A
minha princesa de quatro patas tem olho azul e uma ternura mansa a correr nas
veias. Chama-se gata e não tem arte para brigas com os congéneres, antes foge
deles num arrufo de cauda, buscando abrigo seguro; nessa inépcia de esgadanhar
e morder, ganhou marcas de guerra sem medalha. É caçadora mediana e diverte-se
a desrabar lagartixas. Isenta do vício da posse, lança a pata brincalhona ao réptil
e revira intrigada o pequeno s que se contorce no chão enquanto o animal some
fugaz. Raro procura colo e falta-lhe o seguidismo de me acompanhar as pernas
constantes. Também não inveja o teclado do portátil. Em suma, o mundo dos
homens pouco lhe interessa. Mas é feita de silêncio presencial e caseira como
nenhum outro gato; acresce que passeia no exterior usando cautelas que os
anteriores desprezaram. Foi assim que se prolongou no tempo. Quase velha, a
felicidade suprema acontece-lhe se giro pelo quintal. Sobe e desce no tronco de
árvores e arbustos, cabriola na minha frente, corre súbita para estacar de
seguida. Uma doideira de contentamento que deixa o Fox de olho arregalado às
quatro patas. Fox é o guardião, ladra avisos aos gatos quesilentos e a mim,
deixa-a comer do seu prato e esparvece de estranheza se ela surge com filhotes.
A
maternidade é a supremacia da gata. Este ano, por falta da pílula e mercê de
instinto inadiável, emprenhou. Com os típicos sintomas femininos: vómitos, magreza,
falta de apetite, sono em demasia e um quê de doença. Até os bigodes lhe
descaíam. Mas breve se retomou e, quando dei por ela, comia desalmada, barriga
a crescer. Às portas do parto, isolou-se no quintal. Mas, sendo duas para tanta
vida, somos as mesmas nos momentos difíceis. Encontrei-lhe uma cama a jeito,
pu-la em casa no lugar que prefere e depois de forrada depus a gatita, toda
atenção e respeito pela hora. Os três filhos nasceram por entre o seu silêncio
que semearam de miados finos como hóstias. No segundo dia, reparei que punha um
deles para as costas. Por duas ou três vezes corrigi a posição. Quando o
busquei da última vez, estava morto. Terá a mãe pressentido a morte ou o
instinto lhe ditou que não sobrevivia; ou, como diz o povo, enjeitou-o.
Contudo,
às duas gatitas sobrantes dedicou desvelo exemplar no asseio e na
disponibilidade, mãe a todo o pano. Quando a primeira se foi a novo poiso,
procurou e voltou a procurar pelos lugares comuns. E logo a esqueceu. A segunda
está de partida e tudo se repete. O instinto é força de momento que não deixa
marca ou lembrança, existe na hora certa e passa. A minha gata é só gata, não é
pessoa. Nem lá perto.