terça-feira, 30 de maio de 2023

Vidas

 

O colégio também não alimentou a nossa relação. Por altura dos exames, o temor do chumbo era polvo de mil braços assolando a mente paterna e logo meu pai desembainhava a preparação psicológica: gritava quanto podia, perdigotos a torto e a direito, e ameaçava pôr-me no trabalho do campo; isto além da sova que estava sempre na mira e que, em algumas vezes, estive quase, quase, a levar por via de, incautamente, chegar eu a admitir a hipótese de não saltar o barranco. Entretanto, desunhava-me a chorar. Acresce que, anualmente, me negava a entrada no colégio. A época das matrículas era banhada a ranho e lágrimas descompadecidas.  Depois de muito instado e de meu tio - minha mãe socorria-se do irmão - gastar todo o latim na apologia dos meus estudos;  depois de eu entristecer até perder de vista, assistindo dia a dia ao desfiar da época de matrículas; no último dia, a omnipotência divina condescendia.  E nunca esquecerei os mais tristes meses da nossa vida. De Julho a Outubro, entre o quarto e o quinto ano. Nesse ano comi por tabela, estava firmemente decidido: não estudava mais. As vinganças adultas esmeram-se no terrível.

Contudo, houve momentos em que nos aproximámos. A primeira vez que lhe notei preocupação, encontrava-me já nos braços de doença ainda incógnita e tentava chegar à paragem de autocarro. Abandonada de forças, arrastava-me caminho fora. Teria má cara. Meu pai cruzou-se comigo, afrouxou, fez inversão de marcha e, “anda, sobe”. Levou-me à paragem e arrancou. Quis agradecer, mas, de tão delida, a voz colapsou. E não, não era comoção. Tampouco era a constipação que a medicina decretara. Nada dissemos um ao outro, mas ainda hoje lhe sou grata.

Diz-se que o tempo tudo cura. Não será exactíssimo. Mas, à medida que os anos correm e a vida muda - impiedosa e sem nos fazer caso -, criamos novos entendimentos e são eles quem nos apazigua.

Meu pai é a única raiz que temos, raridade que insiste em não ser pedra no sapato dos filhos. Continua independente e laborioso. O de sempre: boa cabeça, mau génio e maus fígados. Mas tão honesto e unhas de fome como sempre foi. Em mim, há muito que a estranheza e má vontade deram lugar à ternura. Estou ciente dos limites, mas não concebo o monte sem ele.

Fez hoje 90 anos. Teve-nos a todos a seu lado. Estava feliz.

 

 

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Vidas

 

Quando procuro no passado os momentos em que fui mais próxima de meu pai, não se me oferecem problemas de escolha. Criança pequena, temia-o e chorava de cada vez que tentava pegar-me no colo. Dada a desigualdade de forças, não conseguia escapar-lhe. Corria sem êxito para as pernas de minha mãe, mas, no caminho, era interceptada a contragosto, positivamente arrancada do chão e içada sem jeito e com uma dureza que a mim parecia provir de força descomunal. Ficava apertada contra o seu peito duro, cingida por braço de ferro e aspirava-lhe o cheiro acre tão diverso do suor adocicado de minha mãe. Eu sempre lamurienta e chorosa, a espernear quanto podia.

Se acontecia meu pai ficar fora durante a semana de trabalho,  vivia no céu; tinha ao redor um mundo ameno e imperturbável que me triplicava  a vontade de brincar na rua sem o espectro do seu regresso. Era feliz no pequeno mundo onde cabiam meus primos, a minha primeira grande amiga e a sombra de minha mãe. Creio que o esquecia completamente. Esvaída a imagem de meu pai, mergulhava na infância a todo o vapor.

A escola primária não nos aproximou. Mau pedagogo, sempre que, em exercício propedêutico, tentava ensinar-me alguma coisa, eu emburrecia de modo e maneira tal que breve desesperava e me vaticinava, em alta gritaria, que seria pior que x ou y, gente que não conseguira completar a primária. É claro que eu desconhecia esses garotos, então já a mourejar nos campos; está visto que não fazia ideia nenhuma do que fosse  “ir para a escola”; e também é certo que o assunto não me interessava minimamente. Eu gostava era de explorar coisas e lugares em grupo, de aprender a girar o arco e a jogar ao berlinde e ao pião com meus primos e correr com eles à volta do monte, cada um montado num cavalo que era uma cana atravessada nas nossas pernas; amava deambular com meu tio pinhais fora, ficar debaixo dos pinheiros a vê-lo subir e temendo que caísse, mas na mira de ver passarinhos novos ou ovinhos pequenos, que vinha mostrar-me para depois voltar a subir e pôr tudo no lugar, “com cuidado para os pais não enjeitarem os filhos”, facto que me fazia avaliar, no mundo dos pássaros, uma crueldade extrema.

(cont.)

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Tina, do you hear me?

 

Nada de estranhezas, reconheço, não fechei a visita a Toledo (lá havemos de tornar). Mas que querem, Tina Turner lembrou-se de morrer, eu hoje bebi um café e estão reunidas as condições para um post fora dos eixos.

Podia dizer que Tina Turner me mudou a vida, mas a verdade é que nem ela nem qualquer cantor, actor, escritor, me mudou a vida. E mais me parece que seja a vida, no todo em que se apresenta, a mudar os homens. Todos esses - e mais alguns – me proporcionaram bons momentos. No âmbito da liberdade mais ou menos restrita de que gozam os humanos,  corro atrás da perspectiva hedonista; e não primo pela originalidade, toda a  espécie se orienta nesse sentido; parece-me até que, entre outras coisas, tal contingência zela pela preservação da espécie (então?! Não estava a pensar nesse sentido. Mas vale também para ele).

Tina Turner, diga-se, entrou-me mais pelos olhos que pelos ouvidos dentro. Ora, a dama maior do rock tinha voz portentosa. Imagine-se, pois, o impacto da imagem. Mulher arrasadora, isso sim. Deve o qualificativo pronunciar-se a carregar nos erres, à semelhança da dicção de certo prof de matemática, ainda que os dele fossem o nosso desastre, o “arre que são burras” muito rebolado é tão inesquecível como as pernas – as lendárias e invejadas pernas  - da senhora Turner. Cujas são em bom o que ele nos foi em mau.

 Jamais esquecerei aquele borbotão de lava, pernas ao léu no completo de si, empoleirada em salto agulha e a pular desalmada. É inenarrável e contagiante a energia que despendia em palco. Portanto, suponho que seria eléctrica de origem, que ligação à corrente nunca lhe vi. Os “motores de origem”, diz meu pai, são os melhores. E, embora eu ainda não saiba a que origem ele se refere – burrice minha, é claro –, estou em crer que tem razão.  Tina Turner também era de origem. 

E basta o nome. É suficiente para a lembrança. Tina chega-me sempre acompanhada da querida G. A garota está ao meu alcance, a perguntar entre o sorriso e a incerteza, doçura maliciosa dos dezasseis anos a espreitar-me por entre caracóis derrubados nos olhos, “deixa-me só fazer aqui uma imitação, está tudo pronto”. Assenti e sentei-me a pensar no meu atraso, no jantar por fazer, se haveria pão; coisas assim. Ela subiu ao palco e escondeu-se atrás do pano. Esperei. Ouvi a música, batida forte que não identifiquei. E ainda nem bem começara a procurá-la dentro de mim, a garota afastou um pouco a cortina e agarrou o micro. E siderou-me (bem gostaria de poder ver a minha arregalada cara de parva). Em pernas de menina moça sob blusa comprida (não assim tanto), foi a imitação de Tina Turner que me mais me moveu. The very best. Estava inteira nos gestos, na passada, na rudeza com que Tina pisava saltando de perna aberta a escandalizar falsos pudores (de que seriam feitos os saltos dos sapatos da cantora; o que eu penso nisto, santo Deus). Embora, diga-se a verdade, nunca Tina exibiu a elegância da G, nem o seu rosto meticuloso de virgem incendiada. Nunca Tina teve caracóis tão eles, nunca o seu moreno arrebatador chegou ao tom canela da G. A garota fora criada na instituição onde ainda vivia e era uma doçura de pessoa – a revolta de uns não é a de outros. Queria seguir psicologia. Seguiu psicologia. E, entretanto, perdi-a. Na vida há que dar espaço, os jovens são – eram – para ser perdidos. A G. precisava ganhar outra gente, deixar-se contagiar pelos novos ambientes,  adaptar-se. Crescer. Tina Turner ficou-me, para sempre, a par dela. E ainda hoje não entendo como se arranjava para desenvolver a voz de bagaço de Madame Turner. Porque, numa inspiração, a convidara para cantar “Solta-se o beijo” canção à época muito badalada da “Ala dos Namorados” cuja, segundo parece, tinha sido escrita por João Gil e Catarina Furtado.   E foi na mouche, ela era brilhante, tinha as nuances maviosas e  exactas na doçura conveniente. Onde iria buscar a alma rouca da Tina, não sei. Mas exibia-se tão frenética quanto ela, ainda que muito, mas muito mais bonita.

Por onde andará essa menina que tanto prazer me deu em tão breve conhecer. Talvez ainda imite a Tina, pinte a boca de vermelho, seja chama no uso da mesma energia violenta; mas, contudo, incapaz de a tornar obscena.

Que duas!

 

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Toledo

 

Cervantes é presença que surpreende na cidade. Aparece representado em lojas e, num mundo de espadas e armas brancas, não destoa; ruas e praças lembram-lhe o nome; e perfila no espaço a sua elegância cinzelada na pedra. Ora supõe-se que Cervantes nasceu em Alcalá de Henares e sabemos que morreu em Madrid onde, em lugar mais ou menos certificado pela ciência, lhe guardam as sobras do corpo. Portanto, não foi o berço nem a morte o que levou os toledanos a esculpir-lhe a figura e a nomeá-lo por lugares vários, mas o facto de Toledo ser a capital da província de Castela la-Mancha, berço de D. Quixote (Quixote de La-Mancha), o cavaleiro da triste figura e principal personagem da sua obra mais conhecida. Daí a homenagem da cidade a essa incontornável figura das letras de Espanha e do mundo.

Bom, mas importa contar a incursão feita no Alcazar e que pouco rendeu, por ser hoje museu militar e se achar, na  quase totalidade, encerrado para obras.  A romagem inflectiu pois para o Museu de Santa Cruz onde, por entre lufadas de bafio e coisas velhas, o visitante é surpreendido pela claridade irradiante da arte de El Greco. O adiantado da hora – sessenta minutos até ao fecho – permitiu apenas a visita à exposição de pintura. Fiquei e ficaria por ali, que até o odor a fungos e bolores emurcheceu à vista de tal beleza. Sei que as gostei a todas. Porém, manda a honestidade que o diga: recordo apenas as de El Greco. Deve ser preconceito, pois claro, mas apagou-se-me tudo o resto. Ora esta.

O que dizer de um pintor que admiro e de quem sabia apenas a origem grega e ter vivido em Espanha na segunda metade do século XVI e princípios de XVII. É seguro: a beleza não é de dizer, mas de contemplar. Mas, ao longo dos séculos, sempre os homens insistem e a tenteiam, lhe apõem as insuficientes palavras. De meu, ou nem sequer meu, possuo apenas as impressões que os quadros me repetem, um após outro. “Presa por vontade”, deles sou refém. Na pintura de El Greco extasiam-me as figuras longilíneas, olhar estranho e alheado como se não nos vejam e antes contemplem miragens muito suas; e outras que, ao invés, nos fixam e parecem perfurar-nos a alma em intensa compreensão. Observando as pupilas dos santos verificamos esse alheamento que aporta originalidade a cada figura e é mistério que seduz. E há a luz que emana das figuras, a claridade que, nas vestes, se desprende das pregas. O olhar abisma na vibração colorida e solta dos tecidos nobres - sedas pesadas, cetinosas, que melhor se imaginam em nobres e altaneiras damas, que no incerto e magro corpo dos santos. Quem sabe, El Greco os vestiu em concordância com o merecimento que neles imaginou. Noutras pinturas, a força atractiva emana do casto refulgir da pele, alva tez que abre em brilhos de santidade nos Cristos crucificados que amo de paixão. Tão humanos e sofredores como não há. Nos olhos e no corpo desse Deus, a fragilidade dolorida dos homens e a sua magnífica impotência cativam o observador mais renitente. E, ou se compreende a transcendência de um mundo outro, ou se admite que, no mundo material, alguém criou com mão divina. Abençoado seja.

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Toledo

 

É fácil perdermo-nos numa cidade de traça medieval, tudo são ruas e pracinhas desaguando umas nas outras. Mas hoje, para evitá-lo (não sei que mania é esta de nos quererem sempre ao nível, nem desgosto de me perder), há mapas, GPS, informações no posto de turismo. Tudo está disposto para uso individual e abordar os residentes por isto ou por aquilo “no hace falta”.

Pena que não franqueei todas as portas de La Preciosa, como lhe chamam os espanholitos. Há tantos séculos estão abertas para o mundo, isso basta para que as respeitemos. Respiram o tempo das pedras e a arte de outros tempos. Maravilhas da história dos homens. Se lhe percorresse as muralhas, teria  ensejo de contemplar a cidade banhada pelo Tejo, esse rio onde também temos parte e que amorosamente a enlaça por três lados. E o conjunto é paisagem de extraordinária beleza. Imagino que, vindo do lado onde rio não há e o pó abunda, o viajante depara com a cidade-oásis, as copas das árvores verdejando aqui e ali. Lá no alto, o Alcazar é cabeça erguida e orgulhosa da urbe que se apresenta em pose de rainha, o casario um manto que a envolve. Mas é na dança que ensaia com o rio que Toledo toda se entrega a ser bela. Toledo, terra do aço mais puro e flexível, que me fez recuar em cada montra de loja. Ele  eram espadas a contento, adagas, punhais e até canivetes de ponta e mola, navalhas de malandro, o dinheiro ou a vida, agudas facas com dimensões de pesadelo. E as montras eram limpas e brancas, mas bem via o sangue que as manchava, ouvia o entrechocar das espadas, arrepiava-me o metal contra metal, lâmina escorregando na lâmina em duelos que não valiam um caracol e acabavam no horrível. E portanto resolvi passar à frente. Sem mais olhar. Indo pois de nariz no ar, dei com os panos rectangulares que, nas ruas, lhes fingiam um tecto a todo o comprimento e mais ou menos a meio. Julguei ser boa ideia, o calor apertava e ainda o verão não era. “Estes espanhóis pensam em tudo”, avaliei. E não é que pensam mesmo, mesmo, em tudo?! Pois os panos são, digamos, um respeito pelos que saem em andor, nas procissões da semana santa (três) que se realizam à noite (uma delas é à meia noite, hora das bruxas). Seguindo os tectos falsos, reconstituímos o caminho de Cristo Morto. E eu que sempre as detestei. Aborreci as atribuladas procissões de velas onde  as chamas me chamuscaram véus e  alcançaram as indevidas pestanas quando, por anúncio de prematuro fim, tentava soprá-las e, num repente, me tornei uma daquelas figuras medievais das pinturas, só que em abundância de sobrancelhas; acresce que quase fui incendiária quando, num acaso de distracção,  cheguei a chama ao casaco do aprumado católico a que só observei as traseiras e que, sumido nos ardores da fé, não deu por outros calores; E ainda faço notar que queimei as mãos com a cera que ignorava a protecção de papel e chorava sobre elas sem pudor, e eu em ais sumidinhos para não incomodar rezas e cânticos; e, despegando a cera com as unhas da outra mão, descuidava de novo a vela que ou criava lastro, ou reincidia a consumir-me a carne, ou ameaçava extinguir-se e isso é que não podia ser. E portanto, dada a minha inépcia nesta coisa de luzes manuais, muito me admiro, mas a verdade é que gostaria de ver essa procissão da meia noite, a de Cristo de la Vega. Ou mesmo aquela que se intitula nobremente de Caballeros penitentes de Cristo Redentor . E Viva Espanha! E mais os reis católicos que se perpetuam até hoje na santa madre igreja.

terça-feira, 16 de maio de 2023

Toledo

 

E, enquanto tal quadro se me punha, já o veículo do realmente se ajeitava a atravessar porta semelhante às que conheci em Évora-cidade, sem outro esforço que a queima da gasolina – abençoados tempos. E eu no engodo de uma chusma de carros de bois parados na praça, ou gemebundos pelas ruas que enfileiravam em subidas. E mesmo noutras mais recatadas, vendendo precisos nas traseiras de grandes casas que ali não faltam, serviçais jovens e vivaças armando em mandonas com os vendedores, que isto a gente pobre é assim, mal sobe um avental branco, logo aproveita para pisar no gasganete do seu igual. E outras mais modestas, um tudo nada de receio nos modos, agradadas de serem notadas pelo leiteiro, o açougueiro, o que seja, fugindo-lhe à medida do passo, voz desmaiando o consentimento, ai que vosmecê não tem tento; e numa palmada sem convicção, arrede daí a mão, que não é dono de nada não senhor.

E tão diverso o que nos parou na grande praça. Eram jovens, centenas deles. Atravessavam a praça. Barulhentos. Viçosas alfaces recém colhidas. Lindos, na sua premeditada moleza de pernas. Professores atentos, bandeirinha no ar. E eles folgando, rindo, conversando, voluntariamente alheios à suposta pressa dos mestres. Nos intervalos deste banho de juventude, a dividi-lo em conta gotas, autocarros garridos e apressados desfaziam a buzina. Mas os jovens. Os jovens que talvez me copiassem e vissem apenas carros de bois. Pois que esperassem. As bandeirinhas enervando em tremedeira ríspida. E eles nem aí, tá bem tá. Apetecia chamar alguém, gritar, vejam a liberdade, notem esta praça de pés deslizando vagares. Imersos no seu mundo colorido, desceram a rua qual onda preguiçosa que se espraia, regatos de gente que a tudo chegam – mansamente invasivos, infiltravam nos interstícios entre os automóveis, nos passeios, no redondo de terra castanha que rodeava as árvores, na frente das lojas.  Impediam a circulação, a rua repleta. Passaram pela biblioteca da cidade e nem um olhar. Eram  anjos embebidos na descoberta do poder alado, a esticá-lo quanto podiam e dando costas  à fila paciente de autocarros que os aguardava lá em baixo. E eu naquele jardim de rosas, olhando a marcha lenta e as funduras, a estrada com carrinhos de brincar e por onde não passámos, o ocre da terra, a aridez de deserto que, deste lado se impõe e rodeia a cidade. Eu que pertenço à pobreza de terra cinzenta, desligada, só poeira - que nem bem entendo como pode ela segurar uma árvore, mas segura -, que sei eu deste mundo ocre, onde a cor da terra se confunde com a das casas. O que me espera além das rosas de jardim tão igual aos que conheço. Vem-me um desejo de cheirar a biblioteca e vou por ela, mas fechou. Que cedo Espanha se prepara para a noite. Ou fui eu que me perdi na surpresa deserta que o lado do Tejo não previa. É dia ainda. Talvez uma igreja…

 

domingo, 14 de maio de 2023

Toledo

 

Vinda de uma infância e adolescência por demais sedentárias, ignoro onde possa ter agarrado este amor a viagens. Contudo, não se pense que me identifico com o eterno e inquieto viajante. Animal doméstico, amo a quietude e o silêncio,  abomino algazarras que não as familiares, e a constância da novidade não me seduz.  O que de verdade me atrai na viagem é a sua intermitência, o objectivo ponderado e a curiosidade de poder ir a lugar nunca visto. Ir mesmo.  Flanar na paisagem, captar odores, olhar as pessoas, conhecer-lhes os prazeres da mesa, ser discreta coscuvilheira de hábitos e costumes. E ainda, enfiar-me com peso e medida em museus, igrejas e quejandos.

Houve tempo em que a companhia me importava demais. Deslocava-me em viagem apenas e se o conjunto humano me agradasse (o tipo viajante solitário não me seduz). Seleccionava a proximidade humana. Tal exigência, reconheço, paralisou-me em demasia. Mas a vida e a necessidade vão-nos mudando. Entendo hoje que viajar importa bastante mais que a companhia - ver o que anseio, o que ignoro se irei gostar, o que nem sequer fez parte das minhas expectativas mas também acontece. E quando a vida, enfim, me convenceu desta evidência de La Palisse, lamentei o tempo perdido. Afinal, com o belo - e até em relação a grande parte do agradável -, estamos sempre a sós, somos apenas nós e ele num tu a tu inexplicável, tempo breve que é de fruição e vale amontoados de relógio. Quantos momentos de inefável perdi por atender à sintonia do humano compartilhar que me faltava e, então, me aparecia primordial. A solução foi simples: dei primazia ao alimento da alma. Isso permitia-me respirar um pouco do ar rarefeito da beleza; e logo, desanuviar o espírito na contemplação do belo. Finalmente - já não era sem tempo -, e apesar dos indesejados, concluí que a relação entre o sujeito e o belo ultrapassa amplamente qualquer contratempo decorrente da circunstância.

Foi assim que entrei em Toledo – na disposição de fruir tudo que a cidade pudesse dar-me. A mim.  Gostei-lhe do ar vetusto; do ocre das construções que, do longe, pareciam de mãos dadas, como se ruas inexistentes; da posição elevada que obrigava o motor ao esforço e eu lobrigando vagarosos carros de bois subindo caminhos de pó, a nervoseira do chicote a despontar qual vela obscurecida por nuvem que subia das patas que se arrastavam retesadas. Já os tinha encontrado lá em baixo, pachorra inteira e barulhenta pisando a madeira rangente da ponte sobre o rio que a dessedenta e que a modernidade despiu de ruído. Encontrei-os depois em busca de certa porta da cidade, contornando muralhas que a guardam, a alegria da boiada a fazê-la um tudo nada mais lesta, no ensejo de alijar a carga. Entretanto, o almocreve, depois de dias a comandar o carro, sonha com água, alimento e sombra que lhe reverdeçam as forças. De tanto se ter apeado por dentro da poeira, sob o braseiro do sol, vincam-lhe o cansaço rugas de pó e suor que correm no rosto como caminhos que se entrecruzam. Descia a endireitar a carga ou a equilibrá-la entre os varais, mudando isto e mais aquilo, olhos de fiel de balança; ou a aliviar a canga quando os bois cismavam de parar e o aguilhão do chicote não os movia um centímetro.  

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Lisuras de Maio

 Dói nos olhos a ternura das mãos,

  harmónio  viajando sobre os cabelos.

As mãos arrasam o vácuo dos abismos,

desdobrando compassivos dedos;  

 milagrosas, desfazem o espanto

 nos olhos dos afogados e,

linha a linha, 

descosem a cinta dos dias. 


Nota: vou permitir-me uns dias de folga na janela digital. Entretanto, que Maio vos sorria.