quarta-feira, 28 de junho de 2023

Sombra Chinesa

 

Na meia luz da aurora, as flores do jardim lamuriavam a desdita desde a força das raízes. O desamparo corria seiva fora e propagava-se às corolas a empalidecê-las, adoeciam mansamente. Em justíssima tristeza -tinham assistido a tudo -, reconheciam ser preferível um súbito da morte. O abandono era expiação, a vida a ir-se aos poucos; e acrescentavam que talvez as ovelhas pudessem ser mão no gatilho e pôr cobro ao conta-gotas da desgraça. Presas à terra, sobrava-lhes a amargura do afastamento que não podiam secundar e adivinhavam irrevogável. Zé da adega, fosse pelo contacto com a natureza, fosse por dom natural, mantinha secretos diálogos com as flores - entendia as doenças e as alegrias, escutava os pequenos segredos, compadecia de quezílias e vaidades. E tinha boa paga, elas debruçavam-se inteiras a festejar-lhe os pés, perfumavam-lhe as mãos, sorriam-lhe por pétalas a desprender e polvilhos de pólen, e alvoroçavam desde os longes de vê-lo - já se sabe, um longe de flor é o perto dos homens -. Quando Zé da adega entrava em casa, Virgínia sentenciava, tu entras e cheira a campo. Por vezes, num ressalto de perdigueiro, aspirava-lhe o braço peludo a conferir, tens cheiro de prado. E ele inteirinho no braço, o resto do corpo emigrado sabe Deus para onde. Ele agradado da atenção, a sentir o nariz junto à pele, subindo em tracejado respirar, o calor morno e todo suavidade de respiração, exalando ternura bem humorada. Ele em vénia mental, grato às flores silvestres. E em jeito de justificação, os pastores cheiram a outra coisa, à mistura de suor e natureza. Mas, no íntimo, duvidava. Perguntava-se se seria assim mesmo, ou se tudo advinha do entendimento extra com que nascera e nunca divulgara, não fosse quebrar a magia ou passar por maluco.  No entanto, estendia às ovelhas o banquete. Procurava em campo aberto os melhores tufos, as florinhas mais gostosas. E, se as observava a remoer, desculpava-se, o ciclo da vida não deve ser interrompido; assim como assim, vida de flor pouco dura.

Digo eu e concordará o leitor que a brevidade está inscrita no ADN de alguns seres delicados, pertence à fragilidade ser altamente perecível. Quanto ao Zé, sujeito que sabemos de romantismo fácil e fugaz filosofia, andou para os montes sem mais pensar, um assobio à preguiça sonolenta do cão, vai lá Farrusco, e, cajado em riste, apontava as tresmalhadas. Lá ao fundo, a casa clareava no seu posto, despida de gente. A digerir mais uma morte à revelia.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Sombra Chinesa

 

Quando a tarde se despedia, a majestade do crepúsculo a fazer-se anunciar em tons rosados pelo horizonte, a aldeia sofreu tremura de curiosidade mórbida. Vários pares de olhos arredondaram na surpresa da carrinha do Chico manobrando para descer a ladeira e, num ai, estacionou na rua de casa. No ar, um retardatário bafo de calor lembrava o dia encalmadiço, mas a nova correu célere e sem afrontamentos. Foi como se uma orelha gigante e receptiva invadisse a atmosfera. Era convicção comum que Formosinho estava por detrás deste acontecer. E desta feita não houve decepções nem engano: o Chico parou o carro e, desligado de mirones ou de saudar a vizinhança, entrou numa pressa, fechou a porta e, sem mais – não sou eu a dizê-lo, mas quem ouviu -, desatou às porradas. Contudo, apesar de ninguém em presença, ficou a certeza: o homem bateu e foi batido –  a filha do Pelinhos, fosse qual fosse a condição, não era mulher de sofrer pancada. Dela, não se ouviu um pio, nenhum queixume; e, se lágrimas houve, caíram silentes. Não fora o fragor de objectos espatifados, mesas arrastadas, o desancar e partir de cadeiras, mais os vitupérios embrulhados em ódio e atirados como adagas, quase se podia pensar que brigava e barafustava sozinho. Ouviram-no vociferar até altas horas da noite enquanto fazia o que só Deus sabe, passos para aqui, passos para ali, murros nas paredes, a violência de sentimentos um empecilho ao sono, a impedir-lhe o coalho. Agitava-se por todas as divisões da casa, qual queijo deslaçado que não conhece cinta, numa inquietação de cólera e desgosto que se adivinhavam nas pisadas, no rangamalho dos objectos, na exaltação da voz que, contra a vontade, denunciava pesares de requiem. Da filha do Pelinhos-ela-mesma, nada se soube. Quando a vizinhança teve sossego e pôde descansar, quando a adrenalina, enfim, desceu e sobreveio o cansaço, a aldeia mergulhou na urgência silenciosa de sono pesado.

Mas o tempo – ou será a vida - não se compadece com os desaires dos homens, os dias exigem sequência e continuidade. Mal os alvores da manhã se anunciavam, já Zé da adega abria a cancela do curral e punha as ovelhas ao caminho. No avultar difuso do monte, logo o pastor intuiu, o Chico e a filha do Pelinhos tinham partido: a carrinha evaporara. Fez-se próximo. A casa apresentava-se inviolável, sem nesga por onde espreitar. O postigo da porta, tímido e desasado, uma sombra de si mesmo; faltava-lhe a graça do rendado habitual.

domingo, 18 de junho de 2023

Sombra Chinesa

 

A uns, como a Zé da adega, confrangia o fim da novela. Àqueles, sob aparência moralizante e capa de decência religiosa, acicatava-os a inveja da possível sorte dos amantes, do “não te rales” a que a filha do Pelinhos sempre votara mexericos, e da sua índole capaz de esquecer a condição e dizer sim aos anseios do jovem. Que aquilo era tudo menos amor, sentenciavam a reprová-la por boca  e olhos. Era mau caminho da carne, capricho de um juntamente  com descoberta do sexo no outro. Mas, no íntimo, as invejas pequenas eram cobras contorcendo-se em desejos de liberdade que nunca satisfariam em pleno senão de si consigo. Que havia dois lados e a gente de bem só podia estar num deles – a condenar. As mulheres, sem que o afirmassem, e mesmo incapazes de admitir tal fenómeno, invejaram a liberdade a que a outra se resolvera. E daí lhes veio, em ondas crescentes, o  rancor: impiedosas, trouxeram a lume o seu andar de nariz empinado, a vaidade, a cegueira que a possuía quando sovara a filha, o estouvamento com os homens e que só sabiam por tanto não saber, que na aldeia ninguém tinha que lhe apontar. Desenterraram e acrescentaram esqueletos num diz que diz imparável, e até o facto que a orgulhava nos negócios, “sou de boas contas”, veio a ser achincalhado e posto em dúvida. Havia uma má vontade geral nascida na diferença que a filha do Pelinhos representava. Afrontava-as que fosse decidida e muito senhora do seu nariz, facto que acentuava a inabilidade e insignificância a que elas mesmas se votavam, sombras mais ou menos obedientes de homens de pouco valor. Não lhe perdoavam a beleza natural, os olhos esverdeados de gata, a graça com que apanhava a saia no subir das ladeiras.

Mas Afonso, o Formosinho de todos, também cegara. Não deu pelos olhares que o seguiam, não absorveu a cupidez desejante de sangue, de homens a quem a filha do Pelinhos rira na cara desprezando-lhes as secretas pretensões; não adivinhou o estardalhaço que se esperava. De vigia, Zefa do Prado sentiu um arrepio à vista de Formosinho descendo a ladeira e a encaminhar para a porta vizinha. Ainda ela no estupor gaguejante de aviso não aviso, e já ele batia decidido.  E, portanto, não preveniu, não houve sequer o sinal combinado para situação de perigo, umas quantas batidas rápidas na parede comum. Nada.

É certo que a filha do Pelinhos não esperava Formosinho. Mas, nem ele vinha armado de varapau, nem ela era mulher de grandes assombros. Ou talvez já o tivesse pensado, talvez imaginasse que o pai de Jaime por ali viesse a tirar satisfações. Quando contou os factos, Zefa estava segura que a porta se abriu às primeiras batidas e ele entrou. Na aldeia ninguém soube palavra do que houve. Zefa bem apurou o ouvido, bem o encostou na parede, mas, decerto com propósito, a filha do Pelinhos e o pai de Jaime encontravam-se na divisão oposta à de parede comum. Falavam baixo. De porta fechada, apenas se entendiam sussurros que levaram a mulher a concluir que Formosinho fazia a despesa na conversa. Uma hora inteira e não houve uma exaltação, um murro na mesa, uma recriminação mais ostensiva. Quando o homem saiu, a porta não bateu com mais força que a devida e a casa ensimesmou na paz de sempre.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Sombra chinesa

 

Ninguém soube dizer quando e como chegou a notícia a Formosinho. Talvez por observação simples num intervalo das vinhas, que os namorados tomam mundo à parte e, presos em mente avoada, não são difíceis de detectar. Acresce que, sem desvelar o segredo, Jaime se acautelava com pouco jeito; de tão jovem, confiava. Ou talvez fizesse perigar o secretismo por, de forma inconsciente, ser modo de dá-lo a saber sem confronto. A cobardia – e não apenas ela -, jovem ou não, foge do confronto. Por outro lado, no caleidoscópio pessoal de Jaime, o amor sobrepunha e, com frequência, atordoava em euforia e ilusão. Nesses momentos, julgava-se invencível e armado contra o mundo, via-se elemento de par indivisível. E não será isto o que acontece aos amantes?! Não lhe vinham dúvidas pela falta de proventos próprios, não lhe ocorria que a condição de estudante o fazia depender do pai, votava a canto escuso o facto de dormir em cama alheia e com mulher que lhe não pertencia senão de coração. Com o evoluir da relação ganhava futuro, projectava. Mas, do outro lado de si, minava de receios não isentos de culpa e protelava a novidade a que Formosinho tinha direito.  De outras vezes, toldado pelo ouro da ilusão, convencia-se que o amor tudo supera e leva de vencida. Acreditava que, aclarada a situação, o Chico havia de o esmurrar. E dava-lhe razão, julgava que ser sovado era preço da carta de alforria. E que, desfeito o imbróglio e paga a dívida, seriam livres. Que, arrumadas as parcelas umas sob as outras, faltava proceder à soma antes de começar conta diferente. Tudo lhe surgia simples na vida complexa: sonhava que saíam para o sol de mão na mão como outra gente, cessavam de se acobertar no silêncio da noite como ladrões que eram. A paixão era jovem e exacerbava. E, dessa efervescência borbulhante de vinho que fermenta, ausentava-se a lógica e a razoabilidade; tampouco considerava os imponderáveis que saem ao caminho dos homens, acrescidos do transtorno dos acasos. Dentro da circunstância, podemos bem acreditá-lo de alma inocente, todo fogosidade e enlevo. Mas que dizer da filha do Pelinhos, mais velha e experiente, vendedora afamada que tirava benefício das fraquezas dos outros e jamais perdera para um homem. Que procurava em Jaime, o orgulho satisfeito e a vitória da vaidade? trazia o rapaz pelo beicinho, sabia-a toda. Brincava aos amores e ele era incauta vítima.  Entontecia-o pelo agrado de o sentir rendido, e o Chico, esse, não era visto nem achado. Não a atazanava a traição, o engano não lhe bulia com a consciência.

Mas quem assim imagina – e a aldeia imaginava -, nem sempre acerta. O imaginário constrói-se sobre o mundo de cada um e o resultado delata também o sujeito que supõe e enforma o objecto pensado. De resto, quem seria capaz de ver na força couraçada da filha do Pelinhos um ser frágil; quem anteciparia que o apego a Jaime fosse também amor inocente; quem, sequer, arriscou a dúvida: será amor de verdade. Ninguém.  Na mente comum tudo se resumia em poucas palavras: leviandade e falta de juízo da mulher que a aldeia admirava sem adopção. Mais velha, casada, mãe, negociante de mão cheia; ninguém o notara, mas seduzira-o, o insólito era obra sua, fêmea de belzebu. A ele desculpava-o o mundo, era inocência de Sansão nas pérfidas mãos de Dalila. Portanto, quando Formosinho desceu o valado e bateu à porta da filha do Pelinhos atropelaram-se sentires.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Há Horas Felizes

 

Cheguei à Feira preparada para o pior: guarda-chuva e repelente de insectos que o zelo filial acrescentara à mochila  - nos dias anteriores, uma praga de mosquitos esfomeados cuidava de devorar os passeantes; e  logo imaginei filas a contorcerem-se em dança contínua e afugentadora de melgas. Chovia.

Preparando a visita, fizera um apanhado dos livros do dia e da sua localização, acrescentando uns extras de preferência pessoal. Como de hábito, viria a falhar bastante. Tinha uma hora para ver, escolher e comprar. De caminho e sem delongas, comprei “A Amante Holandesa” na Bertrand. E segui para a Relógio d´Água com o propósito de começar por ali. Havia alguns livros que me interessavam e, além disso, é editora obrigatória. Depois, iria pela Alfaguara e Guerra e Paz. Falta-me paciência para as filas da Leya. E lamentei a falta de tempo para os livros usados.

O Parque Eduardo VII parecia deslocado para o Brasil, estava quente húmido como ainda o não vira. Encalorada, despi o impermeável e guardei a sombrinha enquanto subia até ao destino. E, no sufoco de calor, olvidei os jacarandás. Lá em cima, a Relógio d’Água estava repleta. Dei uma volta pelos escaparates e é claro que mudei as preferências. Do proposto, comprei apenas uma biografia de Yung, livro do dia. Dos autores a que me propusera, Zweig e Jane Austen,  mudei as obras. E acrescentei com prazer Hanna Arendt, “Pensar sem corrimão”, puro amor à escritora e ao título do livro. Depois, esgotada a minha bolsa para livros, ponderei que já não podia parar em lugar algum, faria orelhas moucas às solicitações.  Mas, do lado oposto, a Relógio d’Água vendia livros mais baratos (entre três e dez euros). Não resisti. E corri-os a todos. Acabei por trazer António Muñoz Molina e Jorge Luís Borges. Hesitei largos minutos no “Conversas no papel” De Júlio Machado Vaz que me parecia ter em casa e acabei por não trazer. Tenho memória de o comprar e gostar de lê-lo, mas ainda não o encontrei. Talvez o tenha emprestado (não sei a quem). Não interessa, há um ano para encontrá-lo. 

Portanto, desci carregada como não devia, mas contente. A rezar mentalmente para não haver melindre. E dei com os jacarandás. Azulavam à luz dos candeeiros, naquela rua que eu amo e me existe só por eles. Semi-abertos, brilhava-lhes a auréola colorida. Mas o que sobressaía na noite, o que galvanizava as atenções eram os troncos escuros e requebrados a repartirem-se com donaire, como se um arquitecto do vegetal os tenha ordenado em simetrias de elegância e beleza. Não acredito em acasos criadores e de tanta perfeição, e este pensamento é mais forte que eu, domina-me. Emudeci em religiosa admiração e, num mundo de ruídos, sobreveio o silêncio dos jacarandás, o êxtase a bold de troncos e braços airosos e bem torneados, afirmação imóvel e expressiva das árvores mais belas de Lisboa. A fosforecer no imaginário.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Há Horas Felizes

 

Não me lembro se já deixei aqui o meu gosto por ouvir o não comentador Pacheco Pereira. É enraizado gosto. E cresceu quando o ouvi – e também vi – na Gulbenkian, afirmando com uma pontinha de orgulho e rebeldia que fora decerto a primeira vez que, naquela casa, se tinha tocado “A Internacional”, momento festivo e inicial da sua conferência (ou terá sido colóquio?) e a que, como quase sempre acontece, não assisti.

Ontem, fui ouvi-lo a falar de selos e da sua amada Ephemera. Bom, e estava tão taranta – sem atraso - que ia chocando com o conferencista logo na entrada. Tentei um lugar discreto e sentei-me. Mal pousei o saco, o insidioso odor da empanada acabadinha de sair do forno dava-me água na boca e chocava de frente com os eflúvios perfumados das senhoras presentes. Duas delas, mesmo na frente da minha cozinha ambulante recatadamente encostada à parede, olharam várias vezes para trás e estive quase, quase, a desatar a confidência: não lanchara; ia dali para a Feira do Livro onde só existe algodão doce, wafles e outras enxovias - assim diria meu pai;  tinha uma hora para escolher e comprar livros (estes portugueses estão cada vez piores, anteciparam a happy hour; têm que dormir cedo, coitadinhos deles); e as palermas das empanadas estavam a 100 graus centígrados – ou seria mais  –, já que fiz a jovem abrir o forno e tirar-me uma. E, portanto, se bem calha, até Pacheco Pereira lhe sentiu o cheiro - na altura não o pensei, tentei apenas não atropelar a pessoa que por acaso era ele. Avante.

Pois digo-vos que dá gosto ouvi-lo discorrer sobre o quanto os selos revelam aspectos micro da política e da sociedade. Eu que, como sempre, não antecipo nada e só na sessão dei conta do tema, julguei que íamos ouvir falar de selos nacionais. Como se Pacheco Pereira fosse pessoa de se ficar por este rectângulo. Ele que gosta de vulcões em erupção (um ar tão pacato e gosta de vulcões no activo, imaginem). Pois sempre vos digo que apareceram selos de todo o lado, e vários de países extintos; de alguns, só recordava os fonemas, eu e o espaço geográfico somos extrínsecos. De outros, tinha tido notícia em romances, mas com a minha habitual perspicácia, lia-os julgando serem países inventados pelo escritor. Descobri ontem que, afinal, os tais países existiram.  Na disciplina de História aprendemos que cunhar moeda era sinal de domínio. Ontem aprendi que criar selos também é. E também aprendi – eu e todos os muitos que estavam na sala – que Pacheco Pereira não sabe apenas falar do selo x, y, z. Não vê apenas a árvore, conhece a floresta; creio ser isso que o engrandece. É um sábio, aquele senhor; um sábio com aspecto de filósofo. Gosto de pensar que, apesar do gosto pela História, tem alma filosófica.

Bom, também gostei do avô Américo Jacinto Machado (por sorte levava os óculos) a quem dedicou a sessão. Era um senhor muito bem posto e com interesses curiosos:  militar, atleta, columbófilo e filatelista. Quem é que pode não gostar de homem assim e que tão bem soube fazer-se gostar pelo neto – relevo que, pela primeira vez, Pacheco Pereira dedicou uma sessão. A incipiente sabedoria e gosto por selos veio-lhe através desse avô que não era do ramo nobre da família e também não me parece que fosse do povo que lava no rio. Mas que era, seguramente, uma nobre pessoa.

A Feira? Olhem, fui comendo a empanada no caminho para o Metro e um dia destes conto, ok?

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Toledo

 

No centro histórico, as noites toledanas têm mais encanto, parecem um começo de mundo.  Aos edifícios agarram-se sombras misteriosas, indiscutíveis gigantes em postura de soldado. Protectoras, acobertam transeuntes, envolvem-nos em penumbra de séculos e gravam na mente um ramo de impossíveis.  Liberta do jugo diurno, a alma borboleteia. Assim é a noite de Toledo, aberta ao sonho. Ou, segundo os mais pragmáticos, fenómeno que varreu o quotidiano e se dispôs à diferença medida em passos, por ruelas estreitas e cones de luz que velam o repouso das pedras. Os noctívagos, pés e olhos despertos, flanam sem pressas pela cidade, envoltos num certo ar de ir a todo o lado sem desejo de lugar específico.

Contudo, íamos pela catedral ainda virgem a nossos olhos. Abordámos o monumento pela lateral, mas era tal a imponência que julguei ser a entrada principal e me quedei por ali a ver o subentendido. Deparou-se-me  a afobação de levantar aquela magnitude, gente miserável e andrajosa vergada ao horripilante poder das pedras e do chicote, mestres disto e daquilo com seu séquito subjugado, que sempre o poder dobra os mais fracos e, nos séculos XIII a XV, anos que mediaram a construção, fazia deles o que entendia. Mas quando embevecia nas ogivas das portas com arcadas profusamente guarnecidas; quando, em simultâneo, via as alimárias forcejando em patas trémulas, dobradas ao peso, e a persistência das moscas  que as atentavam; enquanto imaginava os dejectos e o lixo a esmo, as nuvens de pó que se desprendiam de tanto e tão diverso trabalho; enquanto os olhos atraíam às regueiras de suor que escorriam na sujidade dos corpos e reparavam nos cansaços nada mágicos dos escravos que, tanta vez,  culminavam em morte logo esquecida - um escravo a mais ou a menos não fazia mossa nem importava a ninguém, excepto à família se a tivesse, que os escravos não pensam nem sentem como nós, pouco discorrem e estão mais próximos dos animais que dos humanos. E como assim me distraio nas grandes obras que admiro duplamente - são arte e esforço dos meus iguais -, só mais tarde atentei nos contínuos passos de outra gente a rodear a catedral. E quando os segui, foi o deslumbre: o templo surgiu-me inteiro, em jogo de luz e sombra que lhe adensava o esplendor. Sentei-me a contemplá-lo e por ali fiquei gratamente, ajuizando em solilóquio que minha mãe está por detrás de quase tudo o que de bom me acontece: se tivesse ido parar à costura ou ao campo como queria meu pai, se ela não o conhecesse tão bem como conhecia, e se, a doença a miná-la, não se forçasse a ser activa na procura de um empurrão na minha aventura de aprender, se, de que me serviria esta alma de viajante extasiada que nem chegaria a saber que tinha. Os caminhos humanos são muito enigmáticos.