Já o disse - se o não dissera, prestes se adivinharia -, senti imediata empatia por
Ana Luísa Amaral. A sua intervenção em vídeoconferência no Curso da Capela do
Rato versaria sobre Ágora, última obra da escritora. Não digo que não tenha versado,
a autora também leu e discutiu poemas do livro. E gostei deles com o agrado que
adquiri na “Vida Breve – o som que os versos fazem ao abrir” (este título está
demais, não é). Mas foi muito além. O muito além comporta o que a mim interessa
e poderá não interessar outrem, tem presente a pessoa por detrás do escrito e agradece
poder observar-lhe a evolução do pensamento. Ana Luísa não se apresentou com
texto pronto e pensamento prévio, foi fluindo, construindo-se à vista de todos.
Essa, a verdadeira e integral beleza. E coragem. É indubitável, vê-la e ouvi-la traz
benefício. A sua vitalidade cultural e inteireza ética deliciam, dá gosto passear-lhe
os entremeios do pensamento, assistir-lhe o discorrer. Sapiente e de hábil palavra,
não tira o avental de ser comum, a Emily Dickinson ladra-lhe próximo, acena
verbalmente a uma Dona Isabel desconhecida, conta uma anedota do papa e não
esquece as carnes frias que comeu, algures em Itália, na companhia de Tolentino
Mendonça (sem pecado, garantia de Tolentino). E estes pequenos nadas são-me
caros e reveladores de que o verdadeiro uno é sempre múltiplo e caleidoscópico.
Da
intervenção podemos retirar largo feixe de ideias. Deixo apenas algumas, as que
me agarraram. Quem queira outras, vê e ouve, há muito por onde. Uma ideia com
interesse é a da verdade na poesia, asserção que Ana Luísa defende com o verso
de Pessoa “O poeta é um fingidor” afirmando que a verdade - ou a sua aproximação máxima - está sempre no
poema, o fingidor não é um mentiroso, fingir e mentir não são sinónimos. Outro
lado que nos move e que a Poeta frisou na Prece do Mediterrâneo, poema que leu
e comentou, é o verso “em vez de peixes dai-nos a paz”, escrito a pensar nos
refugiados que chegam por mar e nos mortos que o imenso azul guarda. Essa gente
que arrisca não pede o milagre da multiplicação de pães e peixes, querem e têm
direito a muito mais. Escurece-nos a sombra hedionda de quem encontra a
morte buscando salvação. E que incómodos os sem
abrigo, vidas iguais às nossas, subitamente embarcadas em viagem de que raro há regresso e
que aumentam a cada dia; o desemprego e consequente endividamento, aí
estão a empurrá-los para o túnel. Na contraface, a frase tomada a um poeta “todas as coisas
são paisagens estrangeiras” reiterando que o ter não pertence à essência humana e o consumismo só nos derrota. Tudo
que nos rodeia é estrangeiro. E, a finalizar, a sua fé inabalável, o sentido
que eu diria quase hegeliano da história, ou até espinosista em relação ao
mundo: a noção de que o mundo, dê as voltas que dê, caminha para uma
espécie de harmonia. Depois, a que é a sua máxima e de que sou gémea, “acredito
que as ondas de amor se reproduzem”.
Deixo-vos com uma expressão de Guilherme de Aquitânia (poeta do séc. XII) que Ana Luísa citou quase no início e é florinha silvestre dizendo a inteira beleza da poesia, “Farei um verso de puro nada”.
Penso eu de que.
Nota: a sessão teve um mediador discreto; por convite seu nos surgiu Ana Luísa. Um GRANDE bem haja.