guardam um azul de claridade original e muito única. Ama a liberdade do quintal e a companhia sisuda e respeitosa do gato corista de D. Ermelinda ervanária. Aos poucos, foi abandonando o meu colo onde já nem cabe e a que só regressa em crises de ternura vadia e respirações de fundo bem estar. O certo é que criou autêntico fetiche com as minhas roupas, sobretudo cachecóis e blusinhas de malha, e os sentidos dizem-me que celebra verdadeiras orgias tal o vigor com que as monta e prende entre os dentes todo entregue ao que me parece um prazer de dilatado azul e ronronar estranho. Por vias deste comportamento, urge dizer que lhe marquei a castração, facto que em si mesmo me desgosta corpo, espírito e carteira. Mas pronto, tem de ser. E é assim. E tal.

Fiquem bem.

quarta-feira, 24 de março de 2021

E, de repente, a alegria

 

Manuel Vilas era autor que não me existia. Rebentou como uma flor à oferta e leitura do livro assinalado no título. Não sei se posso falar seguramente sobre a escrita do autor através da única obra que lhe conheço. Parece temerário.

O escritor espanhol tem 58 anos e é também poeta reconhecido. Foi prémio Femina com “Em tudo havia beleza”. Os personagens dos dois livros publicados em Portugal  são ele e a família próxima: do presente e do passado. Duas obras autobiográficas. Pondo os livros em sequência, lá estão a família do passado e a do presente. Talvez as obras, Em tudo havia beleza e E de repente, a alegria sejam os dois semicírculos da mesma circunferência. É assim que as vejo, ainda que  da primeira saiba apenas o que é revelado na segunda. Também imagino, mera suposição, que Manuel Vilas seja formado em Filosofia, mas o que li na contracapa foi que é professor universitário na universidade de Iowa. São os temas e as questões que coloca, e a forma como as coloca, que mo fazem supor radicado em solo filosófico.

Gosta-se de um autor por várias razões, neste caso, o leitor deixa-se prender - estende mesmo as mãos para as algemas - ao testemunho que a obra é. Mas não apenas. É como se Manuel Vilas desmistifique receios básicos, questões dolorosas como a perda que a morte física acarreta, o vazio que por vezes nos habita e a que chamamos solidão. E mais. O autor conta-se e analisa-se; sentimos-lhe a proximidade irmã. Lendo-o, lemo-nos. Acresce que, posto em palavras suas, o dano dos sentimentos  perde densidade. Manuel Vilas inclui-se, é um de nós, diz, “também eu”. E aligeira. Por ser também poeta, conta fazendo uso de imagens únicas e de grande beleza. Nele, os mortos são escada do presente e não lamento.  

Depois, há as particularidades: chama os pais (o Bach e a Wagner), os filhos e os personagens que lhe importam por nomes ou sílabas musicais e que, a dada altura do livro, passam ao mundo da cinefilia adoptando nomes de actores e actrizes;  a dor psíquica tem uma designação austríaca (Arnold Schöenberg) e a sua constância impede-o de dormir, horas enfiadas umas nas outras, cirandando da cama para a janela, apesar do recurso a dormitivos; o esforço para não ceder ao Arnold que é pessimista e pró morte; as particularidades dos filhos que simbolizam a sua grande – a maior -  alegria; o facto de ter um irmão que é alheio à história familiar e de os dois casamentos não fazerem parte, julgo eu que por não pertencerem ao tipo “amor incondicional” cujo só existe entre pais e filhos e muito mais dos pais para os filhos; o facto de  se passear pelo mundo sempre acompanhado dos seus mortos e afirmar que os encontra melhor nos hotéis e que, quem sabe é por isso que gosta de viagens.

Bom. O que interessa é ler o livro e as reflexões sobre a vida quotidiana e o amor mais nobre, o amor incondicional. Deixo apenas algumas opiniões de Manuel Vilas.

Se viajarmos, se estivermos constantemente a viajar, não nos sobra tempo para nos pensarmos a nós mesmos (…) É por isso que viajo, para não recordar que tenho um nome, para não arcar comigo mesmo (…) e a única forma de me esquecer que não tenho família, é viajar. É por isso que viajo, porque perdi a minha família.

Mas o que pensaria o meu pai se me visse aparecer ao seu lado com um buraco na têmpora? O Bach deixaria de me amar. Não posso fazê-lo por tua causa. O teu poder chega a tanto, a esse desconhecido lugar da minha consciência. Um morto proíbe-me de me matar.

Gosto da expressão “arrastar-me pelo mundo”, porque é viajar com o coração no chão.

As praias são lugares onde os seres humanos esperam o mar. O mar deveria sentir-se sortudo ou animado nas praias. O mar que vejo do quarto de hotel chega a terra e não está lá ninguém. (…) Somos os lugares onde alguém estava à nossa espera.

terça-feira, 23 de março de 2021

In the Mood for Love

 

Revi o filme de Wong Kar-Wai “In the Mood for Love” ou, “Disponível para Amar”, título português que degola de golpe a ambiência poética. Para testar os meus conhecimentos da língua inglesa (tinha-o visto dobrado em inglês), fui comparar o que então escrevi sobre, com a percepção que me deixou agora, legendado em português. Respirei. Creio ter compreendido a maior parte, os erros de tradução não são expressivos. Facto curioso, não havia em mim um rasto ténue da banda sonora. Não dera por ela. Motivo acrescido para repetir. Desta vez, a música bateu-me em cheio. Ignoro como consegui ver o filme sem a ouvir quando é peça tão bonita como importante para situar o espectador na ambiência das personagens. Já me aconteceu de outras vezes, deixo-me assoberbar por história e personagens, e elido a música. Ora, neste filme, ela importa, faz eco da perplexidade desolada da mulher atraiçoada e é tão dolorosamente delicada quanto ela. As notas entoam  o desencanto acabrunhado da traição amorosa que ambos sofrem   por parte dos cônjuges que os traem um com o outro e acompanham a tentativa de a compreender ensaiando perguntas e respostas. Dão-nos a ferida de desilusão que se desprende daqueles dois seres, um macerado odor de violetas, campânula que só eles sabem e os isola do resto do mundo. Duas almas amarfanhadas e sós a que música, silêncio e contenção verbal emprestam profundidade. Que o amante traído é, antes da humilhação, um ser doloroso e, por via disso, isolado e silente. Em quem ama, a humilhação não é bandeira, é decorrência, lixo que chegará por arrasto. Desencanto e não pertença, esses, passeiam no ecrã, sentem-se na indecisão dos passos, na mecânica vazia dos gestos, no olhar vazio. É essa dor tecida a comedimento que mais comove o espectador. E, no entanto, o que se iniciou como tentativa de compreensão, termina em relação amorosa. A relação evolui e também eles se enamoram e, como acabam por reconhecer, sujeitam-se a encontros escondidos de todos, tão amantes como os respectivos cônjuges. Da relação física, a contenção do filme mostra apenas a espera, o lugar secreto dos encontros, o caminho de cada um até ao outro, um abraço sufocado em lágrimas femininas. E o sequente afastamento. Resta a mútua lembrança. Ele muda de cidade mas conserva os chinelos que ela usava quando estavam juntos e um dia recolhe indefinida, sem que ele o saiba, como quem não deseja deixar memória física.

Passam anos, ela regressa à cidade com um filho pela mão. Entra na casa onde se hospedou e  o conheceu e que se encontra sem locatário. Arrenda-a. Faz ali a sua vida. Entretanto, também ele regressa ao lugar que ocupou no mesmo prédio e pertence agora a nova família. Sem desconfiar que a mulher de quem lhe falam os novos inquilinos é a que em tempos amou, abandona o lugar.

Talvez ele se tenha livrado do segredo quando, seguindo conselho antigo, o contou a um buraco na parede de um monumento e isso lhe permitiu seguir com a vida. Arrumou o assunto. Mas ela não o sussurrou em nenhum lugar, trá-lo pela mão, ocupa-se a fazê-lo crescer. Na guerra, os despojos não são partilhados em partes iguais.

Gosto um imenso deste filme. A fotografia depurada gera ambiente de extraordinária delicadeza. É lindo.

segunda-feira, 22 de março de 2021

O Gato

 

Por vezes, ainda estaco parvo de todo, olhando o animal com estupefacção, que é como quem diz, fincado nas quatro patas, cabeça à banda. Não é que não conheça gatos. O felino  de dona Ermelinda ervanária, por exemplo, entra no quintal com donaire e jeito de modelo pimpão mas em gato,  e passa-me pela frente no desafio de  agitar  a cauda plumosa de corista, vaidoso que só visto.  Estira-se em cima das flores e nem um soslaio me deita, o importante. Como se fora tudo dele.  Um pedante de perna elástica é o que ele é. E depois, eu que sou cativo deste espaço e com tanto trote e bafo o faço meu, que nem uma ervinha rebenta nas cercanias, aguento com os gatos todos da rua e arredores que, vá-se lá saber porquê, embicam para este portão; será do desleixo deles que só ao soltar-me na tardinha se dão ao incómodo de fechá-lo. De modos que, nesta vida que são dois dias, sei de um quintal que qualquer cão e gato, querendo, pode pisar. Pois que venham, até distraem. Mas, em vez de virem por mim e darem dois dedos de conversa, não. Rebolam por todo o lugar e nada de  proximidades. Bem que ela os enxota num zzzzttt repetido que respeitam por um bocado e logo voltam e se esparramam sobre as frésias, cujas não têm outro remédio senão florir  rente ao chão, coitadinhas delas. Bom, também eu as rebento, mas que querem, a liberdade é cega e vai tudo a eito nas desentraitadas e crepusculares corridas a que me entrego. Que agora já nem lhes oiço a voz, chamam-me e eu, moita carrasco, para ali estou nos meus aposentos, vadiando em pensamentos de sono e saudade, que a velhice é assim a modos que melancólica.

         Dizia eu no princípio que até conheço gatos, é o que não falta por aqui. Mas este vive por cá, pertence - como eu - ao espaço. Fui obrigado a esta conclusão: ou veio por ele, ou trouxeram-no; e é que era bem pequeno por sinal, ela vinha mostrar-mo e erguia-o nas mãos frente ao nariz do meu espanto. Mas cresceu. É um matreiro  comprido, seta de pêlo branco trepando árvores e arbustos de onde, mudo e quedo, se atarda a olhar-me. De outras vezes, ronda-me a periferia, uma grossura no arrufo da cauda, como se eu o diabo. Eu, cão ignorado por gatos invasores. Mas, feito polícia de mim, insiste e não desarma. Pura provocação. Se me divirto numa investida surpresa, mesmo até à ponta da corrente que me repuxa no cachaço, senta-se num frente a frente desdenhoso. A salvo.  E é que faz amizade com os outros gatos, então com o de cauda espalhafatosa, nem é bom falar. Intocados, sentam-se lado a lado em namoro de antanho, sérios e compenetrados, olhos exclusivos e em afirmação de impenetrável segredo. De outras vezes, estiram-se como descansados guardiães, um de cada lado do portão. Se ocupados em afazeres de rua, os donos lhe fazem companhia, o gato  difere, despoja-se do ar sério, torna-se folgazão e divertido. Em dias solares, deleita-se aos pés dela, entretida com um livro. Mas, do que dou fé é das longas esperas que faz ao de cauda amarela. Talvez por ser jovem, o bichito não arrisca ir procurá-lo e deita-se debaixo dos cedros, no lugar onde o peralvilho lhe surge como quem nasce do nada. Decerto vivem o sentimento que, sempre solitário na corrente, não me chegou. Morro sem babar por uma cadela. Apanhado pela velhice, nem isso me importa já. Contudo, revejo-me na harmonia dos dois gatos, é coisa sem alarido, sóbria, um traço de verdade. Contemplo-os do frio dos ossos, dentro da casota, olhos semicerrados. Ou apenas estirado ao sol da primavera, a encher-me do calor que, no ocaso,  me vai faltando.  

sábado, 20 de março de 2021

Um Certo Ar de Primavera

 

Nestes dias em que a primavera parece ter-se soltado e anda ocupada a desenrugar folhas e pétalas por aí, e agora que as crianças retornaram à escola para alegria das próprias e dos pais que já estavam com elas pelos cabelos, digo com segurança que o mundo ficou mais ele.  

Antes do confinamento, já no regresso do meu passeio matinal e nos dias em que me atraso vários minutos (não convém chamar caminhada àquele passo de caracol), na vizinhança da escola do primeiro ciclo costumo encontrar uma desempoeirada e jovem mãe que entrega a filha à avó e arranca para o emprego. A filha não é a miss chupeta que chega de robe e sentadinha na cadeirita de bebé, mas uma loirinha de óculos, que sai do carro muito lesta, um rabo de cavalo competente e flexível a lamber-lhe ternuras na mochila. Pois é, ainda não contei, mas aquelas duas partilham a minha alegria matinal. Talvez a avó ou a mãe me conheçam, mas não tenho memória delas. O certo é que as três me cumprimentam sorrindo, como se velhas conhecidas. Não passamos do cumprimento amistoso que me sabe pela vida. Fechada a escola, deixei de vê-las. Mas, para meu contentamento, já voltámos umas às outras. No dia inaugural, não consegui evitar a abordagem e disse para o esfusiante da miúda, finalmente recomeçou a escola. Logo a mãe pegou a deixa e, sorrindo um alívio fundo, graças a Deus, a escola fazia-lhe falta a ela e a mim, estes confinamentos num prédio são uma coisa que não se imagina e ela estava farta de não poder brincar na rua, isto foi demais, até parece que lhe nasceu alma nova. E, enquanto entrava no carro, já a miúda, qual cachorrinho contente, virava a esquina aos saltinhos, rabo de cavalo a dar a dar, a avó no seu encalço. Que bonita é a vida no seu quotidiano, oxalá as marcas destes exílios caseiros se diluam. E surgiu-me minha irmã contando dos seus meninos pequenos, os garotos estão tão sedentos de brincadeira que, quando toca à saída, não querem ir, refilam, não brincámos nada, queremos brincar mais.

E quem disser que não fomos feitos para viver em comunidade é porque mente.  

quinta-feira, 18 de março de 2021

Dias Ciganos

 

Há dias assim, acordamos e escurece mesmo se o sol encandeia. E depois, bom, depois pensamos no que deixámos incompleto e fazemos gosto em terminar. E como não estamos de feição mas somos de cumprir, cumprimos. Dentro ou fora, nada a que ater-nos. Estranhos seres que somos em dias de assim, o jeito que nos fazia uma bengala, qualquer cajado tosco, um arrimo onde pendurar nossas tristezas pequenas. Mas a vida continua. E tal. E tal. E houve uma coisa boa, ainda a manhã bebé. A Lili, já recuperada, festeja-me com o olho são, portanto julgo que vem para mim a tacto, talvez  pela voz, e fica a olhar-me gratamente (a gratidão canina move-nos), proximidade que a Violeta abomina e impede atravessando-se entre mim e a irmã. Rio da estratégia e penso que talvez a use como provocação, imagino que o velhote não gargalhe com elas apesar do muito amor que lhes tem; diz ele liquidamente, “são a minha companhia”, o olhar derramado em bem querer. Depois de nos cruzarmos, ocorre-me pensar em quem dorme ainda e que talvez acorde ao excesso dos meus bons dias às peludinhas agora tosquiadas. Portanto, vai uma coisa boa.

Há-de ter sido por tanto a desejar que chegou. Ligaram-me os amigos de férias dizendo que têm dia livre à quinta e que, quem sabe, pegamos numas sandes e vamos até à praia. Olha logo a quem o disseram. É que me despontou uma alma cheia de viço. E pois claro que sim; e se nos fartarmos da praia há muito Alentejo bonito para ver, e qualquer dia faço um almoço para nós. Coisas assim, inspiradoras e  de companhia. Não há que ver, dois - zero.

Não contente com isto, resolvi convidar as manas para um lanche que terminou a horas mortas. Antes, entretive-me a fazer doces que me estão vedados ao paladar e vi comer com agrado. É bom ter quem gostamos à nossa mesa. E são três a zero.

Ao fundo da rua, na escola do primeiro ciclo, voltaram os gritos das crianças, uma algaraviada de que não se entendem palavras: as saudades que nós tínhamos dessa mistura de risos e vozes elevando-se e a retinir como cristal. Quatro-zero.

Ontem foi um dia cigano, de maus princípios.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Em Ponto Atrás

 

Os dias de confinamento sucedem-se à quinzena, vêm atados uns nos outros, em grupo carimbado nas altas instâncias deste país soberano. E, embora o calendário lhes vá dando nomes da semana e números de mês, são quase indistinguíveis. Dizemos, por questão anímica, que ocupamos bem o tempo, lemos, escrevemos, cirandamos pela casa. Na maioria das vezes, aborrecemo-nos mortalmente. Mas isso não é de dizer, digo-o eu que sou desbocada, porto-me mal e, de tempos a tempos, dou em virar a mesa da compostura. Ora, é claro que tenho ali na cadeira a camisa amarela com florinhas, que daqui a pouco a visto e me enfeito para nada, que calço as botas de tacão e talvez faça mesmo o risco nos olhos que quase esqueci e mais torto fica. Bom, nada de filmes, embora mais sexy só de camisa e botas, enfio as calças de ganga. E, com meus passos de elástico falso, que é como quem diz, a tropeçar no pavimento, vou ao supermercado. Descansem, uso máscara. E pronto, vivo a glória dos meus dias. Apronto-me para uma carga de variedades de pão e bolos, uma catrefa de legumes e carnes frescas, um inesgotável sortido de congelados. E quem ousar dizer que isto não é fascinante, não está no seu juízo perfeito. Depois, bem, depois nada. Depois, casa. Depois, ah fazer a sopa do jantar à hora de almoço porque à tarde não há sol na cozinha e passo a rechaçá-la; ah, estender a roupa; ah, varrer as ruas que isto de magnólias é muito bonito, mas suja tudo; depois, tratar das flores, na primavera todas se queixam, e ele  é mudar vasos, tirar as ervas, mas de onde diabo nasce tanta erva, senhores, que martírio este; depois é a rega que começa, faltando chuva, logo o sol alentejano dardeja e as pobres plantas ali estão de garganta seca, a chamar, a chamar, olhos de carneiro mal morto e, é claro, não lhes resisto. Nos entretantos, preparo o almoço que é como quem diz, quase sempre dois almoços que sou assim, não faço por menos. De tarde vem o tal número de hobbyes, distracções e tal, ler, escrever, tricotar, ouvir rádio, quiçá ver um filme ou experimentar uma série. Mas o que é que me falta, dirão vocês para que pareça que sentem diferente. Pois. O que é que me falta. Falta-me, é isso. Falta-me imenso andar pelas ruas que não as desta cidade; Falta-me entrar descontraída nas lojas da cidade grande; falta-me o Cais das Colunas que não vejo vai para um ano; falta-me lavar o carro na mira de uma viagem; falta-me rever as minhas amigas do peito e retirar do meu coração os panos roxos sob os quais escondo a saudade comprida dos filhos e delas; faltam-me as velhinhas que visitava e que não voltei a ver; falta-me nadar em águas aquecidas; falta-me o bocadinho de amor e atenção  que ajuda ao caminho.

E agora vou ali vestir o meu traje de gala para a cerimónia do super. Com vossa licença.

Sempre ao dispor.

Uma vossa criada que se assina

Bea

domingo, 14 de março de 2021

Confidências

 

Tenho assim uma amiga, de tempos. Tempos idos e já tão longe, chegava a casa por mão da mana do meio, e eu era a mais velha e também a mais alta, hoje sou só a mais velha; tempos em que acampava connosco e alegrava as nossas férias; tempos em que pescava com meus irmãos no açude, o mano caçula  para outros pescadores apontando-lhe a figura de chocolate, somos todos filhos do meu pai menos ela; tempos em que dormia no meu quarto pequeno do outro lado do rio e juntas nos divertíamos por sermos jovens e duas, que mais não nos assistia a vida; tempos em que nos salvávamos uma à outra, descendo lestas à sexta à noite, parque Eduardo VII afora, e nem sei se lhe sabia nome, um senhor surgido do nada e aconselhando, as meninas não devem andar por aqui, e eu a olhar o redondo sombrio dos arbustos, por que não, um jardim tão bem acabado que mal tem, será por fecharem os jardins à noite, mas este está aberto. E anuindo só para fazer jeito, com certeza, com certeza, saíamos como entrávamos, tagarelas; tempos em que me trazia em folha dobrada a letra das canções que queríamos cantar e juntas ensaiávamos rua treze abaixo; tempo de, tantos anos depois, velarmos juntas o seu morto; tempo de voltarmos à nossa praia com o espírito antigo de a amarmos sobre todas as coisas,  mas já sem desfiarmos debruçadas canções na amurada do barco (transporto-a de carro), e ela em fato de banho mais retocado, que nunca lhe vi um biquíni; tempo de ela em minha casa de hoje, e eu, vês, não esqueci,  telhado de duas águas, e ela sorrindo dos conselhos que me dava quando havia um montão de futuro em espera; tempo de lhe agradecer o ter-me engomado o vestido de noiva, ter-me desembaralhado a condução, e, ó agradável surpresa, passados vinte anos de ausência, a amizade antiga ser fato que nos serve. Dá-me adereços de bom gosto e de que mais ninguém se lembra, luvas, écharpes, bonés e creio que sempre verá em mim aquela que os anos disfarçam e quase se não vê. Mantém-se a mesma, consegue ser mais despassarada que eu, sofre de lendária falta de pontualidade e, mesmo na gare, perde comboios.  Nunca sei quando me chega, mas sei que não é eu. Tem mundo de largo espectro, viaja, curte a vida, os filhos, os amigos de vário quadrante. Contudo, juntas, parecemos vir de ontem, profundamente nos reconhecemos. 

 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Com Sabor de Café

 

Sendo do conhecimento geral que a cafeína mobiliza o que me sobra de ser actuante, hoje podei os hibiscos e o chá príncipe. Se não fora temer que não ressuscitem, diria que foi obra sensata. Entretanto, o gato saltitava a meu lado na alegre e emudecida  loucura dos felinos que têm a dona na rua. Um deboche.

Arrumei – finalmente – os edredons de penas que, sem resultado que se visse, ansiavam vez para adormecer uns meses na altura dos roupeiros. O tem-te não caias do nosso abraço insuflou-me fundadas suspeitas: no próximo inverno talvez não consiga equilibrar-nos no banco alto da cozinha. Capaz de só lá ir com escadote. Adiante. Logo se vê.

Descansei a ler uns posts com interesse e humor, escutei uma ou outra música, fui tecendo comentários e vi o primeiro episódio de uma série que talvez não seja má. Mas ignoro o que se passa com o senhor papa Francisco; e pronto, não estou descansada sem notícias, o senhor tem um problema na anca (aquele coxear não é dos sapatos, não) e anda lá pelos longes em terra de cafres, fazer o quê. As minhas desculpas, Bergoglio, não volta a suceder.

Passei por casa de meu pai e achei-lhe a voz fraca, a desmaiar. Mas continua a querer renovar a carta, irritou-se com os meus mas, mas, mas. Talvez o médico tenha juízo e não o ateste como apto. Faço figas.

E, caso insólito, num consultório médico deram-me um ramo de flores excepcional e tão bonito. Surpresa mais surpresa não pode haver.

Depois disto, nada. Ganhei o dia. Quiçá a semana. Até o mês.

 

 

quinta-feira, 11 de março de 2021

As Boas Coisas

 

Apesar do  dia embaciado, é quase primavera e  princípios de folhas ainda embrulhadas em seus cueiros espreitam a medo, alapadas a troncos antes despidos. E há destemidos cantores em árvores que florescem pelos quintais estremunhados. Um mistério variegado e pontilista alegra o campo alentejano. A terra, complacente e toda materna, sorriso orvalhado, incentiva  a vida que se agita. No alcatrão, o sangue de uma papoila grita a sua vitória, viva, rompi no alcatrão. Não lhe conto de ser efémera e erecta bailarina, de brotar em lugar aziago, de não cheirar, de ser toda cor e papel de seda que amarrota. Para quê toldar-lhe a alegria da breve pose vertical. Não se pode ser infeliz na primavera. E, no entanto, abrir a janela a um dia escurecido desagrada, sabe na alma à estocada infligida no gelo das madrugadas. Tão pouco me agrada  verificar que a doença da Lili continua, já leva dois dias sem passeio. Mas a vida é rítmica e urge acompanhá-la.  Dançando, de preferência. O caminho de peregrinos exige,  tem amplo risco e novidade, é preciso saltar sobre, lançar-se uma pessoa sobre a ponte das pernas e o balanço misterioso da imaginação. Nele, até os parados continuam a mover-se. Quem atrasa  não sai do trilho e só a morte fecha caminho.

As boas coisas são indício mundano, injecção de vitaminas e reforço da marcha. Paisagem vivida, esclarecem os tarecos que nos habitam cheios de nada, costelas flutuantes que podíamos alijar no intuito de afinar a cinta (diz-se que algumas actrizes o fizeram). Mas, afinal, quem não gosta de ter em si algo que flutua, ainda que o não faça. Quem se basta do que é útil e funcional. Sim, quem.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Os Nós e os Laços

 

Gente como eu, se se habitua a não ter carro, deixa de pensar no assunto. Resolve-se sem ele. O certo é que o automóvel só me entrou na bolsa depois de casada e à beira do primeiro filho. Chegou, praticamente, com a cegonha. E, é claro, eu nem por sombras pensava guiá-lo. Não lhe achei grande piada, não caí de amores. Mas dava-me jeito com a criança e artilharia anexa. Foi então que  se iniciou a campanha. O parceiro instava-me constante. Empurrava-me resoluto e chagava-me a mona, tens de tirar a carta, já foste à escola, vai inscrever-te. E tal e tal. Mediante o meu desacerto e inacção, um dia, papéis batidos na secretária, estão aqui os impressos é só preencher e entregar.  Portanto, muito sem vontade e farta de ser inquirida, resolvi investir na habilitação. Está visto que não me interessei minimamente e faltei a quase todas as aulas teóricas. A data do exame de código acendeu a peleja caseira, não fazes caso, não ligas, vamos perder o dinheiro, nem o livro de código compraste, vê tu o caso que fizeste. E tal. E tal. Resumindo:  comprei o livro de código e gastei-me a lê-lo no fim de semana anterior ao exame. Satisfeita com o resultado, inscrevi-me nas aulas práticas.  A que continuei a faltar por variadas razões, uma das quais trabalhar noutra cidade e não haver horário compatível entre mim e a escola de condução. Marcada a prova de exame, faltavam-me dez lições. Então, no fim de semana anterior, um outro instrutor gastou comigo e de afogadilho a maior parte das sessões em falta. Primei pela asneira.  Mas aprovei, jurando a mim mesma que nunca mais me apanhavam noutra, já me bastava o memorável martírio das orais escolares, não precisava acrescentos. Encartada, sem saber conduzir. Verificada a minha inépcia, depois de sujeito a um ou dois perigos de grau elevado na via pública, o meu parceiro desligou de mim ao volante, facto que agradeci. Passaram dois anos. O automóvel não me existia senão com chofer. Um dia, uma amiga foi passar o fim de semana a minha casa e instou-me para que conduzisse, não saio daqui senão contigo ao volante. E consegui. À partida, deixou aviso, agora levas o carro para a escola todos os dias, ouviste? Quando voltar vamos dar um passeio grande, só nós duas e o garoto. Obedeci-lhe na convicção de visita breve. Mas a vida levou-a por outros caminhos e nunca o passeio se concretizou. Anos atrás,  o reencontro. E retomámos caminho. A vida dá mais voltas que a Terra sobre si mesma. Pois não é que a garota tem carta de condução, mas não guia.  Quanto a mim, distraída e até  perigosa ao volante, ganhei estima profunda ao automóvel, um dos poucos lugares onde me acho cantarolando.

domingo, 7 de março de 2021

Os Nós e os Laços

 

Dada a conjuntura, ou, em termos mais eruditos, a minha circunstância, em vez da carta de condução, tirei outro curso. Ajudava a passar o tempo e saía mais barato. Portanto, lancei-me a estudar à noite e surgiram novas amizades, uma das quais se fez siamesa e, mercê do optimismo e decisão rápida que inda lhe pertencem, tornou mais leve a juventude que me coube. Entretanto, meus irmãos iam crescendo. Entre estudos, profissão e casa paterna com seus apêndices e carrêgos, não me sobrava tempo para pensar em conduzir automóveis. Olhando para trás, reparo que  fabricava um nico de tempo livre ao fim de semana, e apenas se não ia a casa. Mas era jovem e alegre; tinha a profissão com que sempre sonhara e cujo exercício me fazia feliz; três irmãos mais novos que aguardavam os meus fins de semana e as férias em casa com ânsia igual e até superior à minha; recebia um ordenado mensal. E, tal como a Dulce, passava de vez em quando nos Porfírios que, estranhamente, me parecia loja  escura em demasia e cheia de cubículos labirínticos, facto deveras intrigante, nem conseguíamos ver com nitidez as cores da roupa. Acrescia a música – que raramente identificava, não eram discos de “Quando o telefone Toca” e do senhor Matos Maia – em tom pouco discreto. E, é vero, percorríamos-lhe os meandros intestinos e estava apinhada. Ignorava que fosse loja da moda. É que só dei por isso quando a Dulce o escarrapachou na crónica. No meu entendimento, dada a quantidade de jovens que a frequentava, o que havia era muita gente como eu, pessoal que não encontrava número nas lojas normais. Sentia-me pois irmanada e até sortuda. Finalmente, descobrira poiso onde comprar. Devo-o a essa amiga que ainda conservo e que, notando a dificuldade, me deitou um olho crítico e vaticinou científica, tu, só nos Porfírios. E levou-me. Que eu, andando pela capital num aperto de horas, não os teria descoberto. Bom. Lembro-me da escada em espiral, uma chatice de todo o tamanho que me entorpecia as pernas sei lá porquê (ainda sou um bocado parva com escadas), e ainda por cima sempre cheia de gente a subir e a descer. Mas, a minha amiga estava com a razão, nos Porfírios eu era superstar, tudo me assentava. Até parecia uma pessoa normal. E os preços eram da minha igualha. Além do mais, tinha empregadas lindas, autênticos manequins de passerelle e cujo visual me dava algumas dicas.

Por essa época, garotas da minha idade e condição compravam carro e até casa. Eu tirava novo curso e, a conselho da minha siamesa que custeou as despesas iniciais, investi  numa tenda, artefacto que jamais tinha visto. Fomos, expressamente, ao Grandela, observá-las  em seu esplendor. Não tínhamos carro, carta de condução, casa. Mas cada uma de nós era proprietária de uma barraquinha que nos fez felizes ao longo de dez anos de férias em comum. Viva!

(cont.)

sexta-feira, 5 de março de 2021

Os Nós e os Laços

 

Quem me conhece intuiu que eu gostaria da prosa de Dulce Maria Cardoso e ofereceu-me “Os meus sentimentos”, obra que li anos depois de “O retorno”.   Comprara o  livro em acesso pressagiante,  completamente às escuras, e auto dispensando-me da tarefa introdutória em busca de sinais - ler inícios de capítulos e outros eteceteras. Escuso de dizer que fiquei fã e sou fanática: compro tudo que encontre escrito pela distinta senhora (faltam-me alguns volumes), leio-lhe com enlevo as entrevistas, já fui vê-la ao vivo correndo (de carro) muito quilómetro madrugada fora. Gosto dela e de José Luís Peixoto pelo valor literário que lhes reconheço, pela forma como se exprimem, pela simbiose de pensamento que me permitem, por originária e bravia verdade camponesa  que respeitam, de que se orgulham e que partilho. Julgo que, se me tivera dedicado e amadurecido nas letras, seria um pouco como eles. Bom. Isto para dizer que leio amorosamente as crónicas da Dulce na Visão. Facto curioso e que não deixa de me espantar, destronaram as de Mia Couto, romancista de primeira água, com décadas de musgo no meu gosto. Ora, se a crónica cabe a Dulce, talvez porque as nossas origens tenham um quê de semelhança, contraponho mentalmente a minha versão (sucedia com José Luís Peixoto quando era ele o cronista). De prosa claramente excessiva em termos pessoais, talvez pela intimidade que desvendam, jamais tive coragem para assumir os relatos que Dulce Maria Cardoso me sugere. Mas, a crónica da passada semana, “A conduzir”, foi uma farpa. Ninguém, mas mesmo ninguém, me ultrapassa em histórias de condução. Que essas (algumas), escrevi-as algures e não são para aqui chamadas.

Enquanto o sonho de Dulce com a condução começou com o Bolinhas, carro velho que o pai comprara para desemburrar a irmã mais velha, pouco me lembro de sonhar tão alto. Como o pai da escritora, o meu é de parcos presentes. Dado, dado, enquanto jovem, deu-me o primeiro casaco comprido, então designado “casaco grande”. Aconteceu no inverno posterior a doença grave e foi para mim O acontecimento. Mas também me dera um relógio após a quarta classe. Comprou-o depois de uma tarde de copos a ourives ambulante. O homem entrou-nos em casa por via da escolha da bracelete que encurtou a canivete e perfurou especialmente, atendendo à magreza impressionante do meu pulso. Por fim, cabeça  abanando o desalento e na impossibilidade de mais furos, deixou-mo a bailar sem remédio e partiu na motorizada, o cofre do ouro acondicionado no suporte da dita. Não tive escolha. Desconhecia outros relógios femininos e não havia termo de comparação. Mas dava horas certas. Portanto, serviu os intentos. Nunca fui apologista de relógios e não o senti como presente. Representava, isso sim,  o fim da primária. Jamais meu pai, em seu juízo, falou em carta de condução ou compra de carro. Com os copos, em dias benévolos (há muito mau vinho por essas bebedeiras fora), prometia mundos e fundos a esmo, o seu lado de sonho a vir à tona, todo espuma (meu mano caçula acreditou que teria um cavalo). Os meus estudos nunca lhe importaram minimamente e, na óptica que reiterava dia sim, dia não, repetia haver de sua parte uma benevolência sem limite por deixar-me estudar e não me pôr a trabalhar ao campo dando lucro à casa. Portanto, quem pensaria em presentes. Eu, não. Já formada, não se ofereceu para me emprestar a verba que eu sabia que tinha para o dito bólide e antes insistia lestamente em que ajudasse os meus irmãos mais novos e pagasse a educação da mana que se me seguia. Contudo, lembro-me de pensar na Diane. Pensar como se pensa no impossível, se eu ganhasse a lotaria em que nunca joguei. Por exemplo.

Ressalvo que a maxi push, minha acelera querida, não foi bem um presente. Ao longo  do primeiro ano de trabalho, resolvi entregar-lhe um terço do meu ordenado. Ele juntou-o e comprou a maxi push. Compreendi o subentendido: “o seu a seu dono”. Éramos mundos económicos separados, cada um assumia as suas responsabilidades e valia-se de si mesmo.

(cont.)

quinta-feira, 4 de março de 2021

Inolvidável

 

         Separam-me nove anos do tio que foi desde sempre o meu preferido. O meu e o de todos os sobrinhos que lhe calharam em sorte. Hoje, é, sem rebuço, o avô eleito. Ora esse tio que era a nossa alegria, mal se empregou, comprou uma máquina fotográfica. Emudecíamos de espanto para o aparelho e, se nos calhava pegar-lhe, impávamos de orgulho e respeito ao santo. Portanto, havia dias em que nos “tirava o retrato” e “apanhava” a família nos estados mais insólitos, facto que muito nos impressionava. Tenho memória de me adentrar fixamente em comparações milimétricas de pessoa e foto para concluir que aquele formidável aparelho punha tudo no papel, era preto no branco, nem um  pormenor faltava. Em segundos, guardava tudo da pessoa. Tanta presteza sem escapatória deixava-me até temerosa, ver tudo nem sempre é saúde. Aos dez, onze anos, deveria ter outro pensar. Mas não acontecia. Mais tarde, mercê das aulas de física, compreendi os meandros do aparelho. E a descoberta dos negativos foi o golpe de misericórdia na inteligência magna que lhe imaginara.

         Ora, por data querida a nós dois (a mim e ao tio), um dia destes o meu  mail beneficiou de resposta prestes a que o tio juntava “uma coisinha do baú de recordações”. Julguei que fossem fotos dele a volar na capoeira das galinhas (um fora e um dentro); ou quando armava em apanhador de peixinhos vermelhos e saía da vala que atascava a mais não poder completamente enlameado,  e nós, pernas para que vos quero, subindo até ao tanque de rega, o peixe a escorregar nas mãos em concha,  espasmos de aflição e morte no abrir e fechar da boca e a que só as águas do  tanque punham fim. Esperava um sinal fotográfico dessa infância, dos meus irmãos, dos primos, dos vizinhos. Abri o anexo sobretudo para saber o que continha e poder agradecer. E era coisa muito outra.

         É uma foto a preto e branco onde lustram minha mãe e meu avô. De pé, florida, minha mãe usa a bata que mais gostei de lhe ver e sempre me pareceu alegre vestido. Quanto a lembro! Semeada de flores grandes em tons de castanho, amarelo e branco, atava na cinta com um botão. Por baixo, espreita-lhe uma blusa de florinhas brancas que minha mãe vestia com agrado por ter mangas a três quartos. Parte do cabelo está puxado atrás, fronte e orelhas descobertas, o sobrante cai nas costas.  O pormenor do cabelo e  a pele jovem dizem que andaria na casa dos trinta e meu irmão ainda não nascera. Tanta tristeza que faltava e que bom não sabermos o futuro. Tímida que era, fugia da objectiva e imagino a doce insistência de meu tio. Ainda assim, não olha o fotógrafo. Mas há aquele meio sorriso terno que lhe conheço e o constrangimento dos olhos a encontrar arrimo num pé de mesa ou assim. Sentado e grave, meu avô fixa, o fotógrafo.  Ao lado e ligeiramente atrás, minha mãe, enlaça-o pondo-lhe ternamente o braço direito em volta do pescoço enquanto a outra  mão aberta pousa no casaco e parece fazer caminho para afagar o ombro esquerdo de meu avô.  O seu jeito terno e protector lembra os anjos da guarda do catecismo.