Ficaram-me as mãos. Revejo como em quadro vivo a eficiência de falanges, unhas e polpa de dedos em dobras e vincos, clareando aberturas à medidas das saliências do papel. As mãos dando forma à embalagem. Depois, a virtude do cálice a encaixar na ranhura, o impo de orgulho no balão de vidro brilhante e muito direito, em espera. E a garrafa meio bojuda a emparelhar, vidro fosco de um azul escurecido. Tudo exacto e sem folgas, acondicionado por tampa a preceito e encerrado na montra da embalagem selada por distintivo da marca. Depois, o remate em saco próprio.
Fazia
frio na destilaria. Espreitei os barris de moscatel onde estagiava determinada
espécie de gin, ela elucidando sem descurar a agilidade em dobras e vincos,
vamos buscá-los à cooperativa acabadinhos de servir ao moscatel de Setúbal e
produzimos um gin original na cor e no sabor que, sobretudo os setubalenses,
consomem com agrado; é um gin novo, experiência que deu certo.
Tenho já dois sacos fechados na minha frente. Enquanto
ela dobra e encaixa, cirando entre os reservatórios. Há os que estão vazios e
os que trabalham em silêncio de produtiva fermentação. Datam da confecção, os
silêncios do vinho. Miro um ou outro já pronto para a garrafa e respeito o segredo que ganha espírito na maioria. Perscruto-os
sem invasão. Estão uns ao lado dos outros. Parecem inócuos. Quem sabe as
boémias alegrias que irão provocar. Ali, ocupados a encorpar de aroma e sabor, crescem
em definição, criam identidade. Ignoram o futuro de festas e confidências onde
morrem alegremente; os pesados silêncios alcoólicos que poderão causar; a
mostra de felicidade aquecida que provocam; que indiscretas tristezas chamam
sem necessidade; as presenças que trazem e incomodam; a coragem que dão ao bebedor;
paisagens de possibilidade que pintam em telas de impossível; o remanso e
agrado que trazem no fecho de um dia de trabalho. Tanto não sabem. E continuam
a crescer e endireitar cabelo. Uns dentro de um mês, outros a seu tempo, soarão
peremptórios ao paladar, como militar a apresentar-se ao superior, sou x.
Entretanto,
ela já enfileira os sacos no balcão. Pago. Sorrimos as duas desejando-nos um
bom Natal. Que os meus quatro cavaleiros do apocalipse apreciem a oferta e, em
cada um ela participe ou seja causa de bons momentos.