segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Cinema

 

Não sei bem porquê, mas penso bastante nas pessoas que não gostam de cinema. E penso ainda mais nas que gostam e raramente vêem um filme numa sala de cinema. As salas de cinema são lugares mágicos. A gente senta-se e fica ali a salivar, estilo ser desejante na expectativa de participar de uma boa história. Talvez seja pelo gigantismo das personagens. Ou pelo fundo musical. O certo é que, mal começa o filme, e sem que os personagens saibam, nos plantamos dentro da história. Creio que sejamos os únicos a vivê-la na íntegra. Que os actores têm de representar aos bocadinhos, quiçá sem sequência (quanto os admiro por isso). Dizem-me, ah, o cinema é pura ilusão. Ora essa, e por acaso não é disso que vivemos. Pois se vivêssemos apenas de realidade há muito nos tínhamos esganado uns aos outros e estava tudo morto. Mas há um prazer a que, de modo geral, não fugimos, e é o de sair dela. Uns bocadinhos por outros. Só para aguentar nova carga. Que a realidade pesa. Oh, se pesa. Pronto, ok, há vários modos de entrar nesse mundo de faz de conta e viver outras vidas (mas a brincar, sem perigo-danger, que não estão lá as tíbias cruzadas e nem a caveira). Podemos ler, dançar (ou ver dançar), cantar (ou assistir a quem canta), passear na natureza ou descobrir a arte humana em galerias ou edifícios, sabe-se lá o que agrada a cada um. Seja qual for a forma, a ilusão só é remédio se sairmos da comum realidade e vivermos nessa outra que buscámos. É um mergulho. E depois ficamos lá, debaixo de água e, enquanto dura, somos peixes. E nadamos.

Foi mais ou menos assim que assisti o filme de Nanni Moretti, “Três andares”. Um realizador que me agrada. Trata os conflitos por tu e possui a arte do quotidiano. A gente nem se sente debaixo de água, os seus filmes centram-nos. Os factores secundários são átonos: ninguém lembra o mobiliário, os cortes de cabelo, a beleza das actrizes, o modelo dos automóveis, a excelência da paisagem.  Sabemos, isso sim, que as  personagens tomam conta do enredo. Dão conta dele.


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Pé Ante Pé

 

Chuva.  Água que entranha e a terra recebe em agonia, boca seca, lábios gretados. Oh, sede infinita que te persegue, fado triste de seres deserto, o sol um fogo que tudo assola. E torra.  E desmaia. Pudesse eu, e carregava-te no colo até inexpugnável fonte limpa. Ali te daria de beber, te aspergia o rosto, te reclinava, modesta e mansa, em sombra fresca de aroma bravio. E para  te adormecer havia de modular em doçura lenta, dolente e tão prosaico, um cantar alentejano.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Sombra Chinesa

 

Não esqueço a manhã morna e oblíqua em que Jaime desaguou na aldeia.  Pesaroso e sem mundo. Aterrado.  Vivendo como em filme,  personagem e espectador. Desde a violência de lâmina que o chocou inda a madrugada cabeceava, “o jovem tem de regressar a casa, sua mãe faleceu”, até à sugestão murmurada nos degraus do comboio, desce, desce, desce, a plataforma e o rosto do pai a fazerem-se próximos. Desde então, o mundo parecia-lhe cenário desarrazoado,  exibição sem chamamento. Notava até certa desfaçatez no dia que clareava, uma ironia desdobrada em luz, fazendo contraponto à sua escuridão. Ao sol, casas desordenadas branquejavam aqui e ali; nos campos, o feno acamado em paralelepípedo num jeito de prenda abandonada e sem laço; um tractor pressuroso a deslocar-se numa nuvem de poeira e ruído; galinhas em passinhos ocos, ziguezagueando o apetite desconfiado por capoeiras inóspitas, ou em monturos que espiolhavam como quem procura ouro em mina; e galos de passada larga, despedindo soberba em ademanes de patrão; cães que a fome adentrava pelos quintais, cheirando restos, virando latas e desfazendo-se em ladridos de atenção aos movimentos da rua e animais da casa. Que coisa essa de os sentidos continuarem funções e o mundo ignorar a estranheza da inaudita morte que o abismava. E ele crescido, casaco e gravata, ombreando com o pai, atento a tudo, esforçando-se por não pensar no precipício e na vida desarrumada, a evitar o pranto porque um homem não chora, bastava ver a tristeza seca e impenetrável do progenitor. E ambos recebiam abraços e palavras de conforto deste e daquele, e louvores gratos de tanta mulher a quem a mãe acudira, uma santa que Deus chamou por ser tão boa. Mas ele não lamentava a santa, talvez nem a conhecesse bem. Com e sem lágrimas chorava a mãe que só ele tinha.  Nos grandes desgostos, os homens não aguentam subterfúgios e as lágrimas, todos o sabem, amarfanham propósitos. Ora Jaime era  apenas um garoto em disfarce de rapaz, um menino magoado, trespassado pela evidência da orfandade, incrédulo do nunca mais que a morte escrevera no ser que mais amava. A falta  materna fazia-lhe incerto o mundo, tremia-lhe o chão e o desgosto escorria.

Nos dias que se seguiram às cerimónias, quando a casa tentava recompor-se de humores e cheiros, das flores, de tanto rosto e tanto passo, de rezas, crendices e promessas, do diz que diz murmurado por respeito a quem Deus já lá tinha, Jaime colhia ânimo fixando-se nas coisas. Amparava-se ao quotidiano, enchia-se de sons e ruídos, a tudo  dava atenção. Postava-se frente ao espelho perscrutando o rosto como quem espera sinal de bexigas, sarampo, uma febre tifóide.  Mas, fora a palidez e certo lastro triste, era o mesmo rosto de antes.  De outras vezes, perdia-se a olhar objectos que a mãe preferira; pegava, voltava-os na mão e repunha-os no lugar.  

Cada homem molda a tristeza como sabe e pode. Há os que se iludem e, assoberbados na dor, negam a realidade; noutros, os sentidos depuram e como que se vão sofrendo nas coisas apercebidas e nelas exorcizam a mágoa. A natureza de Jaime incluía-o nos últimos e, à medida que os dias corriam, a juventude insistia, estás vivo. Expedita, Celestina empurrava-o para os estudos e desdizia da solidão, vá ver os amigos da cidade, torne aos livros e à escola, era o que sua mãe mais queria. O pai, sempre por fora e sem a mãe para uni-los, pouco se deixava ver. Que andava pelas vinhas, dizia. Cada um disfarçando  a tragédia a seu modo. À vista um do outro, tentavam minimizar o próprio sofrimento, contrariavam a apatia, fingiam. Fingir era necessidade. Por vezes, um acto de misericórdia.

sábado, 20 de novembro de 2021

Sombra Chinesa

 

Poderia contar que Veridiana se finou num outono poético e partiu como quem adormece, qual folha desprendida pela aragem. Mas não seria verdade. Foi num outono de poesia, sim, mas morreu exaurida, roubada de si. A impiedade da ceifeira esventrou-a. Sem voz ou réplica, sobravam-lhe a pele colada no esqueleto e os olhos sofredores implorando sabe Deus o quê, decerto o fim. Só o coração, músculo em tudo teimoso, sustentava a agonia. E a vizinhança compungida, mais lhe valia morrer, dizem que vai um cheiro a morte naquele quarto que só visto. E, sem transição, acusavam, estes médicos não valem o que ganham. E em silvo desdenhoso, sempre à cabeceira, sempre à cabeceira, é um gastador de dinheiro e  mal dela se não fosse a Celestina do tratorista. Aquilo era dar-lhe uma injecção e pronto. Algumas avançavam certezas sentimentais, espera pelo filho, a pobrezinha; não morre sem ele. Ignoravam que, em fraqueza titubeante, reiterara ao ouvido debruçado de Formosinho, deixa-me acabar, depois o chamas.

Desensofrido e solitário, Formosinho entregava a mulher aos cuidados de Celestina e do doutor e rumava às vinhas, arrastando-se desarvorado por entre as videiras. Já sem fruto, as cepas avermelhavam e despiam-se suaves. Sobressaía-lhes a vida retorcida, os nós imitando sofridos aleijões, parecia-lhe que em  sintonia com o padecer de Veridiana. Alheado e como louco, enterrava sapatos e bainha de calças na poeira e, penitente, calcorreava torrões fora, somando horas de angústia e impotência que derramava como quem deita adubo à terra. À vista das vides e gavinhas apodrecidas que agora lhe surgiam padecentes, lembrava o sofrimento caseiro, o relógio parando nas horas doloridas. E era em vão que buscava culpas e justificações para tamanha crueldade. A harmonia vivida parecia-lhe já sonho, quimera evaporada por castigo da sorte.

Contudo, a natureza seguia o seu curso. Em cada manhã, o  sol rompia doce e igual e havia no ar uma serenidade de pássaros em ramo que anoitece. E a indiferença alegre das crianças  prolongava o mundo natural. Aproveitavam a temperatura acolhedora e, depois da escola, enchiam as ruas de algazarra.  Ou, em pequenos grupos, perdiam-se pelos quintais à descoberta de tudo, pedrinhas que brilhavam, lisos pedaços de tijolo pedindo ser atirados no jogo do pisa, flores coquetes que as garotas arrancavam para aninhar detrás da orelha ou prender com gancho; enfim, exploravam um nunca acabar de tesouros. Pelos jardins, flores fora de época enalteciam jubilosas. Senhoris, puxavam o colarinho dos atributos e sentiam-se raras; esqueciam que só o atraso de gelos e vento norte dava luz verde à basófia.

Não chegara ainda o agastamento desabrido da frialdade a chamar a pressa de gestos  e o cheiro a lenha queimada em dias soturnos que  almejam a tepidez do lar. Portanto, havia muito quem lidasse por fora e vislumbrasse o desvario de Formosinho. Ao longe, semelhava boneco desarticulado, ébrio caminheiro entre as longas filas de videiras. E as mulheres paradas, olhos fitos, persignavam-se, o homem anda desvalido que nem cão vadio.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Voltar

 

         Tanta vez a vida é o que tem de ser. Habituamo-nos. Corrijo, vamo-nos habituando a que ela nos contrarie as voltas, os desejos e anseios. Não que o hábito nos isole do sofrimento. Ao invés. Continuamos a mover-nos a desejo, sempre a desejo e esperança. A decepção e a mágoa  brotam dessa nascente que envolve expectativas goradas, castelos que afinal nunca existiram (que parvoíce, castelos), realidades feias demais, mas que se impõem e têm de ser.

Estou eu com estes ademanes, a fazer cama - por escrito -  a uma decepção a que fechei olhos (o desejo cega). Pronto, é certo que sou medianamente inteligente, mas tem vezes que funciono por likes, querem o quê. Não os do Face que nem tenho, mas os gostos amorosos, essa seda sentimental, cinta de pessoas e bichos. Bom, no caso, também alguns objectos, tive um despertador que me morreu de repente e foi como se me arrancassem uma unha a sangue frio. Portanto, está visto que era amor.

Pois é, leitor/a, foi triste o meu encontro com a Lili. A pobre está velhíssima, pouco vê, tem tumores e cataratas. Não creio que me recorde. O alheamento em que vive será um bem, está confinada ao sofá; ainda assim, teimava e queria voltar atrás e vir comigo. Nunca a Lili me festejou como a Violeta. A Lili era a doente e nós dois pensávamos (eu o pensei até à manhã de hoje) que a Violeta, toda alegre e irrequieta, lhe sobrevivia.  E não sabia eu que a Violeta era a mais nova, a que desatava numa correria mal me enxergava na lonjura? Sabia. Não sabia que era essa a que tinha morrido? Sabia. Mas acho que não quis saber. A minha consciência preferiu ignorar. Ou melhor, preferiu trocá-las. Portanto, era convicção, ia revê-la. Só que a realidade não deslaça. Impõe-se. Ordena. E eu sentada no anteparo do aqueduto a esperá-la. Imaginando-lhe os olhitos contentes e o pulo maroto que a deixava no meu colo. Mas chegou-me uma Lili cansada e vagarosa, velhice desinteressada do mundo. O senhor Zé notando-me a confusão reiterou, esta é a Lili, a mais velha. E ela dócil sob as minhas mãos, olhando-me triste como quem se desculpa da idade. A querida Lili que contra todas as expectativas, ainda resiste.

Penso no velhote prestes a perder a companhia de todas as horas e entendo-lhe a tristeza de fim de caminho. Confidenciou-me num encolher de ombros que o cardiologista já não quer operar. Cansa-se muito e a respiração, por vezes, é difícil. Mas não vai haver cirurgia.

Triste de quem é velho e pobre. De quem fica anos em espera, aguardando uma cirurgia que, diz o senhor doutor na consulta esperada, agora já é de temer, não vale a pena.  É isto que vale um velho sem dinheiro, pedidos ou conhecimentos. Só ele (devia bastar, não?). Uma vida de descontos e trabalho.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Voltar

 

É sabido que, de quando em vez, me nascem necessidades parvas e altero a ordem dos dias. Dos dias é como quem diz, nascem-me sextas-feiras a torto e a direito. Hoje, o dia inteiro foi sexta. Até aos milésimos de segundo. Até no forro e no avesso da nervoseira dos segundos, dentro dos bolsos fundos das horas, nas bainhas descosidas dos minutos. Sexta feira no completo de si.

E, portanto, deu-me para experimentar o passeio de quando andava sem pensar que tinha pés. E fui assim pela frescura apetecida de uma manhã feita bebé birrento. Que bom encontrar as mesmas casas a cheirar a lume de chão, e o cão que me segue em silêncio até ao fim do muro, por certo intrigado, que anda esta mulher a fazer no cedo. E o que eu desejava mesmo era ver a figura do senhor Zé lá ao fundo com as cadelitas. Anelante, virei a curva. Olhei. Nada. Devo estar mais pitosga que só dei pelo velhote já ele estava próximo. Atravessei a estrada procurando as cadelas que ficam para trás a cheirar tudo, ou entretidas em cumprimento animal, conversando de assuntos caninos, focinho com focinho com um cão ou outro que por ali vagueia. Mas não. O senhor Zé era árvore na beira do caminho, mais encorpado, cabelo embranquecido de todo e na figura uma tristeza resignada, um não te rales desleixado. Dei-lhe o meu sorriso mais amplo e saudoso – ou dos mais – e, a esquadrinhar as imediações inquiri, e elas. O velhote com olhos vagos, a Violeta morreu com um tumor; e a olhar-me, a Lili já não aguenta o caminho, está em casa, pouco sai do sofá. Fiquei sem acção, completamente desasada. Talvez tenha dito duas ou três frases das mais palermas que entremeava com,  e agora já nunca mais as vejo.  E saíam-me uns ós de pesar que não ajudavam. O velho moía o desgosto, não precisava o meu contributo. Mas a minha mente embarrancara. Não mais nos sentaríamos no muro a conversar, enquanto a Lili me saltava para o colo e a Violeta mirava do chão com seus olhos de catarata. Abalholhada, quase esquecia o saquito que trazia e lhe passei para a mão. Foi a primeira vez que o senhor Zé agradeceu. Antes, não éramos disso, o saco mudava de mãos como água que corre. Foi um obrigado que me soube a palmada nas costas. Para me dar ânimo. Ainda arrisquei, arranja um cãozinho pequeno. Mas ele negou, a minha idade já não dá para esses trabalhos.

Mas, quando me despedi, até segunda, virou-se para trás e, vem na segunda, então trago a Lili. Eu sei, vai parar muitas vezes para descanso do animal. Mas estou tão contente da atitude, tão contente por afogar a saudade da Lili. Apressei-me a desalojar o “nunca mais as vejo”.

PS: dói-me a porcaria do pé. Mau Maria.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Era uma vez...

 

E tudo foi simples e se fez próximo nesse mundo feminino e palavroso, as vozes em crescendo. Pena a mesa angular que impedia visão comum. E é certo, o vinho instala espírito festivo. Alma e corpo distenderam com  a sangria, as conversas avivaram, os nós residuais de súbito deslaçados. As aias, voltando atrás no tempo, serviam-se mutuamente como quem está em companhia de tu cá, tu lá. E brindavam. Aos brindes faltaram apenas os versinhos antigos que faziam os avós, “vou beber este copinho com muita alegria, viva a nossa professora e mais toda a companhia”.  Mas os avós das quadras, que é deles. Hoje, elas são as avós. E talvez não façam saúdes rimadas e populares. Mas brindam. E a princesa ergueu o copo e fez tchim-tchim. Linda e alegre na sua serenidade comovida por via da festinha.

A degustação foi sem mistério e a contento. Pode mesmo dizer-se que acrescentou o espírito que as animava.  E depois, é de praxe, num almoço de mulheres, sobremesas são necessidade: o bolo húmido de chocolate, uma tarte que podia ser de leite ou limão, a sericaia, um bolo de natas. E talvez antes, durante, ou depois da doçaria, a hora grata.  O álacre ramo de flores que a princesa-professora recebeu de suas aias, as palavras bonitas que o coração ditou na hora e sem ensaio. E a professora comovida, uma irremissível e púdica lágrima logo disfarçada por dedos cúmplices; a lágrima a teimar, deixem-me escorrer, por que me cortam o caminho. E a professora a recolhê-la mudamente, os dedos falando por si, não, não; as emoções  não podem desaguar ao ralenti, somos os moderadores. E talvez que uma aia maravilhada, embevecida por entrever um coração numa lágrima que quer esconder-se e assim  se faz mais pura, relíquia que se guarda e reluz na memória.

E não foi de deitar fora a hora dos licores: de poejo e bolota. Tinham a ver, somos Alentejo, caramba. O de poejo, esmerado em sabor e álcool, agradou largamente. O de bolota, quase insalubre (como o fruto) e apenas doce. Sem explicação plausível, apesar da disparidade, os licores desceram festivos.

Da torrente de conversas e sugestões, ficou a promessa de repetição  – quiçá na primavera de 2022 –; uma reportagem fotográfica que, salvo a foto de grupo e uma ou outra a pedido, não foi notada senão quando a doce autora no-la fez presente; e a lembrança de era uma vez um almoço, guardada no cofre pessoal e identitário da memória.

Um Bem Haja a todas as participantes.

 Obrigada, Querida Professora.

Era uma vez...

 

Era uma vez um almoço.  E, como em todas as histórias, havia nele uma  princesa e suas aias. Seguindo o curso dos contos e as leis dos homens, umas lhe seriam mais próximas que outras, mas a todas queria bem. Algumas sabiam-lhe um ou outro gosto, juntavam-se-lhe em amenos passeios nas áleas do jardim, gostavam de a ouvir discorrer. Amavam o seu pensamento claro, os projectos, o enraizado amor à vida. Mas, sobretudo,  apreciavam a forma discreta e sempre elegante de dizer sabendo ouvir, a atenção que lhe merecia cada uma das companheiras.  Que as princesas de verdade treinam a escuta, faz-lhes parte da conversação.

Registe-se que o quotidiano da nossa princesa e seu séquito de aias seguiu a norma, cedo lhes veio o consabido tempo da separação. O castelo ficou para trás, cada uma escolheu ou foi escolhida por caminhos e trilhos que correu até ao fim ou arrepiou. E, em diverso passo, todas verificaram que pouco o homem escolhe e só as preferências do coração resistem à fugacidade. Quando resistem. Se. Ficou-lhes a memória. O único elemento que permanece e não pode ser sonegado é o ter sido. Hoje, serão outras de si mesmas. Mas jamais perdem quem foram. Os meandros do castelo que agora lhes surgem envoltos em pobreza acanhada, já fizeram parte do seu mundo de sonhos e pequenas raivas, animaram tropelias e amizades esfumadas e que, à época, se julgavam eternas. Era ali que a princesa moderna pisava e fazia mundo, sapatinho de salto e saia justa, impecáveis vestidos com gravata,  esbelta miss em invejada meia de vidro. Se o passado as visitava, as aias pensativas, por onde andará. E logo,  oxalá seja feliz. Cada uma relembrando seu episódio. Que a discreta princesa cuidava por suas aias. E em todas, qual perfume que não dorme,  morava o seu jeitinho exemplar.

Foi talvez desta base de gratidão e amizade respeitosa que a ideia brotou. Será porque a princesa regressada. Ou por amarmos o imutável de cada um e nela vibrar intacto, pedra de toque com o passado. Terá acontecido por força de reencontro com aia mais atenta. Pois que seja. A ela/elas devemos o almoço de era uma vez. 

Soavam as treze quando se juntaram num misto de confiança e estranheza, cada uma em busca de rosto que antes lhe foi próximo, desvendando detalhes que a  idade mascara, certa forma de olhar, o tom de voz, a linha do nariz ou da fronte, o riso. E a discreta princesa contente, revendo-se nelas; tão jovens  as de antes; e agora mulheres no outono da vida. Outras. De certeza, outras. Mas não completamente.

(cont.)

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Sombra Chinesa

 

Embebido em si, Jaime agradeceu retornar aos estudos sem passar por casa. Sentia-se inseguro quanto ao bem estar materno, mas o instante desejo de permanecer desanuviado justificava-lhe a convicção de melhoras. Distância, desconhecimento e juventude velavam-lhe a realidade. E  aliviava na ausência de notícia. Descontraía. Empanturrado de liberdade e sonho, via-se  capaz de fazer caminho por si e tomar partido,  deixando a aldeia  e a tutela no passado, qual roupa antiga onde o corpo já não cabe. Queria mudanças. Construía castelos. Projectava. Estudar e ser doutor, ganhar nome na cidade. Antevia-se de bem com a vida, repimpado em casamento feliz, pessoa de respeito a que os colegas de café acenavam com agrado, mãos procurando lépida cadeira e abrindo espaço na mesa. Descoberto o juvenil poder da amizade masculina, e assente na lembrança de garoto solitário, decidia-se por um círculo de amigos, selecto e bem humorado, de longevidade e coesão invejadas. Mas, apesar da imaginação à desfilada, a saudade insistia. As malas chegadas da terra traziam-lhe os cuidados maternos. Revia a preocupação da mãe a vasculhar o quarto e espreitar a mala aberta, ainda assim não olvidasse algum pertence ou necessidade; vinha-lhe o eterno chão de ternura entretecido de pormenores; os poucos conselhos; as surpresas escondidas sob roupas e livros e de que só dava conta no desfazer da mala; o aconchego dos braços na despedida, olhos que, na impossibilidade de segui-lo, derramavam, saíam de si, palpitavam na exaltação inquieta das mãos, corriam-lhe o semblante e, protectores, se afirmavam no todo do corpo, a querer memorizá-lo, fixar dobras e vincos, captar sombras e penumbra.

Não era ainda a saudade irremediável, funesta, que modifica os interiores do homem, porque só dentro de cada um existe a verdade possível, só o pensamento nomeia e qualifica. E a morte ainda não existia em Jaime. Mau grado a estranheza sentida na ausência das pequenas surpresas sob a roupa, o escrúpulo de Celestina suprira mais desconfianças. E a juventude fazia o seu papel.

Deste modo, enquanto Jaime se afirmava e eu crescia, enquanto a filha do Pelinhos vivia alegremente de amealhar em fins de semana por montes e lugarejos, toda a aldeia estava ciente da morte iminente de Veridiana e a lamentava como se já o facto consumado. Restava apenas a dúvida acerca de Jaime, será que o pai o chama antes, ou depois da morte. E as mulheres com seus lamentos de agoiro, coitadinha, tanto que ela gostava do filho, vai-lhe atravessado. Outras, pobrezinha, anda ele todo lampeiro lá pelos estudos, sabe-se lá a fazer o quê, e ela aqui neste padecer. Ou ainda, que Deus não se demore a chamá-la, está fartinha de  penar e tanto sofrer não se deseja a ninguém, o Formosinho está um caco, nem parece ele. Mas, até ali, as invejas chegavam em seu disfarce de apertar xailes ao peito, Deus o dá e Deus o tira, Ele lá sabe porquê.

O irrefutável da morte chegava com aviso. Muitos tinham reparado nos corvos sobrevoando a casa. Três dias a fio, no alvor matinal, as aves proféticas a assinalaram, revoluteando sobre as telhas. Era certo o odor fétido, nada a fazer.