Sem
aviso, o sol invadiu-nos as vidas tão cheias de coisa nenhuma. E a falta que
nos fazia. Leveza clareando agruras de sombra. Um bálsamo sobre as pequenas
feridas de clausura a fazer cair carapelas. Igual a sempre, corri – a coxear,
bem entendido – a puxar de gavetas e roupeiros as roupas de nim, que são
aquelas peças adequadas ao modo de primavera. Não têm já a espessura dobrada do inverno e nem a impudícicia do
verão. São nim. No estendal, as peças entregaram-se a eufórico agitar de braços
e pernas, enquanto as saias adejavam invejados e coloridos semi-círculos nas recatadas barbas de calças monocórdicas. Mas os vestidos. Os meus prezados
vestidos. Trato-os por senhor, um ou outro por vossa excelência. Transporto-os
dependurados nos cabides e estendo-os tal qual, respeitosamente, num se faz
favor não se deixe cair que não o quero molestado pela poeira, a terra não lhe
convém. Meio vaidosos, fazem questão no aprumo que não desmancha e por ali se
quedam oscilando lembranças de gente fina, coisas que sonharam ou viveram
noutros corpos. Fidalgos, ofende-os o balanço da aragem e chego a temer que nem me precisem, talvez ao vesti-los tenha de pôr o joelho em terra,
dá-me licença. Ou dão-me uma dentada de fecho éclair, partem-me a paciência no
apertar de um botão, estilhaçam-me o bom humor com prosápia de bainhas deitadas
abaixo. Muito senhores do seu nariz, os vestidos. Finjo que acredito serem de
sangue azul e uso com eles de delicado modo, pergunto por exemplo tomando-lhes
o pulso, com cinto ou sem; e depois ausculto, este ou este. E deixo que
escolham. Mea culpa, dou pesado contributo para o degrau onde se julgam.
Mas hoje, na quietude que certifico da janela, há um céu de pó, deserto por desabar-nos em cima. Que vem do Norte de África, dizem. E a chuva será lama. Sem a promessa ridente do sol, o estendal olha-me em desamparo e o gato é eunuco sem lembrança. Na escuridão do roupeiro, os vestidos apertam-se uns contra os outros e escuto-lhes, murmurado entre suspiros, o desalento plebeu, ainda não é desta.
Não
sei que constante afã empurra os homens a plantar, às primeiras instâncias, a
flor da primavera. Será por vir a desejo. Certo é que o verão só é quando a
primavera, afogueada até ao limite de si,
sobe todos os degraus do tempo. Verão é cume, planalto soalheiro que não
aprecio descer. Nunca, como agora, o verão apetece. Que morar nele é já perdê-lo.