Enquanto um enxame de pés pisava de cor veredas e atalhos, as mulheres, ainda atarantadas, todas surpresa e ansiedade, continuavam conversa. E arvoravam o encanto de trabalho que deixava mimosa e estimada a família que servia a seus senhores, gente que entrava jovem e por lá crescia e amadurava, mãos sem gretas onde a sujidade não incrustava senão de leve, faces macias e subtraídas à agrura dos ventos, o rosto liberto do tisnado da soalheira, água que corria de torneiras; e mais maravilhas. E, à medida que anteviam desgraça atrás de desgraça nessa Lisboa de incógnito fim de mundo, acudia-lhes à memória a última visita da criada para todo o serviço e compraziam-se na diferença, salientavam-na, exaltavam-na até aos píncaros que conseguiam. Que as próprias não se demoravam a explanar a vida por Lisboa. Não propalavam que o afamado quarto era uma arrecadação junto à cozinha ou um sótão desconjuntado, perpassados de cheiros e odores de prejuízo, divisões que não jogavam com o resto da casa e a princípio as aterrorizavam; era um resmalhar de ratos ou ratazanas, fontes de pesadelo a roubar-lhes o repouso, elas em posição fetal, cabeça enfiada dentro de cobertores. Não falavam da desconfiança da patroa que contava as peças de fruta e os doces e acusava cheirando o ar, “as tangerinas são muito alcoviteiras”; calavam a diferença nas refeições, os maus tratos dos meninos, os atrevimentos do patrão, os humores da senhora e até de outras criadas se as havia. Não diziam que da capital conheciam a rua onde moravam e não iam além da mercearia de bairro onde entravam com tempo contado.
Mas,
na vida de quem sobrevive, cada um vê o que quer, e as mães impressionavam com a destreza de mãos que se apresentavam limpas
e sem calos, e invejavam mansamente o rosto empalidecido de prisão doméstica. Auto
convenciam o espírito renitente, foi o melhor para ti, olha como estás boa de
pele. Não se perguntavam como é ter onze, doze anos e servir em casa estranha,
sem mão amiga a encaminhar, ou presença que oiça desabafos e acalme estoiros de
saudade; não lhes viria ao pensamento o facto de as filhas crescerem a sós com
os mistérios do corpo? Desconheciam a frustração de vir da fome e entrar na abundância
proibida; ignoravam a humilhação de provar do fruto proibido, levar umas
porradas e ser descontada a prova no salário com a ameaça “se não andares na
linha conto aos teus pais que és ladra”. E custava-lhes a entender que, no
último dia, elas se despedissem como se as esperasse degredo longínquo, uma
aura triste a sobrecarregar-lhes a figura.
E,
enquanto tal supunham e lembravam, iam imaginando uma avalanche de desgraças na capital. Cumpridores, pés e pernas não se escusavam à função e, sem que o grupo desse pelo caminho, desembocou no local de trabalho. Também os homens não estavam em si. Esquecidos
de colocar ao fogão a panela do almoço, assoberbavam em discussão de
espalhafato e a que não se via fim, tal o entusiasmo. Entregues taleigos e
cabazes àquela a quem competia nesse dia a cozinha, o grupo feminino voou numa
angústia até ao núcleo de homens. Queriam saber novas de Lisboa e do que por
lá acontecia. E todos a falar à uma: parece que é uma revolução. Elas extáticas, afrontadas pela estranheza. A
Olívia pestanuda, uma inadvertida mão coçando a cabeça sobre o lenço e a dar
voz ao pensar do mulherio ainda estupefacto, uma revolução?! Que é lá isso?