domingo, 25 de setembro de 2022

A Mesquita

 

Logo que se transpõe o acesso ao interior da mesquita, o visitante desorienta.  Inumeráveis e sumptuosas colunas encimadas por arcos replicam-se em espaço a que não se vê fim. E isto bastaria  para a fazer grandiosa. Mas há a harmonia de conjunto, a cor festiva dos arcos que emparelham as colunas, todos vestindo riscas mouras em vermelho e branco; e há a ordem grácil e profusa da floresta de colunas de mármore. Para onde quer que a vista se expanda, os elementos repetem-se e repetem-se sem cansar, cada homem sentindo-se o centro desse mundo. Talvez, nos tempos de califado, a fé movesse quem por lá se adentrava. Hoje, ou pelo número de turistas, ou por sempre assim ter sido, e à semelhança do que sucede nas igrejas italianas, o quadro que se oferece suplanta o sentimento religioso. A arte, pela sua natureza sensorial, invade quem imerge neste mundo de festa. Na mesquita não ajoelhamos perante um deus, mas perante o espírito e as mãos dos homens que conceberam e deram corpo a tanta maravilha. Nela, saudamos um povo que na sua sabedoria incluía o belo, lhe dava enfâse, o entendia como elemento constituinte do humano. Não é crível que espíritos criadores de tamanha beleza, amantes e desenhadores  de pátios verdes, gente que amava os pomares, criassem apenas movidos por necessidades de louvor religioso ou que o clima fazia prementes. Soa a cultura, educação, a gente que aprendeu a pensar. É bom não esquecer que foram os árabes os primeiros a traduzir e comentar os filósofos gregos da antiguidade. Nascido em Córdoba, Averróis (séc. XII) traduziu e comentou Aristóteles e a cidade de hoje, reconhecida, erigiu-lhe uma estátua. Na Córdoba do seu tempo, o filósofo nem sempre foi tão estimado e terminou os seus dias no exílio. Mas, que os “infiéis” tenham ficado desta forma na história, é uma maravilha. A quantidade de tempo que necessitam o pensamento e a arte para triunfarem!

Quando o espírito recupera da confusão e se situa, quando destrinça a beleza alucinatória que o rodeia e entende que a repetição  não é jogo de espelhos mas real, então pode observar os rendados na pedra, distinguir os elementos cristãos, esmiuçar a basílica onde se celebra missa e que, por mais rica e pesada, não ilude nem assombra a leveza árabe. Ao invés, é esforço de afirmação que mais a sobressalta.   Mas já os olhos reparam, ao fundo, na riqueza brilhante do mirab (lugar que indica Meca),  orientando preces; na arte de dobrar o ferro e fazer dele um aliado que alimenta a beleza do lugar; nas entradas de luz que a fazem tão leve e airosa quanto no exterior parecia pesada.

À vista da mesquita, o Bairro da Juderia e a Calleja de las Flores são um quase nada, simples alfinete colorido. Lá atrás, a ponte romana sobre o Gudalquibir, pedra maciça e robusta nos seus dezasseis arcos, ri do tempo.  

Ai quanto eu gostaria de ver presentes na mesquita os dois cultos. Parece-me justo e natural que também os muçulmanos possam orar em tão esplêndido lugar.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

A Mesquita

 

Aberta à curiosidade turística, a mesquita de Córdoba  é um extraordinário sinal do mundo árabe - início da construção em 786, dados recolhidos no Dr. Google. E digo árabe porque os sinais nela inscritos  pelo cristianismo - por mais ricos, pormenorizados  e abundantes -, não abafam o espírito religioso original. Aviso: embora a visita tenha beneficiado de guia atenta e sábia, voltei a entontecer com a delicadeza monumental do complexo e não sei o que ouvi e nem se ouvi, não guardei palavra.  Tudo se resume, pois, a pareceres sobre o que me apareceu no Al-Andaluz.

Desta vez, o aspecto exterior confundiu-me. À semelhança da casa árabe, a magna beleza da mesquita é interna. Apresenta-se com aspecto de forte maciço, espécie de Caaba que se ergue em opacidade de muros, sem outras aberturas que as portas de acesso. Extravasando o conjunto, a torre sineira emerge, qual lírio em vegetação rasteira. A proposta de habitações de extrema  simplicidade e que são concha com pérola, é pressuposto árabe. Esta característica parece indiciar mentalidade simples e isenta de ostentação, guarda da intimidade. Pergunto se não será antes sinal de fechamento e reserva para com o mundo do outro, um fincapé na mesmidade e sem reflexo. Pergunto se a simplicidade visível não tem cariz de subterfúgio e aparência. Se esse paraíso de frescura e beleza, esse íntimo recôndito familiar, não serve apenas para deificar o ser masculino que o habita. Não há qualquer dúvida, o pátio familiar tem natureza íntima e intimamente feminina, é, ainda hoje, tecido e conservado por mulheres. Mas, com excepção de concubinas langorosas, não tenho memória de mulheres árabes usufruindo das pequenas maravilhas que ajudaram a criar e de que cuidavam/cuidam. E não será ainda um pouco assim a vida das mulheres em geral? não sobram para elas, em qualquer religião e mesmo sem ela, as adições de trabalho com as quais aguentam a harmonia familiar? Pergunto-me se, em Portugal cristão onde a linguagem do amor é mandamento, não são elas quem menos goza de tempo livre dentro de casa e fora dela. Talvez a última questão seja apenas lamentável certeza. Mas voltemos à mesquita.

Já dentro de portas, o laranjal à soalheira e o gigantismo da enorme torre, surpreendem. Este pátio foi local de abluções, como é usual na prática da religião muçulmana. Existem ainda as regueiras por onde a água corria e é fácil descer ao tempo de emires e califas, escutar o sussurro da água corrente e das lavagens, assistir ao descanso masculino sob as árvores, raios de sol penetrando a folhagem e desenhando com mão tremente em rostos e vestes. Não serão as mesmas árvores, as regueiras sofreram aperfeiçoamento, mas isso não obsta a que aquele espaço fosse, à semelhança dos pátios caseiros, um oásis repousante onde homens morenos e de abundante pilosidade lavavam corpo e espírito e se preparavam para o encontro sagrado. Onde estarão as mulheres que, separadas e submissas, assistem do seu lugar de segunda aos rituais religiosos. Desconheço pormenores da religião muçulmana, mas pergunto-me se o pátio da mesquita incluía um espaço de purificação feminino. Ou se Alá, pela boca de Maomé, considerando a congénita impureza feminina, criou as abluções purificantes apenas para o mundo macho eleito para contacto directo com Ele. A forma unilateral como os livros sagrados marcam a evolução da humanidade é por vezes criminosa. Se no mundo dos que pregam o amor universal acontece o que sabemos, que dizer de quem segue o alcorão.

 

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Paisagem

 

Um passeio por Córdoba antiga, caminho de ruas estreitas sustentado em abundância de pátios e janelas de sacada. Aqui e ali, um coalho de flores mimosas e trepadoras, alegres manchas de vida colando na alvura das paredes; ou, transmutada em criatura benévola e angelical, a vegetação desborda da espessura protectora de janelas e varandins, e flutua no calor sem uma oscilação, semelhante a cumprimento de mão colorida e hospitaleira que espreita a rua. Na brevíssima sombra da cal, esperam o passante pelas esquinas ou acenam das alturas em ruas silentes e receptivas.  

É um quotidiano fêmea e com gosto de si, afeiçoado a passos estranhos que pasmam em cada cotovelo e pátio. Mas as pedras do chão guardam e distinguem a marca dos residentes; fingidores de moirama, ferro e azulejos decalcaram-lhes o gesto; e a dardejante cal exibe-lhes o zelo. Deles, recônditos e penumbrosos, sabe-se o que, em exercício de bom gosto perdulário, esbanjaram no exterior de gineceus impenetráveis. E mais se encontram na algazarra de esplanadas e cafés, que cruzando as ruas onde moram.

Noite fora, a atmosfera sofre a mesma abulia opressiva e transpirada.  O ar continua morno e sem leque. Espreitando da ponte sobre o rio, não há folha que se agite. Sobram lentos e incansáveis passos, murmúrios de conversas de onde em onde cortadas por um choro de criança ou um braçado de meteórica alegria adolescendo pela noite; nos mais velhos, a pausa a meio; ali, a foto que se repete com ou sem stick, talvez para uma rede social, talvez recordação; e os crentes alheados do mundo, rezando de pé, costas apoiadas na parede, os crentes que salmodiam e cantam à imagem pequena que se eleva a meio da ponte. Olhos nos olhos, pedintes e imóveis, imergem na função. E o mundo respeita o ritual, revessa-o em semi círculo de passos, lança soslaios à sacralidade inesperada. O turista quer entender num ápice e tenta medir a fé pela aparência do símbolo. O que mais impressiona nem são as mãos e braços abertos em súplica. E nem os cânticos repetidos em monólogo. O que toca os transeuntes é a atenção extrema e a encantada fixidez do olhar que a juventude moderna das suplicantes exibe sem ostentação ou temor. Alguns notam-lhes o modo natural como, finda a prece, regressam airosas e desenvoltas ao mundo trivial. Talvez invejem as almas claras e sem poços, como declarou António Ferro. E eu digo apenas que as vestais de Córdoba eram lindas e reais.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

À Beira do Guadalquibir

 

Quando o tempo me parecia parado e era a vida que nele corria, visitei Córdoba e a Mesquita. Lembro o nome do hotel, as escavações que decorriam perto, fragmentos de um restaurante e, claro, a mesquita.

Na segunda visita apercebo a mudança de paradigma. Não é a vida a correr. Nem o tempo, duração indefinida onde o meu tempo se desenvolve. Que esse sim, parece às vezes correr e é certo que se vai gastando. Olho Córdoba da janela, aprecio a largueza moderna das avenidas, as praças e rotundas arborizadas, estátuas desconhecidas - a cada povo seus heróis e suas Aljubarrotas (longe de mim brincar com estas coisas, Aljubarrota é um fiasco para os espanhóis). O sentido do irrepetível, que antes não me ocorria, vai ganhando peso e alumia os pequenos gestos, valora pormenores ínfimos, destapa urgências na paisagem.  Tudo indica que não poderei vir buscar os momentos que não vivi junto do mar. Essas, são certezas de Poeta. Quem dera, fossem também minhas.

Descemos em Córdoba antiga, e ela, prostrada em langor e sudação, estende-nos um resíduo de sombra quente. Horas de ar condicionado fazem mais insidioso o impacto de calor.  Cidade clara espojada na soalheira que estorrica, bafo quente de dragão. O Guadalquibir, refresco apenas do olhar, corre amodorrado, sem uma brisa. Córdoba faz presente a tortura do meu Alentejo “nem uma sombra, nem um abrigo, não há campos como os teus”. E a serenidade coalhada das pedras seculares que resistem, não desmoronam sedentas, não desfalecem de cansaço. E bebem apenas da chuva.  Enfileiram como exército compacto, colam umas nas outras, quando já nada resta das mãos que ali as afeiçoaram. A história esquece os obreiros. Para trás ficou o esforço dispendido. Por elas passaram mouros e cristãos, gentes e seus actos de amor e ódio, livres pensadores e fanáticos religiosos. Vejo eu que a noite acoberta os enamorados. Muito saberão as pedras. Será coisa de amores antigos desejar essa prisão de sobressalto em que participaram e de onde não se quer fugir.  Hoje, a espessura das pedras é apenas firmeza murada, denúncia de frescura interna.  

Pelas ruas da cidade velha, turistas nórdicos encarnejam como romãs e, garrafa ou copo na mão, acachapam pelas sombras, suor a escorrer. Que o resto dos humanos guarda a siesta como se fora uso seu.  Desimportada de nós, a cidade recolhe-se num mutismo antigo, anestesiada na modorra luminosa, bancos de pedra capazes de fritar ovos.   

sábado, 17 de setembro de 2022

Na estrada

 

Amo viajar. Desde o fazer das malas, na ânsia - cada vez mais moderada – do inesperado. Agrada-me o destempero dos dias aniquilando o quotidiano.  Necessidades e obrigações diárias foram rasteiradas, jazem lá para trás, moribundas, corpo exangue a que falta alimento. Toma-me uma aragem de novidade, a vital errância dos passos, o desplante de existir fora de portas. As humanas portas gradeadas. O ferro, alçando em figuras sugestivas, configura em beleza o limite, ilude cadeados, qual pátio de Granada.

O caminho é sempre outro. Sei na alma o que os olhos vêem. Sei os pastos segados e por segar; os novelos de erva seca onde os animais hão-de saciar a fome e a saudade dos campos; as ervas altas e soltas que rodeiam as bermas do alcatrão; a desordem dos sobreiros expostos, alguns ainda em carne viva, o número dois escrito na pele. Lembram-me o braço de Meryl Streep no filme A Escolha de Sofia. Desfilam-me nos olhos, um após outro, e outro, e outro, correm ininterruptos na paisagem. Como o filme, que tanto pergunta. A escolha da personagem é o pavor de apontar qual dos dois filhos deve viver? Aquela decisão rápida, que, pressionada, toma num minuto, talvez num segundo de pânico e angústia total? Tanto me parece que a escolha foi outra. Tanto. Tanto como a corrida dos sobreiros para lá da janela, alguns com ervaçal até à cintura. A delgada cintura dos dias que abalava e comovia Eugénio nos seus poemas de amor e terra. Como olharia ele a nudez envergonhada dos sobreiros, a solidão da paisagem alentejana, a míngua que não se apercebe senão no bafo quente da terra, na comichão do restolho que avermelha pernas e braços, nos torrões que endurecem e gretam por secura de dias inexoráveis. Ele que colhia no rumor verde dos pinhais e na caruma, e traduzia a inclinação das espigas em imagens poéticas de abrasar.  Meryl e Kevin Kline viviam na inclinação das espigas. Na breve inclinação das espigas. Aos alentejanos não os perde a inclinação das espigas, vivem a sua sina desde a raiz do trigo.

 Lá fora, na janela, o montado cresceu, mudou-se em imensidão copada. Em terras de Espanha, as árvores já não gritam na paisagem, não se rebelam, assumem o conjunto. Aclimataram em grupo ordenado. A alma de pobreza hiante e tragédia solitária, abandonou-as. São apenas árvores a perder de vista.

 

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O Ano do Pensamento Mágico

 

O Ano do Pensamento Mágico chegou-me há pouco, por troca de As Velas Ardem até ao Fim, obra adquirida há um ror de anos. Aconcheguei-o dentro da mala de viagem e gastei nele  algumas horas de descanso. Desconhecia a escrita de Joan Didion, mas ficara-me na memória uma entrevista da jornalista e escritora,  visualizada na net à data da morte. Foi ela que me levou ao livro. Em boa hora.

O título da obra, apraz-me dizer, adequa-se ao conteúdo. Existe efectivamente uma idade da infância com essa característica, é a época do pensamento mágico, aquela em que a criança acredita piamente na imaginação e o que imagina surge como real. Baseia-se na crença de que a realidade se pode modificar pela força do imaginário. Quem lê o livro, que descreve um ano especial na vida da autora, entende o que o título condensa. É um livro sobre a perda. Não é, de forma alguma, um livro lamecha ou de autocomiseração. Filtrar tais características foi preocupação constante e referida amiúde. Didion analisa o que sente. Nesses momentos de dor maior, conta-se, evitando causar no leitor as nuances sentimentais que só a ela pertencem. O Ano do Pensamento Mágico trata da narração e análise de uma situação presente com os inevitáveis regressos ao passado que toda a análise exige e, no caso, lhe surgiam espontâneas ou as buscava na premência de ocupar o pensamento. A situação concreta  é a morte súbita do marido. O acontecimento funesto ocorre quando a filha de ambos se encontra também à morte com uma infecção generalizada provocada por uma gripe.

Julgo ser uma das obras mais conhecidas da escritora, e a prova de que não induz à lágrima é que o li em viagem e, se não me fez chorar, também não esmoreceu o interesse. Portanto, recomendo.

Não vou explanar o livro, merece leitura detalhada e individual; é forte em pontas por onde pegar e pode ser abordado sob várias perspectivas. A obra estriba-se em algumas frases que se vão repetindo, expressando perplexidade ou apenas constatação. Há a evidência de que tudo pode mudar de um momento a outro, estás bem e logo deixas de estar; a noção de que será sempre esse o caminho do homem “assim como era, agora e sempre, pelos séculos dos séculos”; a premonição que parece assombrar algumas pessoas acerca da morte, “digo-lhe que não devo durar mais de dois dias”  a mesma de que vai encontrando – a posteriori - sinais no próprio marido. E outras mais que não cito, mas estão expressas.

Mas, o que em mim releva não é somente a admissão vivida na carne dessa mudança súbita, da perda de chão que se abre no momento em que o normal desaparece de supetão, da incompreensão sobre o seguimento da vida depois de desfeito o laço por falta de um elemento. Retive a frase que os unia aos três, a afirmação que o pai segredou à filha antes de a levar ao altar e continuou a segredar-lhe quatro meses depois, no coma, “mais que um dia mais”, recordando o que Audrey Hepburn (lady Marian) disse a Sean Connery (Robin Wood), depois de beberem a poção fatal, “amo-te mais do que um dia mais”;  “Mais do que um dia mais” foi o que Joan continuou a segredar à filha quando o pai já não podia fazê-lo; “Mais do que um dia mais” foi o que a filha citou nas cerimónias fúnebres do pai.

Parece-me que, mal possa, vou ler “Noites Azuis”.

Obrigada, Joan. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Branco no Branco

 

Encostas a face à melancolia e nem sequer

ouves o rouxinol. Ou é a cotovia?

Suportas mal o ar, dividido

entre a fidelidade que deves

 

à terra de tua mãe e ao quase branco

azul onde a ave se perde.

A música, chamemos-lhe assim,

foi sempre a tua ferida, mas também

 

foi sobre as dunas a exaltação.

Não oiças o rouxinol. Ou a cotovia.

É dentro de ti

que toda a música é ave.

          Eugénio de Andrade

sábado, 3 de setembro de 2022

Feira do Livro 2022

 

Perdoem-me o saudosismo, mas sinto falta dos rituais de outros tempos. É mal próprio, mas também comum e incontornavelmente espontâneo na faixa etária em que estou plantada – de pedra e cal e em fim de linha.  Pois. Este ataque de saudade vem à pala de outros tempos (grande novidade) e é intróito para a Feira do Livro de Lisboa em 2022.  Apesar do ano palerma que fazemos acontecer, continuo a apostar nele. Qualquer número em que os cisnes estejam em maioria, só pode ser navegável; o busílis é que, em numeração de toda a ordem - não armo em esquisita -, sou um zero à esquerda da vírgula; logo, esta verdade reconhecida retira valor às pretensas airosas aves que imagino na data. Bom. O melhor é retomar a Feira ou ainda me perco nas voltas dos cisnes, cujos são negros e evoluem em águas turvas.

Pois é como vos digo: sinto enraizada saudade dos jacarandás em flor. Que a Feira, em Agosto, oferece clima mais seguro e propício a saídas ao fim da tarde. Ou anoitecidas. Posso até acrescentar que, se fora em Maio/Junho como era de hábito, lá porfiava em duas sessões, tarde e noite. Assim, fico-me pela noite. Percorro os poucos pavilhões que consigo (este ano, se não fora ter ajuda, visitava apenas um), na Happy Hour/Hora H – uma hora não dá para nada, os editores não pensam nos forasteiros que estão de visita e só têm uma noite para compras. À pressa, carrego-me de livros e desço para o Marquês que, no seu pedestal, imperturbável e completamente indiferente ao meu carrêgo, não tem uma palavrinha de incentivo ou o gesto galante de descer e mos levar até ao Metro. E, palavra, passam-me os jacarandás. A noite não favorece a contemplação de jacarandás.  É já em casa que recordo as sombras escuras que rodeiam a feira e o aprazível diurno surge-me assombrado e misterioso, a rua que tanta vez desci, a sós e acompanhada, deixa de ser rua e passa a lugar comum, sítio onde imagino não existam pares enamorados em românticos amplexos, desvendando mistérios do corpo que mais se sentem na alma – isso também passou de moda, hoje é tudo tão claro e adstringente que até chateia –, mas carteiristas ou outros artífices de mesteres escusos. E também não me custa pensar a penumbrosa rua de jacarandás sem mistério ou beleza, reduzida a caminho funcional, pisado sem préstimo por gente que vai ou vem da Feira, que desce ou sobe, consoante o sentido do peão. E aperta-se-me o coração. Incandescem-me na memória os jacarandás em flor do Parque Eduardo VII, o chão pejado daquela doce neblina aterrada no asfalto,  a ternura esparsa no halo lilás que guarda a Feira, o negro recorte dos ramos no azul, súplica estética que os anos moldam e são apelo ao olhar de quem passa. Assim, proponho-me visitar o Parque em junho, o eu diurno fazendo uma revisão completa, alimento da saudade que virá. Se um dia, por milagre, o meu ser de terra virar árvore, quero ser jacarandá.