domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ana Luísa Amaral


Já o disse - se o não dissera, prestes se adivinharia -, senti imediata empatia por Ana Luísa Amaral. A sua intervenção em vídeoconferência no Curso da Capela do Rato versaria sobre Ágora, última obra da escritora. Não digo que não tenha versado, a autora também leu e discutiu poemas do livro. E gostei deles com o agrado que adquiri na “Vida Breve – o som que os versos fazem ao abrir” (este título está demais, não é). Mas foi muito além. O muito além comporta o que a mim interessa e poderá não interessar outrem, tem presente a pessoa por detrás do escrito e agradece poder observar-lhe a evolução do pensamento. Ana Luísa não se apresentou com texto pronto e pensamento prévio, foi fluindo, construindo-se à vista de todos. Essa, a verdadeira e integral beleza. E coragem. É indubitável, vê-la e ouvi-la traz benefício. A sua vitalidade cultural e inteireza ética deliciam, dá gosto passear-lhe os entremeios do pensamento, assistir-lhe o discorrer. Sapiente e de hábil palavra, não tira o avental de ser comum, a Emily Dickinson ladra-lhe próximo, acena verbalmente a uma Dona Isabel desconhecida, conta uma anedota do papa e não esquece as carnes frias que comeu, algures em Itália, na companhia de Tolentino Mendonça (sem pecado, garantia de Tolentino). E estes pequenos nadas são-me caros e reveladores de que o verdadeiro uno é sempre múltiplo e caleidoscópico.

Da intervenção podemos retirar largo feixe de ideias. Deixo apenas algumas, as que me agarraram. Quem queira outras, vê e ouve, há muito por onde. Uma ideia com interesse é a da verdade na poesia, asserção que Ana Luísa defende com o verso de Pessoa “O poeta é um fingidor” afirmando que a verdade - ou a sua aproximação máxima - está sempre no poema, o fingidor não é um mentiroso, fingir e mentir não são sinónimos. Outro lado que nos move e que a Poeta frisou na Prece do Mediterrâneo, poema que leu e comentou, é o verso “em vez de peixes dai-nos a paz”, escrito a pensar nos refugiados que chegam por mar e nos mortos que o imenso azul guarda. Essa gente que arrisca não pede o milagre da multiplicação de pães e peixes, querem e têm direito a muito mais. Escurece-nos a sombra hedionda de quem encontra a morte buscando salvação. E que incómodos os sem abrigo, vidas iguais às nossas, subitamente embarcadas em viagem de que raro há regresso e que aumentam a cada dia; o desemprego e consequente endividamento, aí estão a empurrá-los para o túnel. Na contraface, a frase tomada a um poeta “todas as coisas são paisagens estrangeiras” reiterando que o ter não pertence à essência  humana e o consumismo só nos derrota. Tudo que nos rodeia é estrangeiro. E, a finalizar, a sua fé inabalável, o sentido que eu diria quase hegeliano da história, ou até espinosista em relação ao mundo: a noção de que o mundo, dê as voltas que dê, caminha  para uma espécie de harmonia. Depois, a que é a sua máxima e de que sou gémea, “acredito que as ondas de amor se reproduzem”.

 Deixo-vos com uma expressão de Guilherme de Aquitânia (poeta do séc. XII) que Ana  Luísa citou quase no início e é florinha silvestre dizendo a  inteira beleza da poesia, “Farei um verso de puro nada”.   

 Penso eu de que.

Nota: a sessão teve um mediador discreto; por convite  seu nos surgiu Ana Luísa. Um GRANDE bem haja.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Um Clic

 

Ainda não alumiei o Curso da capela do Rato que este ano se chama “Caminhos cruzados - Filosofia, Literatura e Espiritualidade” (não gosto nadinha deste nome, mas enfim). Como sempre, é coordenado pela professora Luísa Ribeiro Ferreira e este ano chega aos interessados por vídeo conferência. Bom, se não falei dele é que me interessa muito menos. O Curso nem tem qualquer responsabilidade, segue a linha dos anteriores. Acontece que as sessões presenciais davam azo a sair do buraco e começavam-me de véspera, com os preparativos para vinte e quatro horas em Lisboa. Vinte e quatro horas de tempo suspenso. Pois é, não faço por menos, para sessões com duração de hora e meia – sensivelmente - preciso de uma rotação completa da Terra. Aí valente! Quem vive na província e tem a sorte muito particular de ter quarto na capital, aproveita tudo. Dedico os fins de tarde ao curso, é evidente. Se me desloco de comboio, por sorte minha, tenho de apanhar o da manhã; olha o mal que me calha😊. Levando carro, sigo depois de almoço. Tudo mais ou menos vagaroso. Bom, entre alguns trabalhos que sempre me esperam em Lisboa e que é claro não contam, há o curso; as colegas com quem estou uns dez a vinte minutos, dependendo da prontidão do metro; a conversa amena ao jantar e serão com troca de impressões sobre séries e filmes vistos durante a semana, uma música ou outra posta a tocar para aferir do meu gosto e ma dar a conhecer; e há filmes em espera, “vê, vais gostar”, mimos que comovem qualquer. Bom, é verdade que penso muitas vezes em sair do curso e ir directa para o cinema, mas só acontece quando Abril ou Maio já se deleitam pelos dias e as noites apetecem. E apenas se o filme se impõe com a força de um dever (é facto, sou kantiana). No meio disto, ficam-me umas horitas livres que aproveito para compras ou só para passar por ruas e montras com o redondo vagar e enlevo de meus olhos camponeses. Por vezes, espreito a Gulbenkian. Vou por uma exposição ou apenas para desfrutar. Satisfaz-me a harmonia de todo aquele verde bem tratado, a altura das árvores medida em simbiose tão plena  de raízes e terra que parece originária. Não me canso de ser grata a Calouste Gulbenkian pelo amor a Portugal, com tradução  na fortuna legada. Os milhões de pessoas que essa personalidade fez e continua a fazer felizes.

Ora pois eu vinha falar acerca de uma conferencista que, como diz o povo, me encheu as medidas. Foi. Ela é a causa única de estar eu a teclar assomando a esta fresta para contar de um curso que ocorria numa capela e do qual saíamos geladíssimos, mas muito presentes e acordados de mente (viva!). Agora, em nossas casas, estamos ao quente, é familiar e, para mim só, deveio morno. Eis senão quando, de repente, reluziu Ana Luísa Amaral, uma poeta que eu conhecia de “A Vida Breve - o som que os versos fazem ao abrir”. Talvez tenda para a heresia  no que concerne os devotos de Tolentino, mas a poeta foi o meu momento sensação, um clic. Podem vir  a existir conferencistas que se equiparem. Mas, até hoje - excluindo a última sessão que não assisti - ,  Ana Luísa segue na frente. Destacada. Para mim. Senhora de inspiradas simpatias.

Ana Luísa Amaral merece postal  todo seu. Fica para a próxima. Tenham paciência.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Ritual

 

É verdade que caminho de 2ª a 6ª. Como um trabalho (é um trabalho). Também é verdade que retiro benefício, são horas na mesma posição e, mexer-me sentindo o fresco da rua, é salutar. Mas não é menos verdade que o incentivo é um certo trio. Ainda assim, todos os dias penso em fazer gazeta. Porque, já se sabe, me sento na cama a murmurar o estribilho costumeiro, tomara a noite para me deitar. Bom, também é verdade que mal saio o portão e me bate uma aragem, ganho novo fôlego, o sem vontade regride e sigo a renascer. Sei a hora de passeio de certo cão que é claro já me conhece e se queda a abanar a cauda enquanto o dono me dá os bons dias, por vezes, entretecidos de comentário meteorológico. De seguida, cumprimento o trabalhador que espera boleia na porta de casa. Faltam-me  os olhos de azeitona preta, mãos nos bolsos, a executar sprints numa roda só, em equilíbrios de bom humor. Faltam-me mesmo. Quem sabe, o garoto ainda dorme quando passo no nosso lugar de encontro. Talvez esteja mais descansado com aulas por vídeo conferência, mas está de certeza mais triste, que aqueles olhos são de companhia. Lá à frente, um automóvel parado e um condutor paciente que aguarda o colega de trabalho. Saem antes que eu cruze o veículo. Nunca os vi senão à luz da minha miopia em estado puro, umas sombras desfocadas, portanto. Imagino que trabalhem noutra cidade e vão conversando, o rádio ligado a espalhar sono (será a smooth? Não me parece). Depois do cruzamento, numa vivenda de beira de estrada, um condutor solitário apressa-se a abrir a cancela e sai em aceleração. Sobressai-lhe a fixidez imperativa de quem gastou todos os minutos livres e tem horário a cumprir. Vou seguindo a estrada silente, frontal a casas ainda preguiçosas e de olhos fechados, o balido manso das ovelhas que retoiçam na encosta, a sintonizar.  Não há vivalma. Faço a curva onde as ervas inclinam e confraternizam com flores que a ternura das mulheres planta até ao alcatrão. Por vezes, lobrigo ao longe o que penso ser o senhor Zé porque me parece ver duas manchas escuras a rodeá-lo. Estugo o passo. E em breve as distingo, reboludas, correndo aqui e ali. Logo, logo, oiço os incentivos, olha além, ó Violeta, olha. Atravesso para o lado em que flanam e abro os braços. É o sinal. Violeta que oscilava naquela de, é, não é - tem 56 anos, já é pitosga e a franja crescida não ajuda -, dava uma corridinha e parava, reconhece-me. E desengalga qual lebre. Procedemos ao arraial privado de festas e lambidelas. E vamos ao encontro dos dois que a velhice atrasa. A Lili vem até mim e atezana o ciúme da Violeta que se atravessa na frente da irmã a impedir-lhe o toque. O senhor Zé pára a arfar, a vara de tocá-las apoiada no chão. Tanto lhe custa andar e não usa bengala ou pau que lhe dê apoio. E diz invariável, “mal dobram a curva, logo os olhos delas a um lado e a outro à procura”. Sorrio. Talvez a Violeta. Ou nem ela. Que a Lili, 91 anos, olhos esbranquiçados, está quase cega pelas cataratas. E as mãos entretêm-se a mimá-las, afasto os pêlos sujos dos olhos e solto o riso de cada vez que se sacodem. Somos felizes. O velhote em murmúrio difícil, “ a ver se o tempo aquece para irem à tosquia, já nem vêem”. Ó coração, tu só vês o que queres. Bendito sejas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Nó Cego

 

Os tempos vão agrestes. A pandemia fez ruir os planos do mundo. Algumas pessoas adaptaram-se menos mal; outras adoeceram e, dessas, há as que morreram; a maioria teme o incerto futuro. Imagino que haja medo solto, receio e preces, eu não, eu não, por favor, eu não. Ou, precisando a circunstância, eu e os meus, não; por favor, nós não.

Por qualquer razão, e ainda que me abundem defeitos de maior importância, falta-me medo. Do mesmo modo que me falta ciúme ou inveja. Mas há um dado nas análises feitas – e são tantas que enjoam e desapetece falar delas – que não entendo. Vejamos: se algum incauto ousa dizer qualquer coisa como “só desejo voltar ao normal”, cai o carmo e a trindade sobre o pobre. Voltar ao normal?! Mas qual normal?! Isso é impossível, nunca mais voltaremos a antes, esse mundo está morto. Enterrado. E tal. E tal. E a impossibilidade é apresentada com exemplos conclusivos, asserções científicas que consideram extinta a normalidade antiga. Ora, depois destes, vêm os sapientes apologistas do “novo normal”. Entenda-se por “novo normal” o tempo que vivemos. Ou seja, a hodierna pandemia e mais a panóplia de receios, morte e doença, contágios, testes, braços a serem picados até à exaustão (já todos sabemos vacinar, isso é certo). Novo normal?! Estão malucos. Moeu-se-lhes a rosca. Mas há alguma normalidade neste quotidiano?! Com franqueza. Não é preciso ser grande esperteza para saber que esta aberração que nos caiu em cima de normal não tem nada. E ponto.

Acabei? Nem por isso. Falta-me posicionar, sou acérrima defensora de todos os que esperam um regresso à normalidade. À antiga normalidade? A essa mesma. Porque, digam-me vocês se sabem pensar outra. Sejam honestos, quando pensamos em normalidade, em que pensamos senão na nossa vida de antes da pandemia? Pois se nunca tivemos outra…em que havemos de pensar senão nela? E a nossa esperança não é que, em geral, a vida volte a correr como então?

Bom, é verdade que há uma terceira categoria de opinadores e sábios, os que advogam muito seguros de si que, no futuro, nada vai ser como antes. Outra falácia. Ó meus amigos, tenham dó, nada será como antes? Mas que parvidade é esta? Querem-nos arrasar de vez? Para que raio queremos nós uma vida em que nada é como antes, se tudo o que desejamos é encontrar o antes nas pequenas coisas e nem temos categorias mentais para pensar diferente. O que nós queremos de volta e sem retrocesso são as nossas pequenas liberdades. Não é pedir muito. É?

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Prenúncio

 

O sol rompeu e inundou. E, num repente, logo a vida emproa e bate o pé, estou aqui. Acredito que as árvores não sejam mais verdes, mas perpassa nas folhas um brilho satisfeito e há uns ameaços em botão num canteiro esfrangalhado pela invernia. A terra parece tomada de pressas e multiplica-se em aprumado contentamento vegetal feito ervas e musgo.  Junto à base do estendal, desponta um terno renque de virginais folhinhas verdes que, ano após ano, teima em fazer casa e vai dar à luz, talvez em semanas, doces floritas azuis, tão delicadas e perfeitas no seu recato silvestre que adoecem as meninas dos olhos e afastam o peso bruto dos pés. E há a delicadeza de asas fúcsia a nascer na magnólia que desperta mansamente. Rasando a rede de ramos finos que maravilha o inverno, brotam asas coloridas em forma de flor e sonho que um dia levanta voo do canteiro e lá vai ela céu fora, linda e leve, levada por essa redonda nuvem rosa. Escondida de olhares inconvenientes, a cameleira, qual mãe exausta e envelhecida de encargos, desmancha em denso manto florido, braços e olhos no chão, desculpando-se pelo tronco que se não vê, este ano foi demais; é que não me aguento com tanta menina ao colo, pesam como chumbo. E oferece às abelhas um caramanchão de flores rosadas. Os borbotões da natureza são lindos de verdade. Concebo que a natureza de homens e plantas se assemelhe, nascem-lhe por vezes seres de intensa fragilidade, mas inexplicavelmente imoderados. Quem sabe se, prevendo o fim e a escassez, não se atravessam a viver tudo com mais força. Há gente assim, inquieta, possuída por curiosidade e alegria borbulhante, vigorosa e disponível ao exagero, cheia de ideias, amigos e projectos. Trajectórias de cometa. Ignoram o tempo a encurtar, mas vibra-lhes o desejo de vida acesa, ardem.

E nada disto os pássaros sabem. Os pássaros só cantam pelas ramadas, inconscientes de si e da alegria que provocam. Abençoados.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Confidências

 

Conheci-te numa cidade do coração alentejano. Frequentavas o ano anterior ao meu e não nos hospedávamos na mesma casa. Mas, aos domingos, almoçávamos juntas. Mais jovem que eu, olhos acolhedores, vivias em alegria terna e buliçosa, um cachorrinho travesso ladeando a sisudez da mana sénior, do meu ano e idade mas que não me entusiasmava. Por destino aziago e benesses de que serei eterna devedora, “Deus quando fecha uma porta abre sempre uma janela” (Julie Andrews, Música no Coração), o ano seguinte juntou-nos na mesma residência. E a maravilha desse ano foi a nossa amizade. Falavas-me da aldeia perto da Guarda e dos bailes a reunirem rapazes e raparigas (por vezes trazias prova fotográfica), e do maior castanheiro de Portugal, de trabalhos na terra que me pareciam folguice  divergente das ordens gritadas por meu pai,  uma propedêutica de pregões à minha inépcia que o arrepanhava de desgosto por lhe ter nascido uma arvéola do género feminino, facto que muito o perturbou - no momento e ao longo da vida - e que, após três raparigas de enfiada, degenerou em  trauma. Ignoro o que te contava eu, mas devem ter sido pormenores desta ambígua natureza. Embora fosse tarefa que abominava,  comprazia-me bastante revê-la à distância e imitá-lo a esganiçar-se colérico quando, antes de o sol nascer, regávamos (eu e ele) as laranjeiras. Na altura de contar, o que antes me fazia chorar precipitava-me em riso e toda eu era teatro que tu gostavas de ouvir e observar e chegavas a pedir que repetisse. Éramos felizes, sim. E conscientes de sê-lo.

Hás-de desculpar, mas sentia alguma inveja da tua família comprida e encadeada, um papá e uma mamã que os filhos adoravam. Dos teus relatos familiares emanava um todo harmonioso que me parecia romanesco, a lembrar as obras de Júlio Dinis. No meu imaginário, vocês viviam de mãos dadas. Sempre. Portanto, ansiava os finais de férias para te rever e matar saudades (só visitavas a casa nas férias), mas também para saber novas: da tua aldeia onde acontecia tanta coisa, do papá e da mamã, dos manos mais novos, da roupa nova de que te orgulhavas e corrias a vestir para me ouvires dizer, “tão bonita,  fica-te a matar”. Trouxeste então um casaco comprido, maxi, que te dava um ar senhoril e emancipado que adorei. Mas, vê tu, o meu encanto babava quando esmiuçavas o dia de compras. Ias com tua mãe e uma ou outra irmã, por vezes umaprima. Estavam um dia na Guarda a compras, entravam na Sé, iam sentar-se na pastelaria, escolhiam tecidos para fazer as saias que mostravas, passeavam. Que mundo outro. Desvaneciam-me as histórias que contavas e onde entravam primas e primos de que apenas sabia o nome, mas me pareciam velhos conhecidos. Sobretudo as férias de Natal eram pródigas em acontecimentos. E depois, tua mãe era jeitosa de mãos e fazia-vos, em tricot e também em crochet, uns chapelinhos assaz cobiçados por mim e que nunca ousei sequer pedir-te para experimentar embora toda eu carcomisse nos infindos meandros do desejo. Cheguei a sonhar que ela me faria um.

Foste a minha janela aberta quando Deus (ou a vida) me fechou portas. Porque o teu coração me adivinhava a tristeza e nunca esquecerei a tua rotina madrugadora. Corrias escada acima, abrias a porta do meu quarto e perguntavas em ânsia, hoje dormiste? Diz que sim. E depois abraçavas-me, vais ver que hoje dormes, tenho a certeza, sei. E abraçavas-me sorridente, veste-te para irmos juntas para a escola. E sim, foste o meu anjo da guarda quando outro não tinha. Ainda és um bocadinho. No último desvario, sem que lhe soubesses a extensão, compraste cremes, perfume… adivinhaste os pequenos nadas a que eu não chegava; na cirurgia do filho estivemos juntas na primeira visita. Contudo, visitas-me tão pouco. Mas continuamos a reencontrar-nos sem tempo nem distância. Além do enorme prazer mútuo em dias que são nossos, as horas galopando feitas tontas, há os filmes que vemos juntas, as compras e as montras, a conversa sem fim,  a comunhão de reflexões sérias de um para um. Mas o melhor é esta inexplicável afinidade que nos faz parecer termos vindo juntas do dia anterior. Que sintonia encantadora.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

De Ti, dos Livros e Outras Coisas

 

Nunca vou entender essa outra ordem em que habitas. Se fora um mundo, não resistirias à saudade e virias espreitar-nos. Seguro e indubitável.

Serias hoje uma velhinha. Tão bonito que o fosses, o rosto em alva moldura, apagando as velas do teu bolo (nem uma vez te fiz um bolo de anos). Talvez trôpega e sem fôlego, quem sabe não seríamos nós quatro a ajudar-te; e mais os netos que não sabes mas existem. E todos a cantarmos parabéns como nunca te cantámos (por que motivo não tos cantei, eu que passava o tempo em cantorias). Necessitavas óculos para ler, e não ias dar conta dos romances que te choviam no colo. Gostarias dos que leio, será que líamos os mesmos e tagarelávamos sobre eles? Formámo-nos quase em simultâneo nos Corín Tellado das tias. E depois eu andei em frente, mercê das carrinhas da Gulbenkian, a treinar educação sem mestre. Horas esquecidas a ler. Mas, para que os lesse eu, tinhas tu de te desdobrar em canseira e ouvir ralhar (ouvíamos as duas). E não ler. Em poucos anos te gastaste inteira e me protegeste de quem me proibia livros. De ti, herdei o gosto; e muito suaste o meu tempo de leitura. Há bens impagáveis, dádivas que encantam e maravilham. Pensando bem, sou a mesma sempre, talvez me conhecesses ainda. Em casa, o meu rasto faz-se de livros.

Calcula tu bem, tenho ainda saudade ao corte da franja. Eu de olhos fechados, “está quietinha” e tu, tesoura ferrugenta na mão direita,  o pente molhado a assentar o cabelo, na esquerda. E depois o corte difícil e mastigado, trrr, trrr, trrr, o metal deslizando de uma ponta à outra da testa e o desabafo, “que cabelo este, até foge da tesoura”. No final, “não abras os olhos”, e sopravas. Depois ia ao espelho e desgostava, “ó mãe está aqui um bocado mais curto, pareço uma maluquinha”. E tu sem me olhares, a lavar e limpar a tesoura, justificando, “dizes sempre o mesmo, mas é do arrepio”.

 Aos dezassete, existiu-me uma curta pausa em que persisti e a franja cresceu. Tu a afastares o cabelo do rosto, “nem se vê a cara, põe ao menos uma bandelete”. E olha, talvez nem tenhas reparado, (ainda viste? Vês?), mas logo, logo, voltei à franja. E, quem sabe se por causa tua, amo bandeletes, fitas, atilhos e elásticos, tudo que me liberte o rosto. E corto a franja ao espelho. Como tens razão, o arrepio estraga-me a linha do horizonte😊.

 

Confidências

 

Que posso dizer-te senão que tenho saudades nossas em cada vez que te vejo ou penso em ti.  Ver-te não as consome nem resolve, são saudades do que fomos e se perdeu no curso dos anos. Pergunto-me se tudo se resume ao meu egoísmo possessivo, o que em ti prefiro está por força no passado.  Juvenil, eras inteira e minha no completo e  inesgotável tempo em que te repartias apenas pelos amigos.  Sei hoje, inteiramente, o teu ser de raiz fasciculada e cheia de ramificações que, a dada altura, me encontrou. Cada uma de nós seguiu seu caminho. Eu, prossegui a sobrevivência de afundamento; tu, pela mesma razão, exploraste o circundante tecendo laços. Nunca afundarás como eu. Jamais conseguirei relações como tu. Somos, por necessidade vital, dois opostos que se procuram. Estou segura que, lá em cima, há ainda um fascículo de raiz a ligar-nos. Pouco dela nos alimenta. Mas, acredita, é sempre um prazer rever-te palavrosa e activa, cheia de projectos, contactos, tarefas. Suponho que, como toda a gente, tenhas teus momentos de nostalgia e desalento. És vivacidade resolvida a pragmatismo e alegria  natural. Conquistaste carácter que muito se adequa à natureza que te pertence. E o mesmo aconteceu comigo. Expectável. Afinal, tudo se desenvolve segundo a sua natureza e não fomos (somos) capazes de hábil divergir. Talvez seja isto que em nós me desilude.

Mas sei de fonte segura que, ainda assim, somos amigas. Sempre.

sábado, 6 de fevereiro de 2021

David Copperfield

 

Comecei a leitura de David Copperfield. Mas o meu encontro com a obra é bem mais antigo, teria uns catorze anos, quando, no livro de leitura de inglês, contactei com alguns extractos. Bom, falando verdade, por mania de avançar nos textos do livro, apresentei-me a David Copperfield antes do dia em que nos calhou por lição. E caí de quatro pela história. Então, munida de paciência e muita esperança, folheei o livro página a página, em busca da continuação. Mas, além dos textos em sequência, nada mais havia. Nessa altura, já a professora nos tinha pedido que lêssemos “As Mulherzinhas” que eu adorara e a cuja primeira leitura, sem recurso a dicionário e feita quase de um fôlego, sucumbi de simpatias pela pequena Beth e por Laurie que me parecia angélico e divertido como nenhum rapaz de carne e osso que eu conhecia, pelo que fiquei muitíssimo inclinada para ele e a pensar que os jovens abastados e ingleses eram deveras interessantes. Entendi o eixo da história, mas só na segunda volta e com recurso ao dicionário, integrei detalhes, dos quais me lembro que julguei o final do livro um tanto apressado por guindar um personagem mais que secundário à honra de fechar o livro com a Jo. Dado o entusiasmo e sucesso desta primeira experiência de leitura em inglês, ganhei coragem e, na segunda e última aula sobre David Copperfield, perguntei à professora por que razão não nos dava também esse livro a ler. Ela respondeu que não podia e tive de engolir o desejo de saber mais; nesse tempo, retorquir a um professor  raiava a má educação. Portanto, ainda hoje me espicaça a curiosidade de saber o que terá acontecido ao pequeno David que, soube dos textos em inglês, era órfão, pobre e um bocado maltratado por alguém (um patrão, um padrasto…) de que já não recordo nome ou função. Tais injustiças ficaram-me cá dentro a fermentar e este ano resolvi – finalmente – comprar a obra na Feira do Livro. Para já, digo que, da curiosidade ingente da adolescência me sobrou apenas uma réstia amadurecida e quase podre, os sentires humanos, por pura necessidade vital, também se cansam e suspendem. Portanto, fui lendo outras coisas, certa de que este livro me pertence e o percorro quando queira. É certo, detesto prefácios. Em geral, encontram-se eivados de encómios ao autor, muitos fazem extensa e intelectual análise à obra o que, antes de conhecê-la o leitor, me parece liberdade indevida e por vezes mesmo incompreensível, facto que me deixa perplexa e antevendo que, nos elaborados e científicos elogios que tece, o prefaciante pretende para si o enfoque, . Portanto, preparava-me para passar à frente, quando reparei que não só o prefácio à primeira edição  era bastante sucinto, como assinado pelo próprio Charles Dickens. Arrepiei caminho. Em boa hora. Conta o autor que andou dois anos a conviver com as personagens e é com tristeza que delas se despede. Galvanizou-me aquele prefácio simples, curto e eficaz na sua quase melancólica apresentação. Hei-de ver se o livro é como dizem: bastante auto biográfico (afirmação da professora de inglês que mais me aguçou a piedade curiosa). Digo-vos que li duas ou três páginas - a história inicia com o nascimento de David a personagem que escreve – mas estou encantada com a extensão (756 páginas) e o peso (um quilo de escrita em papel fino). São páginas quase em papel bíblia, mas parece-me escrita preciosa, insinuada de subtilezas humorosas. Há pois um quilo de esperança à minha espera. Em casa. Um imenso de dias. Por sorte.  

Nota:  entretanto, entendi a recusa da professora de inglês. Mais vale tarde que nunca.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Em Roda Livre

 

Tempos houve em que a noite me chamava à escrita e ao trabalho. A casa sossegada, tudo adormecido, podia, enfim, preparar calmamente o dia seguinte. Mas os dias eram roda viva; o ganha pão; a distracção; a vida ao centímetro e com os outros, repleta de horas vedadas. À noite, deitava o corpo e sentia que, se o cansaço tivera peso, daria conta da cama. Imaginava o baque do colchão a aterrar, um emaranhado de tábuas em desconchavo, parafusos que tilintavam  a desapertar de surpresa, mas que é isto, já dormíamos. E adormecia alijando os infundados receios.

Desde sempre me intriga essa ingente necessidade de dormir, atordoa-me a morte provisória e fingida, condição necessária da harmonia humana. E lembra-me o poeta de que nem fixei nome, e que salientou tão melhor que eu, “vivemos rodeados de sono”. Vezes sem conta, imagino que um ser inteligente vindo de outra galáxia aterra a hora imprópria em cidade ou vila adormecida. Que pensará de nós, assim quietos e horizontais, enfiados em roupa. Indefesos. Belas adormecidas por umas horas. Diariamente.  Sem bruxa nem maçã, o príncipe substituído por um relógio digital que não beija, não afaga, nem estende o galante amparo da mão, como no filme de Walt Disney. Mas, nesta insana espera, entre mortes e vacinas que não chegam, gestos magnânimos e peitudas alarvices de gente pequena que se faz menor, abro a janela do quarto e, no cimo da magnólia, quase, quase, ao alcance da mão, há uns álacres biquinhos de flor a despontar. Alguns não sacudiram ainda os restos do casulo que os encapsulou, mas um ou outro ergue-se já em avidez vital. Amo de raiz esta magnólia que escolhi há um ror de tempo sem lhe saber nome. Sou responsável por ela, fiz questão em comprá-la apesar do preço. A magnólia é o meu pedaço de sonho plantado num canteiro, que os sonhos só nos alimentam se crescem. Acompanha-me as voltas, mira-me em dias alegres e nos outros. Sei-a de cor em todas as estações e conheço-a de cabeça. Resumindo, pertencemo-nos sem conversa. Virginais, os rebentos de flor concentram ainda toda a pureza da cor, pétalas firmemente apertadas que não sei como cabem naquele molhinho diminuto as esguias flores que parecem esvoaçar-lhe a partir dos troncos. Sobe-me uma ternura e apetece-me abraçá-la, tanto cresceu. Bem sei que não cresce por mim nem para mim, mas não custa pensar que o que mais deseja é chegar à minha janela. Encanta-me esta ideia. E quem é que pode negar que não é  o que ela quer com o corpo todo, desde a mais funda raiz.