domingo, 29 de novembro de 2020

Prendas de Natal

 

Ficaram-me as mãos. Revejo como em quadro vivo a eficiência de falanges, unhas e polpa de dedos em dobras e vincos, clareando aberturas à medidas das saliências do papel. As mãos dando forma à embalagem. Depois, a virtude do cálice a encaixar na ranhura, o impo de orgulho no balão de vidro brilhante e muito direito, em espera. E a garrafa meio bojuda a emparelhar, vidro fosco de um azul escurecido. Tudo exacto e sem folgas, acondicionado por tampa a preceito e encerrado na montra da embalagem selada por distintivo da marca. Depois, o remate em saco próprio.

Fazia frio na destilaria. Espreitei os barris de moscatel onde estagiava determinada espécie de gin, ela elucidando sem descurar a agilidade em dobras e vincos, vamos buscá-los à cooperativa acabadinhos de servir ao moscatel de Setúbal e produzimos um gin original na cor e no sabor que, sobretudo os setubalenses, consomem com agrado; é um gin novo, experiência que deu certo.

 Tenho já dois sacos fechados na minha frente. Enquanto ela dobra e encaixa, cirando entre os reservatórios. Há os que estão vazios e os que trabalham em silêncio de produtiva fermentação. Datam da confecção, os silêncios do vinho. Miro um ou outro já pronto para a garrafa e respeito o  segredo que ganha espírito na maioria. Perscruto-os sem invasão. Estão uns ao lado dos outros. Parecem inócuos. Quem sabe as boémias alegrias que irão provocar. Ali, ocupados a encorpar de aroma e sabor, crescem em definição, criam identidade. Ignoram o futuro de festas e confidências onde morrem alegremente; os pesados silêncios alcoólicos que poderão causar; a mostra de felicidade aquecida que provocam; que indiscretas tristezas chamam sem necessidade; as presenças que trazem e incomodam; a coragem que dão ao bebedor; paisagens de possibilidade que pintam em telas de impossível; o remanso e agrado que trazem no fecho de um dia de trabalho. Tanto não sabem. E continuam a crescer e endireitar cabelo. Uns dentro de um mês, outros a seu tempo, soarão peremptórios ao paladar, como militar a apresentar-se ao superior, sou x.

Entretanto, ela já enfileira os sacos no balcão. Pago. Sorrimos as duas desejando-nos um bom Natal. Que os meus quatro cavaleiros do apocalipse apreciem a oferta e, em cada um ela participe ou seja causa de bons momentos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A principessa

 

Conheço-a desde a barriga da mãe e tudo que dela sei está nimbado de ternura. Vejo-lhe ainda o riso a derreter em dentinhos de leite; a graça dos três anos num aniversário de vestido aos quadrados; o medo do escuro e o subsequente choro se a luz de presença falhasse; a originalidade do  petit nom  que dava à mãe; a graça de caminhar em bicos de pés; o seu rostinho bonito no vidro do carro, a mão acenando adeuses por mais uma semana longe de mim. Na família, é a princesinha, uma mulher entre homens, bijou ternurento de primos e irmão.

No Natal, ano após ano, ofereci-lhe livros e chocolates. Fecha-nos à verdade a mania de que aqueles de quem gostamos se nos assemelhem em  preferências. A princesa lê com menos afã que eu, e, no ano passado, saltou-lhe confissão espontânea, “ainda bem que não é um livro grande”.  Não lhe contei a verdade, andava a tricotar uma prenda, mas os problemas nas mãos deixaram-me o trabalho pela metade e, de novo, recorri ao livro. Este advento recomecei a tarefa e oxalá não repita o desfecho. A fim de o evitar, ontem comprei o licor que prefere e que pode substituir o livro que nem sei se lê. Ok, os apologistas dos livros estão piores que barata, mas isso não me interessa nada. A esta altura do campeonato, vou progredindo lentamente nos trabalhos que tenho em mãos, e a tentativa é chegar ao fim de cada um. Contudo, começo a criar alternativas capazes de me retirarem o stress de última hora se os não conclua.

Como é norma dos que crescem, nasceu-nos certo muro invisível que me retira do seu mundo de confidências. As visitas foram esquecidas e só ocorrem em caso de doença, anseios e projectos não me orbitam. Ignoro a concretude da sua vida e o segredo dos romances que vive. Mas habita-me os interiores na mesma plenitude de sempre, o amor que damos não tem necessariamente de ser igual ao que recebemos; descansam-me os desabafos gratos da mãe e agrada-me o laço estreito entre ambas e a boa e atenta  conselheira em que se tornou. Faz-me bem notar-lhe a figura gentil: rosto limpo, olhar sereno e alegre, riso pronto em boca perfeita. Dizem que se parece comigo em certas particularidades de carácter, esquece-se do pente nos cabelos, é desajeitada e simpática. E agora desculpem, mas vou dar mais um avanço na prenda de Natal a que não sei determinar ano😊.

Já passámos um Natal sem a princesa. E não foi a mesma coisa.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Rir

 

Vamos lá a ver. Há muita coisa e várias pessoas que me fazem sorrir. Até as minhas peripécias passadas conseguem isso de mim, fazem-me sorrir em circuito fechado. Mas rir, rir bastante e com gosto, gargalhar de vontade, fora dos cómicos de serviço - estilo Ricardo Araújo Pereira ou o Hermann dos velhos tempos quando ainda eram leves as graças -, e de séries cómicas como “Uma família às direitas” que a maioria não vê ou repete mas eu vejo a estrear, e “Friends” que quase sei de cor, mas me diverte na mesma e provavelmente repito a vida toda só porque gosto do espírito descomprometido da juventude e porque, pronto, lá está, vivi alguma coisa parecida e ali me revejo. Pois, assim uma pessoa em carne e osso que eu veja e toque ou possa tocar e que me faça rir…suponho que não existe; se existe, ainda não nos conhecemos. Bom, é verdade que uma amiga começou nos tempos livres um blogue de composições muito bem urdidas e que me fazem sorrir, são uma brisa de boa disposição com crítica por detrás e pela frente, que ela não perde nunca a oportunidade de ser a profissão ou de a profissão ser ela, não sei bem. Mas Os diários de Adão e Eva de Mark Twain fazem-me rir. Já os reli e treli e rio sempre. Também na semana do cinema italiano, há uns anos, tive a sorte de escolher um filme em que ri bastante. Quando a fita terminou, doíam-me os músculos da cara. Revia-o sem hesitar, mas nem sequer recordo o título. Foi aposta no escuro e bem ganha, um tiro no porta aviões.

Está bem à vista que, com este gosto pela comicidade, é qualidade que muito me falta. Não tenho gracinha nenhuma e nem tento. Mas as distracções e lerdices que me acontecem são, por vezes, hilariantes. Rir, digo eu, faz bem a tudo, tonifica corpo, alma e mais alguma coisa que haja ou possa vir a ser encontrada.

Já me recomendaram a série Seinfeld que também desconheço, mas hei-de procurar. O humor inglês é muito próprio, claro que já vi Monty Python e A malta das tic. E amo todos os filmes de Woody Allen. De uma ponta à outra. Constato que a dificuldade em provocar o riso é directamente proporcional à sua necessidade. Bem haja quem nos arranque umas boas gargalhadas.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Uma Luz de Natal

 

Era colega no colégio particular onde me iniciei formalmente a ensinar crianças. Por um acaso feliz, inscrevemo-nos ambas no ensino nocturno e, depois do dia de trabalho, todas as noites saíamos para as aulas. Nesse ano de RGAs (reuniões gerais de alunos) frequentes e muito barbudo a fazer o ponto da situação, desábito que impressionava um bocadinho, lá íamos no final da  tarde a caminho da escola, uma freira gordita enfarpelada no hábito e uma garota magrinha e vivaça. Nunca então pensei nisso, mas éramos um par e tanto. A escola nocturna trazia-me alegrias conhecidas; punha de parte o que estava mal e, por via de novos contactos e novas matérias, vivia horas de diversão e entusiasmo. Quase sem darmos conta, nascia-nos a amizade sem terminus que a morte há-de separar. Cada uma mergulhada na sua condição, no colégio pouco nos encontrávamos. Porém, as idas e vindas do liceu igualavam-nos e davam-nos tempo para confidências e todos os pequenos nadas femininos. Jamais a encontrei diferente de mim e nunca se fez rogada ou escusou a qualquer assunto. Perto das 23,30h chegávamos ao colégio mergulhado em silêncio e separávamo-nos para jantar, eu na cozinha e ela no refeitório das irmãs. Até que, certo dia, arriscou o convite, pegar no prato e acompanhá-la ao refeitório que me era vedado. Havia de tudo e nem sequer os nossos jantares eram iguais. Delicada, afirmava-me que comia diferente por ter dieta. Mas o que me interessava era mesmo o acesso a compotas e frutas a que não tinha hábito, de modo que me dava ao luxo de sobremesas mais compridas que lençol. Na minha alegria de estar em infracção consentida - o refeitório das irmãs fazia parte do mundo secreto e só delas -, falava pelos cotovelos e ríamos bastante com ela sempre a aconselhar, fala baixo, fala baixo. É claro que não tardámos a ser descobertas. Uma noite a irmã ecónoma desceu, e viu-me em território sagrado. No dia seguinte foi-me proibido o refeitório das irmãs. Então, a minha colega trouxe o seu prato para a cozinha e passou a fazer-me companhia naquele desconcerto de tachos e panelões em espera, um mundo pasmado de aço e inox aguardando  luz e horas que lhes trariam mãos e serventia. E, quando ia buscar a fruta à salinha das irmãs que me fora vedada, trazia-me sempre um ou outro doce, uma ou outra peça de fruta que já sabia ser do meu gosto. E ríamos as duas de assim ludibriarmos a ecónoma que nos tinha descoberto ( estava certa de que a minha amiga levara uma descompostura em ângulo recto). No final do ano separámo-nos, ela tirou o curso em Évora e eu em Lisboa; andámos por aqui e por ali. Fomo-nos escrevendo de longe em longe. Até que aterrou no colégio da minha terra e ficou durante trinta anos. E isso aproximou-nos qb. Quando mudou de casa fiquei apreensiva, as adaptações tornam-se mais difíceis com a idade. E nunca esquecerei aquele gesto simples de prato na mão, a entrar na cozinha onde comíamos de pé. Hoje vive no lar da congregação, as freiras idosas devêm estorvo para quem está no activo. Mas não esqueço os dias em que me ia esperar ao comboio na estação de Cascais. Depois, havia uma tarde inteirinha por nossa conta e eu fazia o que sabia ser da sua preferência, irmã, almoçamos no Centro Comercial? E gostava de assistir aquele bem estar de comer pizzas ou coisa parecida, de lhe comprar um agrado, de andarmos de montra em montra e ela passarinho fora da gaiola, contente de tudo, que bem que eu me sinto aqui. Agora, o covid proíbe-lhe qualquer visita ou saída e temo pela sua sanidade mental, num lugar em que só três pessoas - contando a directora e ela - são capazes de uma conversa. Ontem seguiu a minha primeira prenda de Natal. Não tenho a certeza se será a única, mas pode que a anime.

Bem haja, irmã.

domingo, 22 de novembro de 2020

Preliminares

 

Li num blogue o desabafo de pessoa que toda se emperiquita para ir ao cinema ou comer fora. Isto, é claro, por mor da pandemia que nos tem vindo a tirar quase tudo que implique sair de casa. Ela tem a sorte de poder frequentar cinemas.  Acredito que o saiba e daí  vestir-se a rigor. Eu visto-me para ir ao super e ao médico, não bem a rigor, mas com espírito rigoroso. E ali vou eu de ponto em branco. Sobretudo para o médico, sempre o passeio é maior. Mas não era disto que vinha falar. Pronto. Saiu e também não estou para deletar.

Tinha em mente escrever sobre o Natal que se avizinha e não vai parecer-se com coisa nenhuma. Mas enfim. Este ano, já decidi, não enfeito a casa. Não haverá a ceia de Natal familiar e o mais provável é que tudo permaneça quase igual a todos os dias da pandemia. Quanto aos doces, azevias não as encomendo, dado que não há visitas e não posso comê-las; a torta de chocolate que a sobrinha prefere não tem cliente; para a tarte de pinhão faltam os meus clientes privados e dilectos; o doce de ovos e caramelo não tem a mana mais nova. Vai faltar-me o primo que chega de longe e os sobrinhos com a vivacidade e o bom humor que lhes conheço e que hão-de estar sabe Deus onde. É tristeza que nem precisa de se anunciar, já existe. No blogue não vai haver o Calendário de Natal. E este acumular de faltas amorfa-me os ânimos e entendo cabalmente os que desejam que o Natal passe depressa. Neles e por eles fala a tristeza que aponta os desconchavados  buracos no horizonte pessoal. E eu, Beatriz, vou esquecer o Natal? EU??! Mim?! É que nem pensar. Tenho uma listinha de pessoas a quem, à medida que for comprando e enviando - ou entregando em mão - dedico um post, umas palavras.  Porque, mesmo já não sendo propriedade dos portugueses, os correios ainda existem e nos servem. E eu adoro escrever cartas e dar prendinhas. Portanto, se por aqui apareça uma madame x, um sujeito z, uma garota Y, já sabem, são os meus duendes de Natal. Tratem-nos bem, dêem-lhes guarida, eles são os seres queridos e primordiais que fazem  a alegria da minha quadra.  Por motivos vários, merecem a minha atenção.

Tenho dito. Fiquem com os vossos anjos (da guarda).

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A Miss

 

O exercício da escuta pode ser fascinante. Não a escuta profissional onde se pescam fios e nós e se desenovelam pontas num emaranhado onde o próprio tantas vezes não sabe navegar. Falo da escuta amigável, esse inefável desembrulhar bombons de incógnito recheio, o olhar antecipando na boca a doçura apetecida. A minha conversa com a miss foi esse tactear de duas vontades, um uníssono entre botão e casa, água mansa que a sua eterna delicadeza fez contínua e plausível. Quanto tempo sem exercitar a escuta presencial. Tanto. Elidida, esqueço que existe, o mundo cingido a dias de cintura apertada em quotidiano  de fivela. E, se num intervalo dos furos ainda insiste em queixa  sussurrada, e eu?, está já a desistir, à beira da mudez.

Posto que o reencontro nos fez bem, logo aprazámos para a quinzena seguinte outro chá, um passeio…Mas, passada uma semana não resisti a um dia de sol e liguei a convidar. Ela agradeceu e aceitou um passeio ao ar livre. Levei-a de carro por caminhos de que a minha bicicleta tem saudade e, depois de o parar numa berma soalheira, internámos no pinhal.

Corri aqueles trilhos em garota, à revelia de minha avó que não me queria no meio dos galfarros. Para que conste, chamava galfarros aos garotos da vizinhança, género masculino que não se ensaiava nada de roubar fruta pelos quintais e levar sovas de cinto. Contudo, nunca eles me “desencabecinaram” e antes me contavam coisas engraçadas e mostravam um mundo que eu desconhecia. Foi assim que vi corujas, mochos e raposas furtivas. Com eles aprendi a pisar bufas de lobo e faziam gala a descobrir as maiores e dar-mas a pisar para rirem a bandeiras despregadas com o som cavo e o pó que soltavam sob os nossos pés. Em troca, eu contava-lhes histórias que lia e ouvia. Aprendi muito com os galfarros e chorava desaustinada com os seus gritos lancinantes se eram sovados sem piedade por pais impacientes ou mães cansadas e  inundadas de queixas, roubou aqui, tirou além, não faz os trabalhos de casa, anda feito moinante, etc.

Caminhamos atentas, a desviar-nos de raízes salientes. Já não há o pinhal de mato fechado onde me arranhei e piquei. Agora é um caminho leofilizado de pinheiro aqui, pinheiro ali, que se deixa ver de fio a pavio e nos espreita sem perigo. Que a miss não queria perigos, ia pelo ar do campo, a liberdade do ar sem fronteiras, tão grata a nós duas. Entre outras coisas, contou-me que vai ampliar a casa onde vive e que devia ter seguido arquitectura pois gosta de fazer projectos de recuperação de edifícios. Falou dos que recuperou noutro lugar, durante o casamento. E da recuperação que já tem em curso na minha terra. Uma entusiasta de oitenta anos. E, enquanto ela conversava a desfiar sonhos que vai tornando realidade, eu pensava no inconsciente desejo de permanecer. A minha professora não tem filhos e quase não tem família, mas vai permanecer nos edifícios recuperados. É a sua forma de ficar.

Apanhei urze e rebentos de carvalho anão e, como as crianças que fomos, as duas trouxemos um raminho de flores silvestres. Da próxima vez, vou levar um sacho e saco plástico e trazer alguns matos que namorei. Pode que peguem. 

 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A Miss

 

As pernas. Longas, sem um pêlo, alabastradas em meia de vidro. Não que eu ligasse muito a pernas, não recordo as da professora de Português, nem as da mestra de História e tão pouco as da professora de Física. Mas as dela ficaram-me na mente, mais perfeitas que as de Cyd Charisse. Calçava sapatinho de salto e usava vestidos que lhe caíam como sopa no mel e tinham gravata acoplada. Em meu entender, cheios de estilo. Aquelas pernas passeavam-se entre as nossas carteiras e tinham a particularidade de, à medida dos passos, darem uns estalidos fracos que as denunciavam. Suponho hoje que seriam produzidos na junção de perna e pé, mas, na altura, considerava-os característica extraordinária e única no mundo, fenómeno que mais enaltecia a possuidora.

Acontece que no meu tempo de colégio imperava a sensatez e o bom comportamento. Ora uma menina sensata não se virava para trás durante as aulas. Portanto, aqueles sons orientavam-nos  a geografia  da professora quando saía da sua mesa com pezinhos de lã. Sentada bem à frente, eu esperava o momento em que as pernas passavam a meu lado e, se sucedia, invejava doridamente aquela pele de pêssego sem vinco de meia e onde os poros, limpos de qualquer pilosidade, se faziam visíveis. Tenho da miss de Inglês as melhores recordações, mas o mais saliente são as pernas.

Tenha o leitor paciência na leitura destes pormenores, mas é que reencontrei a miss. Que já não é miss. Passadas umas boas dezenas de anos em que casou e enviuvou, está de novo na minha terra.  É senhora que beira os oitenta e parece ter menos dez ou quinze anos. Portanto, fiz-me encontrada com ela. No meio de tanto aluno em lugares vários, esqueceu até as minhas birras nas aulas, mas reagiu ao nome, “ah, uma moreninha de rosto pequenino”. E é claro que achei o máximo. Chamou-me moreninha em vez de preta, como hábito na minha terra quando preto era só um nome para o moreno mais escuro, “olhá preta; tão, preta, tás boa”. Portanto, ser moreninha é subir vários degraus de uma assentada. Viva a miss.

A uma miss oferece-se chá. E conversa. A minha professora de Inglês revelou-se loquaz, simpática e, como é natural, não recordávamos os mesmos pormenores do tempo de colégio. Contou-me que casou depois dos quarenta com uma pessoa que a viu nascer e por brincadeira dizia que casava com ela quando fosse grande. Que não houve filhos. Falámos de viagens, da sua paixão pelo United Kingdom, de ter viajado mundo fora quase sempre a sós e em transportes públicos. De ela e o marido serem filhos únicos e lhe restarem dois primos. A solidão apareceu-lhe como estrela cadente. Que logo acrescentou, “ não vivo de saudade”. E eu que sou uma saudosista desgraçada e alentejana por inteiro, não se vive de saudade, mas vive-se também com saudade. Olhou-me em estranheza, não, eu não vivo com saudade, a saudade não me leva a lugar nenhum. Sou o resultado de tudo o que vivi, mas o que vivi é passado e está morto, foi.

Confesso, não esperava um assentar de pedra tão prosaico.

(cont.)

 

 

 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Na Batalha

 

Para visitar as capelas saímos do mosteiro fazendo o percurso pelo exterior. Suponho que seja pormenor transitório, mas emana daí certo ar de diferença e importância. Vindos da magnificência, reconhecemos no espaço a  traça comum, trabalhos de Huguet que as iniciou e concebeu no reinado de D. Duarte e também de outros sucessivos mestres em reinados diferentes (D. Manuel e D. João III). E, ainda que sem a abóbada, Capelas e Mosteiro dão-nos lições.  Meu avô, compreensivo da alma humana, vai assentindo com a cabeça à medida que contempla as sete câmaras funerárias. Na pedra das  capelas os sinais da  continuidade dos trabalhos, a necessidade de avançar com o sonho e a promessa de reis anteriores. Ali aparece desvelada a inteligência dos planos a longo prazo, o avanço paciente e conhecedor, obra tão avantajada integra a mais que plausível possibilidade de incompletude. E ainda assim, perseverar no bordado de pedra que reveste o interior e o exterior do mosteiro, na maravilha vidrada dos vitrais, ocupação de Afonso V e onde minha mãe se perde, reparem, até aqui os há. E tu naquela ternura que eu conheço de te despedires sem dizer que partes, só os teus regressados olhos de tristeza, a mão que se vai fazendo leve na minha até ser nada. E alguma coisa te demora os passos mas eu aprendi os irremediáveis da vida e penso no coração das pedras. De quantos dias e anos somados precisou a pedra para ser arte, quantos homens morreram para que tal maravilha nos desvaneça, e quantas mulheres alimentaram fogo e bocas com o suor que os homens ali deixaram. Como a beleza criada pelo homem pode ser esforçada. Custosa.

Mas as capelas, mau grado a mistura de elementos arquitectónicos e artísticos e o desejo de conclusão de três monarcas, continuam a céu aberto, sofrendo estios e invernias. Inconclusas, não são o mais belo do mosteiro, mas há naquele octógono uma espécie de retiro espiritual que não encontramos na Capela do Fundador. As Capelas Imperfeitas têm mística e o panteão do fundador é antes poderoso e centrípto.  D. Duarte, esse rei invulgar que reinou apenas cinco anos (morreu de peste), legou à posteridade a beleza e sensatez de  um espírito douto e sábio e a proposta de confraternização dos mortos que se lê na forma geométrica das Capelas: o rei sonhou-as morada familiar, viradas umas às outras. Dizem-no o rei filósofo mas terá sido apenas mais humano que a comum realeza: dedicou O Leal Conselheiro a sua mulher D. Leonor e nos escritos que restam consta que sofreu depressão (não talvez nestes termos). A História e os homens sepultaram-no onde desejava, mas não lhe deram morada condizente ao valor. Talvez os homens não valorizem reis-escritores e bem pensantes, talvez os letrados verdadeiros, os justos, sejam desde sempre menosprezados e só o reino dos céus lhes pertença. A D. Duarte, aqui na Batalha, Mosteiro de Santa Maria da Vitória, ainda lhe é dado o céu.

Capelas Imperfeitas. Como nós. Inacabados. Abertos aos elementos e apenas projectados à completude. Sozinhos. À parte do faustoso ouropel dos mosteiros que nos rodeiam. Vou por ti. Por minha mãe. Meu avô. Ninguém. É tempo da realidade. Não me despeço, ninguém se despede de si.

Na nave principal, a realidade sentou-se em espera, bolas, tanto demoraste. Eu, desculpem, distraí-me.

 

domingo, 15 de novembro de 2020

Na Batalha

 

Há um silêncio recolhido por todo o Capítulo, um apelo ao orgulho de ser português na pose fotográfica dos soldados que guardam a sala à luz fraca dos vitrais. Vejo os frades que ali se reuniram para deliberar sobre  assuntos da vida monástica, rosto escurecido, talvez um archote ou outro a bruxulear-lhes as decisões. Quanta austeridade. Que frieza desprendem estas paredes. E mestre Afonso Domingues que talvez não tenha existido ali está a um canto e mais seus instrumentos de medida. Olhamos essa abóbada de tanta preocupação e arte, esse tecto dificultoso que, dizem, caiu algumas vezes e ali está impávido e seguro, século atrás de século. Pertença a quem pertença a figura esculpida, aquele canto é a homenagem aos que, por trabalho, obstinação e interesse a erigiram. O rei chamara às obras da Sala do Capítulo os condenados e prometeu-lhes a liberdade se a abóbada não caísse. Que o arquitecto de tal milagre, seja ele o Mestre Afonso Domingues das Lendas e Narrativas de Herculano ou Mestre Huguet, se fundou no saber e pôs o cálculo ao serviço de criativa ousadia, é fora de dúvida. Para uns e outros, acreditamos na paga régia.

Lá fora, vindos da severidade do Capítulo,  assola-nos o remanso da vida. Somos atraídos pela luz clara dos claustros, os olhos em contemplação, reféns do rendado das arcadas em ogiva perfeita, do abaulado dos tectos, perdidos na beleza e harmonia do conjunto. Minha mãe em admiração pasmada no recanto daquela fonte majestosa e tão delirantemente feminina que quase nos nasce a dúvida sobre a sua acuidade no mosteiro. Que pensariam os frades, como olhavam aquela beleza pormenorizada toda feita em delicadeza de formas e que tanto me sugere lugar de mulheres a ler, a bordar, a sonhar. Talvez, para quem ali habitou, os claustros sejam a beleza que urge, o indicador de que a vida não se resume ao cumprimento de regras e a pensamentos grandiosos. Um sinal de que a beleza não é apenas lenitivo dos olhos, a beleza ajuda a pensar, põe-nos de bem com mundo e homens. Dispõe ao amor, daí os claustros. E, enquanto aquela senhora estrangeira se fazia fotografar e meu avô sondava a pedra a adivinhá-la pelo toque, eu encostava-te a uma coluna. Passo a passo, prendia-te pra me ver presa. Fatalmente. E depois da foto a senhora um soslaio meio a sorrir, como quem diz, tão sem juízo o amor, tão docemente ridículo.

(Cont.)

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Na Batalha

 

Em qualquer mosteiro nos cativam mais as celas dos frades e o mundo intramuros da vida quotidiana, que a riqueza fulgurante do templo aberto ao vulgo a horas certas e poucas. Agradecemos a grata luz dos claustros internos a desenhar figuras em paredes e chão circundantes, as lajes gastas na largura de corredores e os anseios votivos que nos levam para lá dos muros que encerraram os frades dominicanos. Caminhamos apercebendo os sinais da vida retirada, a surpreendê-la no segredo das pedras, na espessura de paredes que acolheram sonhos e pesadelos, anelos inconfessáveis e humanas torturas, devoções e ignaros devaneios. E lá vamos os quatro, meu avô risonho e trôpego fechando o cortejo, a percorrer arcadas e corredores encostado ao seu bordão, a mente no diverso carácter desses homens tantos, quiçá voluntários prisioneiros numa obra de arte. Maravilhados com o magnânimo refúgio que é em nós labirinto e neles casa, anotamos o fechamento ao mundo, a porta do eu cerrada à posse individual e às mais humanas emoções. A minha mão enleia na tua como se a mística nos atinja veias e artérias e nos misture o sangue. Minha mãe em desabafo, embevecida nos jogos de luz e sombra, estes frades tinham por força vocação, obedeceram ao divino chamamento, “deixa tudo e segue-me”. E olhando em volta, aprazível, mas deu-lhes Deus uma casa tão bonita. A estas palavras vem-me uma lição do livro da segunda ou terceira classe, “A cerejeira”. “Na Primavera disse Deus, ponham a mesa às lagartas. E a cerejeira cobriu-se de folhas, milhões de folhas verdejantes e fresquinhas…” . Afastando o livro de leitura, não é hora para estas coisas, tenha paciência volte à estante se faz favor, sorrio  com os olhos, conheço a crença inabalável e cândida de minha mãe. Se a houve, também eu louvo essa vida de  amor despojado que gastou o seu tempo em adoração, cânticos e trabalho, se ocupou a morigerar os impulsos do corpo ou apenas a ceder-lhes como quem oferece pão a pobre, tentação e desejo são galgos sem fronteira.

Entramos na sala do Capítulo. Descomunal solidão. Penumbrosa e abobadada. Nela, a chama da Pátria e o túmulo ao soldado desconhecido (dois soldados incógnitos se acompanham ali), morto em guerra estrangeira e sem préstimo (não há préstimo numa guerra), que nos levou tanto jovem impreparado e sem saber ao que ia. As vidas ceifadas são sem retorno. Que este acto ignóbil pese na eternidade aos mandantes. Soldadinho indigente que vieste sabe Deus de que confins para sofrer e morrer onde nunca pertenceste. Ninguém te ensinou a defesa e nem sequer partiste bem armado ou preparado para o frio. Quanto mais não preferias na tua miséria o sussurro do vento nas árvores, o canto matinal das cotovias, ou a guarda do sol e da lua.  Ganhaste a importância de seres ninguém. E ali estás, triste ironia, tu mesmo, guardado por duas sentinelas imberbes, talvez parentes teus em juventude. Esperam  viver bastante. Como tu esperaste. Mas a tua esperança foi curta e trágica. Abandonado ao destino, trapaceado.  Na partida, já o incógnito braço da morte te estreitava.

(cont.)

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Na Batalha

 

É um dia de verão com tudo no lugar.  Calor, luz e secura acompanham promessas na fita da estrada. Os cuidados da mente antecipam-se a temperar com esmero a mínima fuga quotidiana e, na antevisão do passeio, nascem-me olhos novos. No ar aquecido, certo gostinho de aventura em imaginários recônditos, anelo de diferença que se faz próximo. 

Paramos na Batalha para almoço, oportunidade para rever o mosteiro que, no século passado, impressionou os meus treze, catorze anos. Daí, a intuída certeza, o espírito da padeira paira por ali em companhia dos muitos portugueses que morreram naquele campo de sangue e poeira, onde frente a frente se esmifraram portugueses e castelhanos. Que as vitórias, já se sabe, são sangrentas. Todas. Ou quase todas. Lá estarão também os castelhanos mortos ainda em maior número e nunca regressados. Em lamentoso silêncio, órfãos de lugar que seja seu, envergonhados da derrota. Todos, vencidos e vencedores, reféns do tempo. O mosteiro ali os atou e entramos juntos na nave principal do templo. Em romagem. Eu e eles. Mas também eu e o espírito (ou a lembrança?) dos que me são queridos. Unidos. Revivendo em alegria a vitória de Aljubarrota. Gratos aos soldados de então, mortos perenes e tão presentes, a darem-nos a dianteira numa vénia toda  medieval, façam favor. Tu, naquela satisfação que a história e a delicadeza sempre te trazem, obrigado. Comprei um bilhete ao engano da funcionária, que éramos muitos e ela iludida e pesarosa, só um?, os acompanhantes do realmente jogando à defesa num gesto vago, ficamos por aqui, já conhecemos. Ouvindo a nega, certo ar consternado dos medievos mortos que por ali zanzam. Os meus próximos a rodearem-me embevecidos, vamos, vamos. Mesmo por detrás de nós, a padeira sacudia-se numa nuvem de farinha, na testa, o rasto branco de um dedo. E logo um soldado-peão a fazer-lhe sinais e a apontar-lho com a lança. A mulher num ressalto, já a alçar a pá. Eu, apercebendo o gesto, deito-lhe o indicador à fronte e mostro-lhe a polpa  enfarinhada. Ela acalma e pousa a pá, a mão a descansar no cabo, certo ar de mofa percorrendo a soldadesca em cacho. Tu a dares-me a mão, anda. Minha mãe e meu avô, vão andando na frente, a gente vai ali cumprimentar o Santíssimo e já vos agarra.

Sei, já disse isto muita vez, repito-me e torno: franquear a entrada  de obra de arte faz de mim espontânea penitente, ajoelha-me.  Grata até às milionésimas de mim, sou micro grão de areia, não emperro nem facilito a engrenagem, apenas existo. Rendida. Foi nesta exaltação expectante e desligada que percorremos o visitável do mosteiro. Primeiro, a ínclita geração. Os pais, D João I e D. Filipa, fazendo as honras da casa que é como quem diz, do cemitério real. Tu a desfiares pormenores de antanho e os lanceiros acenando aprovações. Que a mim basta a mão na mão.

Corremos a sala. Os filhos rodeiam  os pais como os pintos que não foram, aqueles ínclitos príncipes tinham espírito aventuroso e afortunado. Mas, enquanto isto pensava, virado a mim em exclamativa interrogação, o magote de peões à volta do túmulo do infante D. Fernando. Emendei com uma vénia, todos afortunados menos tu, que foste santo à força e por bem querer do povo e escolha da coroa desapiedada. E a fronte dos soldados a desanuviar. Eu para comigo, ora esta, safa!, até me lêem os pensamentos, ai Nossa Senhora me defenda. Minha mãe atenta aos perigos, lembrando, não toques em nada, olha que eu, a única vez que vi um mosteiro foi em Alcobaça; e depois inscrevi-me no peito de D. Pedro, mesmo, mesmo, num espacinho pequeno no lugar do coração. E olhando-me séria, ia sendo presa. Eu, ó mãe, era outro tempo, agora as correntes e a vigilância não nos deixam profanar os monumentos. Ela lamentosa, estou tão arrependida; ainda por cima desapareceu tudo, se calha lavaram a estátua jacente do senhor rei – e em reconhecido solilóquio – também, estava cheinha de nomes. E eu, D. Pedro não a esquece na mesma, ninguém consegue esquecê-la. E passámos ao corredor do claustro interior.

(cont.)

sábado, 7 de novembro de 2020

Eu, Gato

 

Sou um gato. Um GATO. Não sei de onde vim, mas sou gato, convenço-me que sou, ainda que ela me chame palermices como carochinha, raposinha, bolinha, minha menina pequenina, que são nomes bons para uma menina gata e é claro que isso me baralha. Mas a voz dela é que me enleva, me dá sono e me acorda. Fico no colo  a fazer que durmo (às vezes é sono a sério) e ela vai passando a mão  e fala baixinho, o meu menino, a raposinha bonita. E estou no céu dos gatos. Tenho fixação nela, durmo na sua cadeira e adoro a almofada onde se encosta; e quando ninguém sabe de mim só respondo à sua voz. Eu que mio desalmado por comida, se ela me chama, “gato, gatoooo”, chio como ratito pequeno. Que querem, muda-se-me a voz, os gatos também são mimosos se forem mimados. Quando aqui cheguei era meio pelado, via-se a rosa da pele e pulgas passeando entre os pelitos brancos. Hoje não há parasita que me chegue e estou bem encabelado, a pele rosada é lembrança. Sou um gatinho maltês branquito, rabo tigrado e focinho e orelhas amarelo/acastanhadas; e, note-se, tenho os olhos azuis. Não vou ser muito comprido, já ouvi que sou pouco elegante e tenho barriga, mas não resisto à comida, seja qual seja; desconfio que me chama bolinha por isso mesmo. Se toca a comer, tenha ou não apetite, nem a voz dela faz efeito, cuido de me esganar. Já subo a escada atrás dela e corro o sótão de uma ponta à outra, sou curioso e exploro qualquer recôndito; mas se ela diz, gato anda, vamos descer, apareço e vou na sua frente a pular os degraus que só há uns quinze dias consigo subir e descer sozinho, antes era carregado no colo.

Tenho memória de um lugar onde miava aflito e de uma mão a içar-me e embrulhar-me no casaco, e de eu ser um ninguenzinho de olhos assustados e orelhas muito sujas. E depois trouxe-me para esta casa e gosto tanto de aqui morar. Tenho árvores para subir, terra para escavar, sol e vento. Adoro ir à rua com ela e ficar por ali a brincar e o cão não me assusta. Brinco com tudo, passo horas às voltas com uma folha, um bocado de lã, uma fita de cabelo, e tenho fetiche com novelos. Acho que ela é a minha mãe, se durmo na copa ou noutro lugar e lhe oiço a voz, acordo. Mas já lhe corri o avental de cabo a rabo, lambi-o com vagar e esmero e não achei o que queria. Depois, experimentei chupar-lhe os dedos, mas também não deu. Mas ela tem uma coisa que se chamam braços onde gosto de me esterifar e dormir, e com as minhas patas puxo-lhe as mãos seja par morder e lamber seja para me aninhar como gosto. Ela ri e diz, bebé, és um bebé, tu - e depois -, pareces um coelho assim esticado.

Do que ela não gosta mesmo nada –  castiga à séria – é que puxe a comida da mesa e me sente no colo dela durante a refeição. Já levei muita sapatada. Mas estou a começar a aprender a ficar entre as costas da cadeira e as dela até que termine. Não vai ser fácil.

Fiquem bem.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Há Dias Assim

 

(continuação)                                            

Posto isto, de saliente só houve o exame médico que fiz à tarde. Porque, já se sabe, a mim acontecem-me coisas em todos os lados, não sei se é problema dos lugares se de mim, mas também não vou aprofundar. Comecei por me esquecer de pôr a máscara (estava na mochila), mas a fila deu-me tempo para notar que destoava e lá a coloquei. Quando já estava sentadinha chamam-me  e sem mais nem menos (era a primeira vez que fazia tal exame) dão-me um copo cheio de água e dizem que tenho de beber mais dois. Pensei que podia voltar a enchê-lo no garrafão que estava próximo, escusavam as meninas de estar com aquela maçada, não me sinto nada bem quando me servem.  Pelo sim, pelo não, perguntei se era apenas água. Pronto, soube que não era gesto simpático das garotas o trazerem-me a água ao balcão. Relanceei os olhos e havia mais três pessoas sentadas como eu. Sem beber água. Vai daí, veio-me preocupação súbita e inquiri as meninas da recepção, posso ir à casa de banho? É que isto vai ser muita água… Elas, sim, sim, claro que pode. E logo as pessoas sentadas se levantaram em mola e correram para a casa de banho. Eram corridinhas de passos apressados como quem, nos saldos, quer apanhar aquela blusinha airosa lá ao fundo. Mesmo.

Bom….depois…vestida a batinha azul que espero eu não seja transparente, lá me deitei na maca e, como tinha ouvido a pergunta das garotas a todos que abandonavam a sala do exame, “levou a injecçãozinha”, comecei por fazer a minha declaração habitual, detesto agulhas, não sei como é que as pessoas se picam a elas mesmas, e tal e tal. E o senhor – muito delicado e cuidadoso que ele foi, não tenho nada senão bem a dizer dele e por mim volto lá se precise de repetir. Feito o exame, confidenciaram-me que é um bocado bruto, que isto e que aquilo; boatos, o senhor, rapaz para a minha idade, é uma simpatia e bom profissional. Adiante. Pois a incógnita surgiu-me quando o senhor me disse que a doutora é que ia decidir se eu precisava ou não de injecção. Confesso que não entendi a que propósito vinha a conversa da doutora, estávamos só os dois. Mas como sou pessoa que encontra logo uma explicação para tudo, pensei que ele iria mostrar qualquer coisa à tal doutora que estaria não sei onde, e a divindade decidia se me havia de picar ou não. Pensei, há-de ser o que Deus quiser, mas disse outra coisa. Qualquer parvidade como, assusto-me com agulhas, picarem-me, só em último caso. E vai daí oiço uma voz feminina mesmo ali por cima da minha cabeça que até me assustou um nico aquela suavidade vinda do aparelhómetro, só leva o contraste se quiser, aqui não se faz nada contra a vontade do doente. É claro que fiz logo mais perguntas. Mas ponderei, já estava ali em trajes menores, tinha-me deslocado, não comia há uma data de horas e sentia-me cheia de água (foram quatro copázios , toda eu era piscina); e presumi ser do meu interesse avaliar os danos. Além do mais, apesar do senhor ser paciente como Job e um profissional de estalo, não me apetece, para já, repetir o exame. Portanto, anuí à injecçãozinha. E eis senão quando saio da maca muito ancha e vejo uma senhora logo ali, só um vidro de permeio. Fim do mistério.

E pronto. Foi isto. Não digam que eu não precisava de um café com leite.

 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Há Dias Assim

 

É certo e sabido, nos dias em que preciso fazer tarefas que protelo sucessivamente e nunca na vida me hão-de apetecer, bebo um café com leite escuro. Depois, já se sabe, nasce-me uma sexta feira toda catita. Portanto, como sou mais ou menos autosuficiente a fazer nascer sextas feiras, olha, foi mais uma.  Posto isto, parti à aventura matinal como quem vai para um safari há muito ansiado, no que a Violeta me secunda com muito brio, o que me faz suspeitar  que o mundo canino só conhece sextas feiras (não sei a razão, mas este arrazoado está a lembrar-me Robinson Crusoé).  Pêlo húmido da morrinha e patas sujas da lama nas valetas, a Violeta não é canino de modas e as minhas calças carimbam o cumprimento a mãos ambas – salvo seja - e, nos olhos marotos, um viés de ternura espreita-me por debaixo do pêlo que mexe com  o meu desejo todo dedos na tesoura; e era uma vez uma franja. As minhas desculpas à Lili, mas talvez se passe com ela e a velhice o que acontece no mundo dos homens (em cão, é evidente): fica na sombra, caminha devagar, pouco liga a quem passa, é mais involutiva. Repugna-me um bocadinho pensar isto, mas é verdade que prefiro a Violeta apenas por ser mais nova – fisicamente, são gotas da mesma água -, é mais garrida e amorosa, corre desalmada e sabe de cor todos os lugares de paragem do dono. E estes sentimentos, meus senhores, não abonam nadinha a meu favor. Duplamente nadinha, embora eu mesma não vislumbre para que serve um duplo nada. Avante.

De seguida, fui fazer o detestável circuito daquelas pequenas coisas que a gente precisa parvamente e sempre vai adiando a compra. Entrei no super sem máscara, voltei ao carro a buscá-la; quando quis pagar, dentro da mala, apenas dois pares de óculos  e a menina desinteressada da modalidade de pagamento; empanquei a fila à procura do que me faltava, pus gente a agastar, e lá fui a casa pela carteira.  Perseguidora das minudências, entrei depois na papelaria sem máscara e, durante uns cinco minutos, ninguém deu por tal; comprei dois artigos e ao terceiro a cliente que entretanto entrara, ai, ai, ai. Lá fui buscar a máscara ao carro que nem estava muito próximo. O apetrecho, que transporto sempre na mochila, impava teimosamente no banco do veículo (escrever ou pensar veículo lembra-me cartas de condução, exames de código, operações de stop). Chegada a minha vez na retrosaria, tinha esquecido em casa o artigo que queria completar (levava máscara). Voltei atrás (re...re...re...). Ainda na loja, conferi as compras (escrevo-as num papelinho) e intriguei. Havia um item que rezava “azul”. Assim, simplesmente. O que me teria levado a pensar que lia a palavra e, abre-te sésamo?!, a jovem balconista bem palpitou, mas sem resultado; e digo-vos, já passou meio dia, doze horinhas completas, e ainda não resolvi a incógnita.

(cont.)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Contamos Sempre Com Eles

 

Das pessoas que conheço e se passeiam pelo planeta Terra há aquelas de quem sou amiga. Conto com os amigos para um desabafo, uma ajuda esporádica e necessária que os não perturbe em demasia, são companhia em tristezas e alegrias conhecidas. E acontece isto com poucos e bons amigos. Mas minto a mim mesma se disser que conto sempre com eles. Não só não posso contar, como não quero. Os meus amigos têm a sua vida como toda a gente, a família, os deveres quotidianos e não estão sempre disponíveis para mim, o que não invalida o facto de serem bons amigos. O bom amigo não está sempre presente, mas sente quando deve estar e, nesse caso, é científico; sabe avaliar o que sentimos, toca as nossas falhas e intui o que fazer em nosso benefício na hora certa. Amigos desta natureza há muito poucos e quem os tenha bem pode dar graças, são ouro de lei.  No entanto, nem eles me parecem merecer o título do texto.

Bom, há pessoas a quem nos ligamos por amor (tão bonito, não é?), casamento ou união de facto, para o caso pouco importa. E podem até ser namoros que duram uma vida, como é o caso do Presidente Marcelo. Com essas pessoas repartimos filhos, casa, mobília, carro, periquito e o mais que haja. Temos com elas laços que ora apertam ora alargam, mas, sendo laços de arte, não desmancham. Contudo, há os que se desfazem e refazem com as mesmas ou novas fitas. E poderemos, SEMPRE, contar com essas pessoas que o coração escolheu quando escolheu?! Ora aqui está um sim em que não consigo acreditar. Que, admito, pode ser verdade para uma minoria planetária, mas o resto, a multidão clamorosa, não é gente de “ponho as mãos no lume por ela/e”.

Chego pois à conclusão de que só o amor parental é capaz de ser sempre disponível e agir em doação gratuita e despojada. Não será comum a todos os pais. Mas suponho que abranja uma larga maioria.

Lembram-me uns versos da velha selecta literária que muito me comoveram quando os li inocente do futuro.

“ser mãe é, estando a morrer,

 voz velada, olhar sem brilho,

Ouvindo chorar dizer,

 O que tens, que te dói filho”.         

Não recordo o autor, não sei se fui fiel ao poema original. Mas quero crer que se aplique indistinto a mães e pais.

Um estremecido Bem-Haja a esses com quem, sempre, se pode contar. E oxalá os filhos os copiem e a cadeia se não desmanche. Porque, além dos pais, a única pessoa com quem sempre podemos e temos de contar é connosco.