quinta-feira, 23 de maio de 2024

Para Dar


 

Para dar tenho ainda quatro pedras

de cal, quatro punhados

de neve, quatro rosas

roubadas à espuma das vogais.

Tive noutro tempo um lódão

à porta, nele cantavam

as estações e as aves.

Cantavam afectos, melancolias,

coisas pequenas, leves:

a delícia dos dias.

Cantavam quando a luz rompia,

e quando a luz se esfarelava

ainda se ouviam cantar.

Seriam elas?, seria eu?

Ofício triste, o do mar.


                                      Eugénio de Andrade, O Sal da Língua 


Nota 1: este blogue tira férias a partir de amanhã e durante dez dias. Façam o favor de ser imoderadamente felizes.

Nota 2: Parece que Eugénio se queixou da morte do lódão e o município do Porto lhe deu outro. Abençoada queixa.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Bochechos e Pulsações

 Escaroupim, aldeia piscatória, também começou mal: hummm...estrada de terra, o autocarro aos altos e baixos, uma chuvada no caminho que pôs a malta em modo de primavera logo aos ais, um caminho escanzelado  que fez da nossa chaufeur uma perita automóvel. Pouco vi da aldeia. Mas o rio, posto em sossego, apetecia e incentivava ao passeio. A paisagem convidava olhos que se espreguiçavam desvanecidos. A aldeia, estremunhada, olhava a correnteza como quem abre as janelas do dia. A digressão rio fora teve muito de aprazível. 

Vimos a ilha a que Alves Redol, na obra Gaibéus (lida há mil anos), chamou de "ilha das malandrices".  Hoje, mais poeticamente,  é conhecida por Ilha dos Amores, nome roubado a uma certa que existe lá mais para riba. É claro que aprendi a razão de se chamar tal e digo-vos: um ou outro nome  não tem hoje razão de ser, é coisa do passado.  

A Ilha das Garças, nome grácil da ave branca (também as há pretas, originárias do Egipto)  que o povo conhece por carracenhos, cheira abundantemente a galinheiro e as garças brancas são salpicos de papel higiénico presos  em hirsuta vegetação. De longe, é apelativa. Mais de perto, imagino uma imensa cagada, tantos os pássaros que ali dormem. O cheiro a bicho enfastia-me. Talvez até me enoje. 

E vimos ainda a fluorescente Ilha dos Cavalos. Lindos. Jovens. No sol matinal, a beleza dos músculos retesava sob o brilho do pêlo. O proprietário - há quem tenha herdades que incluem uma ilha - cria ali cavalos que saltam obstáculos e participam em corridas; material de primeira. Coabitam em harmonia espécimes árabes, lusitanos e anglo saxónicos (citação do guia-condutor). 

Água de rio não me seduz, mas, fechando os olhos, muda-se em azul ou anil e, fora o barulho do motor, é um nadinha semelhante ao mar. De olho aberto,  ajuízo nos rios a espessura lodosa do fundo onde mora um frio de mármore e fina rede de lismo que abraça os afogados. 

Nota agradável: o único restaurante da aldeia tem qualidade, serve bem e simpaticamente. Não precisamos mais, né?

Segunda nota agradável: vi o cais da Palhota, outra aldeia piscatória onde, num intercâmbio com um colega, estive um dia com alunos. 


domingo, 19 de maio de 2024

Bochechos e Pulsações

        Há que tempos não passeava tão descontraidamente (pensei no espírito viajante da Gracinha). Ir. Ir sem bagagem, sem preparar refeições para levar ou ficar, sem verificação de gasolina no carro, sem vigiar a carteira (uma notinha dá sempre jeito). Apenas aconteceu. Por força de várias vontades das quais a última foi minha. 

     Escaroupim e Salvaterra de Magos. Do primeiro lugar desconhecia a existência; do segundo  ouvira falar no Rádio Clube Português dos famosos "barretes" propagandeados pelos Parodiantes de Lisboa. Salvaterra de Magos era, dos nomes conhecidos, o mais bonito. Havia nele qualquer coisa de lenda e nevoeiros, de castelos enfeitiçados  a que o meu imaginário infantil juntava os três reis do presépio, para mim meio feiticeiros, senão, como é que sabiam que era aquela a estrela que deviam seguir. Olhei para o céu noites e noites - eram todas escuras, não tínhamos luz eléctrica - e as estrelas nunca me disseram nada de nada, piscavam e pronto.

E afinal, que vergonha, Salvaterra fica logo ali, já sei onde é. Quer dizer, não sei, mas já vi um bocadinho e nem achei especial. Não terei visto o melhor pedaço. A novidade dos "barretes"  faleceu e nem cheguei  a saber como eram. Parece que a fábrica ou pastelaria que os fabricava desistiu da função e não há quem tenha registo da receita. Portanto, Salvaterra - continuo a pensar que é uma beleza de nome - pregou-nos um barrete. E fora isso só uns falcões, umas qualquer coisa que não me lembro mas também eram aves de rapina, e um mocho muito mocho, de penugem arrepiada,  fixando desconfianças numa data de velhos barulhentos. Não acho as aves de rapina simpáticas, têm muito bico recurvo, olhos demasiado inquisitivos, garras do mais verdadeiro  que há. E são predadores encartados. Não consigo encontrar-lhes beleza. O único falcão que me moveu até hoje foi a Michelle Pfeiffer. 


domingo, 12 de maio de 2024

No Museu

         É incrível que me perca eu em detalhes de museu tendo à volta tanta aguerrida guerra, tanto prognóstico, diagnóstico,  elucubradas pseudosoluções, resmas de crítica exibindo fundamentos e saberes díspares, ou não fossem senão uma amálgama opinativa. Pois, mas acontece-me.

Ademais, andam as gentes augurando fins de um governo a começar, do mesmo modo que auguraram e trabalharam para o finalmente(!) do anterior. Ninguém nos serve, e parece que só o 25 de Abril conseguiu o passo em frente; no dia seguinte, análises e mais análises, e voltámos ao de sempre: a rotina briguenta entre esquerda e direita que agora é ultra, e a mim me parece outra coisa. Para que vou eu falar disto, se toda a gente fala e o diz melhor e também pior que eu, mas tenho certeza que não acrescento. Penso, aliás, que o problema é mais extenso e o mal mais entranhado, talvez mesmo irrestrito, sem retirar à bolha política a responsabilidade que lhe pertence ou devia pertencer. Se tenho esperança? No sentido em que espero sempre que melhoremos como país e como povo, sim, mantenho a esperança; mas creio ser problema pessoal, erro genético como tantos. 

Proponho antes falar da beleza das jovens retratadas, lembro por exemplo uma que se faz acompanhar de um cão tal qual o Matrix que Deus tem; neste aspecto, pendo para Aristóteles, o meu céu está cheio de cães e gatos acompanhando os donos. E bastou rever o Matrix tão alegre como carinhoso, para a jovem me surgir linda. Verifiquei também que a moda não existe nos animais, passaram séculos e aquele quadrúpede era igualinho ao meu cão, enquanto eu, felizmente, não sou obrigada à tortura que devia ser o vestuário feminino. Revi várias jovens, já as vou reconhecendo em sua pose eterna, os mesmos anéis de cabelo sem mudança, olhos ainda esperançados. Que idade teriam. O mundo do retrato pictórico ama as jovens e também senhores ou senhoras importantes, mas quase punha a cabeça no cepo, assumo que os modelos juvenis seriam mais prazerosos de pintar. Intrigou-me o retrato de certo jovem vestido de negro e de nome Marco que se fez retratar com a mão pousada sobre um livro aberto e tendo logo acima, nuazinha, a reconhecível Vénus de Milo, tão decepada como pertence. 

Dos tapetes que são pequenas e grandes maravilhas se as contarmos ao metro quadrado, digo que gostei sobretudo dos mais gastos. Quantos pés por ali avançaram e talvez que nenhum do povo, razão para me debruçar com mais interesse sobre os pequenos tapetes muçulmanos usados na oração: estão puídos no sítio onde ajoelhavam e prostravam cabeça e mãos. Terá passado por eles muita ficção orante, devaneios, planos macabros; mas também muita prece crente, muito pedido impossível, quem sabe se genuínas lágrimas (os homens também choram). 

Continuando viagem, verifico não dar pela vigilância discreta. É verdade que as luzes apontam as pinturas e o mais que é de ver, mas sou grata a que não se levantem, perturba-me se algum se ergue e vem rondar feito sombra, "estou aqui". Ali, ninguém diz que está, e é como se não esteja. Só as obras têm voz. O exercício é olhar e escutá-las. Ali é o recôndito desejado, onde o visitante satisfaz o olhar e pensa diferente e distinto em cada vez.

O remate final: admirar e perder-me em Lalique. Objectos tão delicadamente bonitos! Requinte.

Depois? Bom, depois saio e dirijo-me à entrada principal. Desço para o amplo lugar que leva a anfiteatros e bar, procuro um sofá sossegado, descanso a eficácia das pernas e devaneio. Desta vez sofri uma interrupção assaz palerma: toca o telemóvel e, de chofre, a pergunta, "em 2013 qual era o teu livro preferido, tem oito letras". Dei uma gargalhada, pois não era anedótico?!

sábado, 11 de maio de 2024

No Museu

  Depois de uma semana horribilis, um prémio. Digo que uma tarde no  museu sabe bem. Sabe sempre bem rever o Museu Gulbenkian. Uma vez por ano cumprimentamo-nos cortesmente, que o laço não dá para mais. É um silêncio de luxo e luxuoso. De luxo porque numa cidade grande, cheia de gente apressada, quase toda abotoando a pressa de estar indo a lugar imprescindível, é, além de exigência natural, uma necessidade: enfim, um sítio silencioso, pacífico e com pouca gente (entendo bem o facto de uma certa criança que desconheço e muito cito, o ter declarado "aborrecente"). Luxuoso porque todas as salas são revestidas a mármore. Cal?! É quase uma obscenidade pensá-la ali ao vivo, que nos retratos está bastante bem tirada.  Mas é que nem tinta, nas paredes há mármore e mais a sua claridade (do que minha exclamativa tia, se a visse, contaria em casa, "tão clarinho! uma pedra fina de verdade, brilha que nem espelho". E digo eu agora, o chão compõe-se de  lajes que igualam as paredes.  Ou, talvez para não cansar os olhos da clientela, também pisamos madeira envernizada que não me pareceu aquilo a que se chama, vá-se lá saber porquê, "chão flutuante", até hoje não dei por ninguém feito nenúfar. Mas pode ser que haja. Efectivamente.

Paguei nove euros por uma hora de silêncio vogando ao sabor do percurso e a reparar em pinturas, tapetes, mosaicos, loiças, peças de mobiliário e mais que não recordo. Vale a pena. A Fundação deve ter empobrecido, coitada. Ou, como acontece mundo fora, fizeram maus negócios e agora as benesses que tínhamos, foram praticamente retiradas. Antes, entrava na primeira sala do CAM e embasbacava logo ali: não pagava; podia, sempre que me apetecesse,  revê-la. Depois, esperei que tempos pela retraite porque pagaria meio bilhete, e o desconto foi de 30% (os 50%, já tinham ido à vida). Agora dão-me 10% como qualquer FNAC ou Bertrand, ou talvez ainda outras livrarias. Conclusão, a fundação está pobre. Mas, por agora, isso não interessa nada porque cirandei por lá com o mesmo gosto. E portanto vi claramente visto o rei Filipe IV, nosso terceiro a quem recambiámos a de Mântua numa delicadeza ao sexo feminino, porque o Miguel morreu de morte macaca: defenestrado, imagine-se. Estive pois reparando em pormenor o excesso de brocados e transparências rendadas que ataviavam Sua Alteza. E do que li sobre, imaginem o que me ficou: a pintura foi feita um bocado à pressa, num estúdio improvisado, porque o rei, que se encontrava a combater a revolta da Catalunha, queria por força enviar a sua pessoa em tintas e trabalho de pincel a  uma missa que se celebrava em Madrid. Lembrou-me logo S. João Bosco (sou apensa a santos e igrejas) que, estando a dar uma aula, e tendo de se ausentar, disse aos alunos "tenho de sair, mas o meu chapéu fica aqui, vejam lá o que fazem". E eles que amavam o santo -  santos são pessoas muito amoráveis -, obedeceram. 

Graças em grande parte à revolta na Catalunha, tivemos a nossa primeira revolução (1640); a missa ganhou um retrato decerto exposto em pedestal;  e o rei, que não era propriamente um adónis, preferiu essa pintura a qualquer outra das várias que Velasquez executou de sua alteza real (não ficou mais bonito que nas restantes). Sobre o tipo de pincelada, as cores, a importância do fundo, o destaque dado aos objectos de poder e demais enredos desses, pouco sei. 

Conto o resto noutro dia, ok?

domingo, 5 de maio de 2024

E o Povo, pá?!

  Um dia destes fui a Lisboa e, por sobrar tempo, passeei um bocadinho pelo jardim da Gulbenkian. Antes, por desuso de condução no caminho para a cita cidade, tinha aproveitado para me perder. Bom, não interessa. Optimista, fazia tenção de visitar o Centro de Arte Moderna. Mas eterniza-se a concretização do projecto. Portanto, vagueei sem destino fixo em lugar a gosto. Torneei a obra e notei, no sol da tarde,  a relva coalhada de pequenos grupos de jovens, braços nus, mochilas e casacos a trouxe-mouxe, a pobre relva, ai ai, ai, que isto pesa. Os restantes  sentados e de pé eram mães e avós dando aso à liberdade de suas crianças. Como o mundo da infância tudo agiganta! Os garotos que por ali brincam, hão-de lembrar um relvado sem fim e que vai encolhendo à medida que os anos correm. Fui saber o horário da última entrada no museu que aquele Filipe que é visita e nem por isso é grande coisa, não me escapa. E saí. À minha frente seguiam três turistas estrangeiros (não lhes ouvi a fala, seguiam em conversação discreta), mochila às costas, de chinelos em tudo semelhantes a vulgares chinelos de quarto. Não recordo senão outro pormenor que me fez sorrir, não só usavam meias, hábito bastante inglês, como um deles as calçava desirmanadas, um pé enfiado numa meia preta com flores vermelhas e o outro  numa de riscas azuis e cinza. Gostei de vê-los. 

Cheguei à conferência um bocadinho cedo e escondi-me num lugar que acho cómodo e discreto (animal de hábitos). Em casa tinha puxado de um caderno ao acaso (tenho um monte deles, todos de oferta e a maioria em branco) e só quando me preparei para a escrita, antes dos conferencistas, reparei que tinha algumas folhas preenchidas. E porque iniciou com atraso, estive a ler aquela espécie de diário. Diz respeito ao início da prisão domiciliária a que o covid nos conduziu. Curiosamente, não me senti tão sozinha quanto isso.  Embora dos apontamentos conste a solidão inevitável, o tópico principal são os pesadelos, a falta de sono e de liberdade. Que o covid arda num inferno qualquer é o que lhe desejo. 

A conferência versava o 25 de Abril, o dia inicial inteiro e limpo que Sophia cantou. Jaime Nogueira Pinto não é a pessoa mais entusiasta a falar do tema (foi para a Suíça em visita a amigos). Podia não me ter deslocado para o ouvir. Mas acontece que, para além da visão política que tem e repudio, é pessoa que sabe entrelaçar os assuntos, sabe ser objectivo em relação a vários temas de política internacional.  Pensava eu que saberia sê-lo também no tema em análise. Desilusão. Tanta que estive quase. quase, a intervir no momento em que, para falar da fraca disparidade salarial no tempo do salazarismo, começou nos bancários e terminou nos banqueiros, achando que a discrepância nem era assaz grande. Assombra-me que esta gente que se diz remediada e é mais que isso, que tanto lê e sabe, esqueça o povo. É como se não exista para a história. Mas na história do 25 de Abril ele foi essencial, como é que uma mente esclarecida esquece isso?! Só me apetecia perguntar, e o povo, pá?! Mas este é apenas um exemplo. Não se ouviu falar dos pobres, dos que não tinham dinheiro para pôr nos bancos porque lhes faltava para comer e que eram a esmagadora maioria. Todas as belas têm um senão. Bati de frente com ele.