quinta-feira, 27 de julho de 2023

Sombra Chinesa

 

Enquanto um enxame de pés pisava de cor veredas e atalhos, as mulheres, ainda atarantadas, todas surpresa e ansiedade, continuavam conversa. E arvoravam o encanto de trabalho que deixava mimosa e estimada a família que servia a seus senhores, gente que entrava jovem e por lá crescia e amadurava, mãos sem gretas onde a sujidade não incrustava senão de leve, faces macias e subtraídas à agrura dos ventos, o rosto liberto do tisnado da soalheira, água que corria de torneiras; e mais maravilhas. E, à medida que anteviam desgraça atrás de desgraça nessa Lisboa de incógnito fim de mundo, acudia-lhes à memória a última visita da criada para todo o serviço e compraziam-se na diferença, salientavam-na, exaltavam-na até aos píncaros que conseguiam. Que as próprias não se demoravam a explanar a vida por Lisboa. Não propalavam que o afamado quarto era uma arrecadação junto à cozinha ou um sótão desconjuntado, perpassados de cheiros e odores de prejuízo, divisões que não jogavam com o resto da casa e a princípio as aterrorizavam; era um resmalhar de ratos ou ratazanas, fontes de pesadelo a roubar-lhes o repouso, elas em posição fetal, cabeça enfiada dentro de cobertores. Não falavam da desconfiança da patroa que contava as peças de fruta e os doces e acusava cheirando o ar, “as tangerinas são muito alcoviteiras”; calavam a diferença nas refeições, os maus tratos dos meninos, os atrevimentos do patrão, os humores da senhora e até de outras criadas se as havia. Não diziam que da capital conheciam a rua onde moravam e não iam além da mercearia de bairro onde entravam com tempo contado. 

Mas, na vida de quem sobrevive, cada um vê o que quer, e as mães impressionavam  com a destreza de mãos que se apresentavam limpas e sem calos, e invejavam mansamente o rosto empalidecido de prisão doméstica. Auto convenciam o espírito renitente, foi o melhor para ti, olha como estás boa de pele. Não se perguntavam como é ter onze, doze anos e servir em casa estranha, sem mão amiga a encaminhar, ou presença que oiça desabafos e acalme estoiros de saudade; não lhes viria ao pensamento o facto de as filhas crescerem a sós com os mistérios do corpo? Desconheciam a frustração de vir da fome e entrar na abundância proibida; ignoravam a humilhação de provar do fruto proibido, levar umas porradas e ser descontada a prova no salário com a ameaça “se não andares na linha conto aos teus pais que és ladra”. E custava-lhes a entender que, no último dia, elas se despedissem como se as esperasse degredo longínquo, uma aura triste a sobrecarregar-lhes a figura.

E, enquanto tal supunham e lembravam, iam imaginando uma avalanche de desgraças na capital. Cumpridores, pés e pernas não se escusavam à função e, sem que o grupo desse pelo caminho, desembocou no local de trabalho. Também os homens não estavam em si. Esquecidos de colocar ao fogão a panela do almoço, assoberbavam em discussão de espalhafato e a que não se via fim, tal o entusiasmo. Entregues taleigos e cabazes àquela a quem competia nesse dia a cozinha, o grupo feminino voou numa angústia até ao núcleo de homens. Queriam saber novas de Lisboa e do que por lá acontecia. E todos a falar à uma: parece que é uma revolução.  Elas extáticas, afrontadas pela estranheza. A Olívia pestanuda, uma inadvertida mão coçando a cabeça sobre o lenço e a dar voz ao pensar do mulherio ainda estupefacto, uma revolução?! Que é lá isso?

domingo, 23 de julho de 2023

Sombra Chinesa

 

O dia amanheceu previsível. Em vulgar claridade primaveril, a aldeia foi acordando por camadas: primeiro os pastores, depois homens e mulheres que trabalhavam longe e tinham pela frente uma hora de caminho, em seguida os que laboravam na aldeia; e, por último, as crianças de escola e os velhos doentes que se avinham uns com os outros ou a sós, desenvencilhando-se da cama como podiam. Um dia igual a tantos. Os pastores cumpriram o costumeiro e aventuraram-se aos pastos no espírito de sempre. O rancho de homens e mulheres seguia a caminho do trabalho, os homens ouvindo o rádio pequeno, pertença  do da V5, solteiro e bom rapaz, aparte acelerações espaventosas se via garota de encher o olho. Transportavam-no à vez, um dia um, um dia outro, a despesa das pilhas dividida pelo rancho, que a vida custa a todos. Entretinha-os a música, os “reclames”, uma ou outra notícia de que não entendiam a extensão; ouviam de inaugurações e presidentes, factos alheios ao seu viver e de que casquinavam, “mais uma para o corta-fitas”. Pela hora de almoço, o rádio pertencia às mulheres que avançavam o volume e ouviam o romance, um mar de cabeças afogando o aparelho. Porém, nessa manhã soalheira, houve um súbito de diferença. De quando em vez, os homens amontoavam em volta do rádio, pernas esquecidas de caminhar. O grupo das mulheres, que os seguia em cacho barulhento, ultrapassava-lhes a estupefacção e eles tardavam a retomar a dianteira. Isto até que, em resposta a tantos olhos de interrogar, o da V5 bichanou ao passar, parece que há borrasca lá por Lisboa. E ao estado de alerta masculino seguiram-se as palpitações das mulheres, foi outro tremor de terra? Ai valha-os Deus. Ou foi desastre? Não me digam que foi aquele comboio que anda debaixo do chão. E benziam-se a lembrar conhecidos e família que por lá se ajeitara. Preocupavam-se com irmãs e filhas que serviam em casa abastada, recomendadas pelas senhoras da herdade, a Menina Maria Francisca e Dona Maria do Pilar. E as duas a convencer os pais, é gente séria e só com dois filhos, uma moradia com tudo do melhor, que mais querem. Recebe o mesmo que se fosse ao campo, têm de ver, ainda é muito novinha. Salvam-na de trabalhos pesados e ainda a sustentam, a vestem – anda fardada – e lhe dão dormida. E ultimavam o incentivo dirigindo-se à garota, vais ter quarto só teu, viva o luxo. E ela que adormecia num catre aberto todas as noites à beira da chaminé, via nisso grande vulto. Contrato aceite, partia com seus donos novos, os pertences numa trouxinha de nada a que se arrimava como se fora corrimão de escada. Levava o desgosto de deixar a aldeia e os seus, mas devorava-a a curiosidade, ia conhecer a capital desconhecida, terra de encantos imaginários. Garotas da miséria, ignorância de doze ou treze anos espigados ou rechonchudos. E os pais a empurrá-las, no desejo de evitar dificuldades maiores, vai, vai, é melhor para ti, livras-te da enxada e da foice. Os pais com a mente em cifrões e escudos, fazendo contas à vida - menos uma boca a alimentar e o catre podia arrumar-se até ela vir de férias, que isso nem de ano a ano; e ficavam ansiando a paga que a patroa se comprometia a entregar quase intacta, que sempre precisaria de algum para os seus alfinetes. Portanto, todos lucravam.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Sombra Chinesa

 

O tempo não se compadece dos homens, não pára a sofrer-lhes as lágrimas, nem espera que se aplaquem ditos e mexericos. Exclusivo, gira na duração que parece infinita, indiferente a humanos, bichos e demais bens perecíveis que nele surgem e esvaem sem causar mossa.  Como sempre acontece, a vida da aldeia andou em frente. A mãe de Liu resolveu-se a aceitar mais horas de trabalho extra e não alugou os cómodos, “fica para a minha Liu, qualquer dia casa e já tem um tecto; assim como assim, já não vou para nova e sempre fica por perto”.

Correram meses e o povo perdeu a esperança de ver regressar os fugitivos, habituou-se à casa fechada. A ausência de Jaime, que antes era hábito, foi menos sofrida; não havia dele a mesma necessidade, os rastos deixados eram leves, sacudiu-os a brisa. Sem alimento, as conversas foram morrendo de cambulhada com as folhas de outono que o vento varria ou apenas mudava de lugar avolumando em monte sustentado por atrito capaz. Ficou a memória do caso. E a fosforescência da filha do Pelinhos.

Quando o inverno se apresentou, talvez por falta de mais assunto, e ainda que por via indirecta, Ernesto voltou a ser notícia. Todos os pesares se voltavam agora para Nunes e Francisca que, sem novas do filho - continuava sem visitas -, temiam o pior. A aldeia espiava o carteiro e havia mesmo quem, ao vê-lo despontar nos fundos do caminho, se dirigisse à mercearia a fim de apurar a correspondência. Mas o merceeiro passava os olhos pelas cartas e  dava-lhes uma nega de cabeça, olhos de desânimo e como que a pedir desculpa. E logo se levantavam hipóteses, se calha, morreu e nem os pais sabem, diz que a polícia política é do pior, matam sem castigo. E havia quem trouxesse um tio, um primo, um conhecido de alguém que estivera preso em Caxias, lugar concreto que todos desconheciam e de que o parente contava alguma coisa. Falava da PIDE e das suas incalculáveis  sevícias:  os presos eram sujeitos à tortura do sono, que é como quem diz, não os deixavam dormir dias e noites a fio;  encandeavam-nos por horas e horas, uma luz forte assestada ao rosto, enquanto os esbirros na penumbra, inquisidores e malvados, talvez a bater-lhes sem dó para haver mais efeito. Naquela aldeia perdida de notícias, gente dobrada por salários de miséria e cargas de trabalho, sabiam lá eles como era a vida dos presos políticos, ou o que os levara à revolta. Ouviam dizer que os pides inventavam torturas, negavam-lhes a ida à casinha e, quando não conseguiam reter-se, sovavam-nos, chacoteavam deles e obrigavam-nos limpar atirando-lhes insultos dos piores; e negavam comida e água enquanto se banqueteavam à vista dos pobres famintos. Tudo faziam para que denunciassem outros revoltosos, tanta vez gente simples e revoltada que apenas lutava por vida melhor para todos. Compadecida, a aldeia assumiu sem palavras um compromisso de silêncio, guardou para si o que sabia. Poupava aos pais a certeza do sofrimento. No que é incerto espreita ainda a esperança, tudo que seja hipótese, para o bem e para o mal, não lhe fecha portas.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sombra Chinesa

 

Zé da adega apascentava as ovelhas imaginando o impacto da novidade na aldeia. Sabia-o ele, aquilo ia cair que nem bomba. Portanto, não assistiu ao burburinho das mulheres esquecidas da lida e coalhadas perto da casa, hipóteses como hélice de motor, rodando, rodando; não escutou as suspeitas em zunzum de vespeiro alumiado de sol; não ouviu proclames e receios, perdas só então sentidas: era a mãe da Liu lamentando a fonte de rendimento que se fora; era a lamúria pela ausência de comércio tão à mão; era o fim das sugestões grátis e bem esgalhadas, os toques de moda barata que incentivavam o imaginário de cada uma e, num tempo de publicidade directa, criavam necessidades; era o mimo à compradora, embrulhado em elogio sempre pronto, mais o livro de assentos a engordar parcelas em clientes de paga certa; eram, apesar de não verbalizados, os ganhos daquelas que ainda tinham dívida pendente e assim se viam desobrigadas; era privação de vizinhança que acudia na desgraça; era haver, “inda bem não”, algum dislate da filha do Pelinhos a adubar as conversas.   Bem vistas as coisas, aquela partida significava o retorno à mesmice aldeã. 

Também não se debruçaram sobre sentimentos, não avaliaram sem peias a decepção de Jaime ao saber que o objecto do seu amor rodara para parte incerta, feito cometa. Jaime estava absolvido, ponto final. Para ele sobraram uns restos de curiosidade mórbida, queriam observar-lhe o sofrimento, ver até onde chegavam os sortilégios da amante, que danos provocava a saudade quando se transforma em irremediável fantasia. Que, a Formosinho, todas julgavam entender, o homem defendia filho e património. Podia lá ser, um garoto de estudos e com posses requeria mulher a contento e não aquela requentada e ignorante tendeira que devia o protagonismo à beleza e desfaçatez. Ninguém lhe verbalizou sentires. Fechada a porta e reposta na condição recomeçaria noutro lugar, que aquilo era gata de telhado, tinha sete vidas. Havia de prender a cortina noutra janela, alimentar um jardim, criar novas clientes. Não a imaginavam chorando sobre leite derramado. Nem pensaram que, havendo amor, tanto sofre quem parte como quem fica: é a falta que conta, tudo o mais são insignificâncias.

Porém, quando todos esperavam um Jaime meditabundo e vago, percorrendo sem nexo caminhos que antes o faziam feliz, nada aconteceu. Passou um dia, dois, três…, intrigadas e receosas, as mulheres delegaram função em Deolinda a comadre de Celestina que a abordou no regresso a casa. E ela num cansaço lacónico e moído de alma, decerto sermão encomendado por Formosinho, o Jaime partiu há três madrugadas para os estudos e não sei mais; quando cheguei de manhã, já não havia sinais dele. 

impiedosa versão da aldeia  reinava no bate-boca. Se era arremedo ou amor de perdição moderno, ninguém quis saber. Não havia quem conhecesse o romance ou sequer a Camilo Castelo Branco. Os amores de perdição eram outra coisa. Chegavam em poemas vendidos porta a porta e faziam chorar as pedras. As mulheres emudeciam atentas à história que o vendedor desfiava a partir de fiadas de letras certinhas, um negrume de formigas que, não se percebia como, alumiava desgraças e paixões nunca vistas. Ouviam-nas quadra a quadra, a entremear lágrimas e exclamações, ai tão bonito, é de partir o coração. E limpavam os olhos aos dedos grossos e encardidos, retalhados por antigos cortes de faca; algumas disfarçavam secando fragilidades na ponta do avental, enquanto o coração se desfazia em ternura penalizada.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Cubo Mágico

 

Foi este garoto que recordei enquanto a ouvia falar. Chegou com atraso, vinda do Douro onde fazia não sei quê. Simples, jovem e encalorada: calça e blusinha, sandália, o cabelo apanhado em rabo de cavalo. Tinha um palco, uma mesa e uma cadeira. Mas prescindiu – optou por sentar-se na beirinha do palco, em relação directa com o público. Pediu desculpa pelo atraso e atacou o tema. Era suposto falar sobre o livro onde, na condição de enfermeira, narra experiências vividas nos chamados Lares de 3ª Idade. O livro tem doze capítulos, cada um deles sobre um personagem, sendo que oito casos aconteceram em instituições da terra e com gente que, embora sob pseudónimo, conseguimos identificar. Tinha-nos parecido que a faixa etária era adequada e, a fechar conversa, numa disciplina que aborda livros e autores,  faria sentido. E fez. Falo, é claro, de Carmen Garcia, minha jovem conterrânea. E do livro publicado “A Última Solidão”, que, na altura, singrava na oitava edição.

Amei ouvi-la falar, ainda que pouco tenha extrapolado o escrito. Foi a convicção das palavras, o crer nos princípios que defende; a vontade indomável de mudança que, espero eu, se mantenha; a humanidade com que falou dos velhos e das suas necessidades; as críticas aceradas à forma como funciona a engrenagem e a gestão destas instituições. O início de conversa foi sintomático. Olhou a assistência e disse: estou a falar com a Academia Senior, quantos de vocês vêm de um Lar de 3ª Idade? Não se ouviu um pio. A Carmen retorquiu, porquê, esta academia devia ser também para eles, para os muitos que estão sentados o dia inteiro no mesmo lugar e a fazer nada, e que continuam válidos e com boa cabeça - exceptuou os acamados e os que a demência toma para si. Mas em Portugal os Lares são uma prisão. Muitos não autorizam sequer que os utentes saiam com a família. Precisam de vestuário ou calçado? A família é contactada e trata da questão – a partir do momento em que entra no Lar, a pessoa deixa de escolher. Os familiares decidem do calçado, do vestuário…mas porquê, se eles estão conscientes e se deslocam pelo seu pé? Por que razão a família não vai a compras com eles?! 

E foi assim que, paulatina e francamente, foi aflorando os problemas que existem nos Lares e radicam, basicamente, no desrespeito pela pessoa. Passam-lhes atestados de menoridade, como se os velhos fossem as crianças que não são. Infância e velhice não são a mesma coisa.

Pensei que a escola também não deu esse salto com a Carmen – não a viu como pessoa, não lhe descobriu as qualidades. A Carmen era boa aluna a todas as disciplinas, mas nunca concorreu aos Jogos Florais e nenhuma professora de português a enalteceu ou salientou do vulgo. Mas, quem mantém um blogue há tanto tempo - é a autora do blogue “Mãe Imperfeita” -, gosta   de escrever e talvez a escrita lhe seja útil para clarear ideias. Ou apenas porque sim, puro exercício de gosto. Neste momento, aos domingos, há uma crónica sua no Público, já se tornou conhecida na TV e trabalha com membros do governo na tentativa de alterar o funcionamento dos Lares. Todos nós já tivemos aquela fome de beliscar o mundo, aquela sede de mudança muito cheia de fé e em que nos revemos.  É tão agradável encontrar alguém que, convictamente, arregaça as mangas e se entrega ao trabalho. 

Sei que comovi a ouvi-la. Comovi e orgulhei-me dela que é flor brotando da aridez. Foi o que lhe disse no final. Tão pouco para o muito que nos trouxe.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Cubo Mágico

 

A escola devia – penso eu de que – descobrir talentos ocultos, trazer à luz hobbies bem-sucedidos, dar a ver o que nos jovens que ensina (e domestica pelo ensinamento) não é evidente mas está lá, basta ter atenção ao sujeito-ele-mesmo e não tanto ao aluno. Penso isto desde que me decidi pelo ensino. Parece-me que nunca procurei apenas ensinar, ainda que os resultados nas provas de exame me preocupassem sobremaneira e fizesse tudo para conseguir que os alunos aprovassem e conseguissem boas notas em exame. É verdade, o meu brio profissional também estava em causa. Mas o diploma desse princípio de descoberta foi comprovado quando precisei pintar um cenário para aquilo que se chamava então, a “Área-Escola”. O tema relacionava-se com o tabagismo e, não sei porquê os meus alunos preferiram pintar um cenário inventado por eles. Havia grupos constituídos, uns para a concepção do desenho, outros para desenhar, outros para a pintura, outros sei lá bem para quê. Deixei-os inscrever livremente e nem correu mal. Eram alunos da área de saúde e não entendiam patavina de artes decorativas. Quando vi as inscrições para a pintura - o desenho já fora ampliado -, havia duas pessoas: uma garota que escolhera essas tarde para namorar e ter desculpa convincente perante os pais (apareceu a dizer isso mesmo e que era um zero a pintar, posto o que se escapuliu de mãozinha dada). Ora no meu percurso escolar, à disciplina de desenho tinha dez porque a professora não dava negativas - frisado pela própria. Vi-me pois sozinha com o aluno mais taciturno e silencioso da turma, um aluno amorfo, a que nunca ouvira a voz e que só salientava pela brancura da tez (ainda sei o nome e o apelido dele), daqueles que, se se sentem observados, parecem sofrer de alguma dislexia motora. A minha estranheza por se ter inscrito para pintar fora enorme, julgava que iria borrar tudo (era, comprovadamente, um desajeitado). Mas deitámo-nos ao trabalho. Basicamente, o papel de cenário tinha o mar, a linha do horizonte e, em grande plano, um cinzeiro-barco com dois cigarros muito abatidos por irem mar fora com bilhete só de ida. Perguntei-lhe se já tinha pintado alguma coisa. Retorquiu que só mexera em tintas na então C+S e nada mais que uma folha A4 e tinha sempre três na classificação.  Acrescentei a minha experiência bastante idêntica só que muito mais velha (sem esquecer o acrescento da professora de desenho). Mas não nos atrapalhámos. Como bons portugueses, fomos em frente. Pois o garoto tinha sentido estético. Observava-me a mexer os pincéis e atirava-se com alma. Só tínhamos aquela tarde para mostrar o que valíamos e mudámos de pincel várias vezes a verificar melhoria de resultados. Às tantas, quando eu já começava a pintar o mar que o barco-cinzeiro deixava para trás e fazia parte do nosso grande plano – aí já conversávamos como camaradas habituados – tirou-me o pincel das mãos, sorriu e disse, deixe-me experimentar, acho que sei fazer isto.  E criou ali uma revolução de motor e água a espadanar e enrolar em cachão que ficou linda de morrer. E eu numa admiração, já andou nalgum barco a motor? Ele, não, mas vejo na televisão, a professora estava a pintar tudo mal. E sorriu, um bocadinho de troça satisfeita lá bem no fundo do negrume dos olhos. Bom, já tinha reparado que as sombras que eu dava ele corrigia sem me dizer, enquanto me entretinha a fazer as tintas ou assim. Não sei o que será feito dele, desapareceu-me depois da escola. Talvez tenha saído para outra cidade ou vila. Mas aquele mural foi obra sua. E senti que ficou tão contente com a minha surpresa (é que não conseguia parar de lhe ser grata pela inscrição e de lhe elogiar o trabalho; estava parva com aquilo). Parece-me bem que aquele dom natural foi uma descoberta comum. E quando nos despedimos ele caminhou ligeiro, a mochila nas costas, nada de dislexia. Quanto a mim, fui acordar a garota do seu sonho romântico, acabe lá o namoro e faça alguma coisa, ajude-me a carregar o cenário.

(cont.)