O
colégio também não alimentou a nossa relação. Por altura dos exames, o temor do
chumbo era polvo de mil braços assolando a mente paterna e logo meu pai desembainhava a preparação psicológica:
gritava quanto podia, perdigotos a torto e a direito, e ameaçava pôr-me no trabalho do campo; isto além da sova que estava sempre na mira e que, em algumas vezes,
estive quase, quase, a levar por via de, incautamente, chegar eu a admitir a
hipótese de não saltar o barranco. Entretanto, desunhava-me a chorar. Acresce que,
anualmente, me negava a entrada no colégio. A época das matrículas era banhada
a ranho e lágrimas descompadecidas.
Depois de muito instado e de meu tio - minha mãe socorria-se do irmão - gastar todo o latim na apologia dos meus estudos; depois de eu entristecer até perder de vista, assistindo dia a dia ao desfiar da época de matrículas; no último dia, a omnipotência divina
condescendia. E nunca esquecerei os mais
tristes meses da nossa vida. De Julho a Outubro, entre o quarto e o quinto ano.
Nesse ano comi por tabela, estava firmemente decidido: não estudava mais. As vinganças adultas esmeram-se no terrível.
Contudo,
houve momentos em que nos aproximámos. A primeira vez que lhe notei
preocupação, encontrava-me já nos braços de doença ainda incógnita e tentava
chegar à paragem de autocarro. Abandonada de forças, arrastava-me caminho fora.
Teria má cara. Meu pai cruzou-se comigo, afrouxou, fez inversão de marcha e,
“anda, sobe”. Levou-me à paragem e arrancou. Quis agradecer, mas, de tão delida, a voz colapsou. E não, não era comoção. Tampouco era a constipação que a medicina decretara.
Nada dissemos um ao outro, mas ainda hoje lhe sou grata.
Diz-se
que o tempo tudo cura. Não será exactíssimo. Mas, à medida que os anos correm e
a vida muda - impiedosa e sem nos fazer caso -, criamos novos entendimentos e
são eles quem nos apazigua.
Meu
pai é a única raiz que temos, raridade que insiste em não ser pedra no sapato dos
filhos. Continua independente e laborioso. O de sempre: boa cabeça, mau génio e maus
fígados. Mas tão honesto e unhas de fome como sempre foi. Em mim, há muito que
a estranheza e má vontade deram lugar à ternura. Estou ciente dos limites, mas não concebo o monte sem ele.
Fez
hoje 90 anos. Teve-nos a todos a seu lado. Estava feliz.