Na
meia luz da aurora, as flores do jardim lamuriavam a desdita desde a força das
raízes. O desamparo corria seiva fora e propagava-se às corolas a
empalidecê-las, adoeciam mansamente. Em justíssima tristeza -tinham assistido a
tudo -, reconheciam ser preferível um súbito da morte. O abandono era expiação,
a vida a ir-se aos poucos; e acrescentavam que talvez as ovelhas pudessem ser mão
no gatilho e pôr cobro ao conta-gotas da desgraça. Presas à terra, sobrava-lhes
a amargura do afastamento que não podiam secundar e adivinhavam irrevogável. Zé
da adega, fosse pelo contacto com a natureza, fosse por dom natural, mantinha
secretos diálogos com as flores - entendia as doenças e as alegrias, escutava
os pequenos segredos, compadecia de quezílias e vaidades. E tinha boa paga,
elas debruçavam-se inteiras a festejar-lhe os pés, perfumavam-lhe as mãos,
sorriam-lhe por pétalas a desprender e polvilhos de pólen, e alvoroçavam desde
os longes de vê-lo - já se sabe, um longe de flor é o perto dos homens -.
Quando Zé da adega entrava em casa, Virgínia sentenciava, tu entras e cheira a
campo. Por vezes, num ressalto de perdigueiro, aspirava-lhe o braço peludo a
conferir, tens cheiro de prado. E ele inteirinho no braço, o resto do corpo emigrado
sabe Deus para onde. Ele agradado da atenção, a sentir o nariz junto à pele,
subindo em tracejado respirar, o calor morno e todo suavidade de respiração,
exalando ternura bem humorada. Ele em vénia mental, grato às flores silvestres.
E em jeito de justificação, os pastores cheiram a outra coisa, à mistura de
suor e natureza. Mas, no íntimo, duvidava. Perguntava-se se seria assim mesmo, ou
se tudo advinha do entendimento extra com que nascera e nunca divulgara, não
fosse quebrar a magia ou passar por maluco. No entanto, estendia às ovelhas o banquete. Procurava
em campo aberto os melhores tufos, as florinhas mais gostosas. E, se as
observava a remoer, desculpava-se, o ciclo da vida não deve ser interrompido;
assim como assim, vida de flor pouco dura.
Digo
eu e concordará o leitor que a brevidade está inscrita no ADN de alguns seres
delicados, pertence à fragilidade ser altamente perecível. Quanto ao Zé, sujeito
que sabemos de romantismo fácil e fugaz filosofia, andou para os montes sem
mais pensar, um assobio à preguiça sonolenta do cão, vai lá Farrusco, e, cajado
em riste, apontava as tresmalhadas. Lá ao fundo, a casa clareava no seu posto,
despida de gente. A digerir mais uma morte à revelia.