domingo, 29 de junho de 2025

Comentário

 

        A sorte não me bafejou com uma fé inabalável. Cristã e católica, incluo-me, segundo algumas perspectivas, no grupo dos que, de vez em quando, não praticam um ou outro mandamento. Naquele grupo – ouvi esta afirmação na rádio – que é julgado de conveniência, quase um “assim também eu” pois assume o catolicismo mas desliga, aqui e ali, de alguns dos seus mandamentos. Teve a sua piada ouvir de um agnóstico, em jeito de mofa, qualquer coisa como “dizem-se católicos, mas também que não são praticantes” (não estou a ser fiel à textualidade da afirmação que entretanto esqueci). Ora, eu que isto ouvi, fiquei a repontar. Pareceu-me mal. Dir-me-hão que só abespinho por fazer parte de tal grupo. Nada contra o agnóstico – cada um assume o que mais lhe quadra e com que se identifica. Mas gostaria de apontar que os católicos não praticantes se dividem - pelo menos – em dois grandes grupos. O grupo dos “católicos só de nome”, ou seja, são católicos porque foram baptizados, casaram pela mesma igreja, fizeram em seu tempo de alunos catecismo e comunhão por obrigação escolar; para eles, de forma geral, a religião resume-se a tais actos simbólicos. E há um outro grupo, a que creio pertencer – que não olha igualmente para os dez mandamentos da sua igreja e nem lhes obedece de pés juntos; que até, perdoe-se o alarvismo, cumpre alguns interpretando-os. Mas se esforça. Que pode não “guardar os domingos e dias santos” ou seja, não frequenta as missas de domingo e dias santos e trabalha indiferentemente nuns dias e noutros. Se for uma mulher antiga como eu - velha, vá -, trabalha sempre porque o acumular de tarefas será pior para ela. Adiante. 

        Sempre me senti católica e não totalmente praticante com algum orgulho. É o mesmo que dizer que tenho algum orgulho nos “pecados” que assumo e são desobediência às leis divinas. E vem este senhor desmandar. O que não significa que ele ou eu tenhamos inteira razão. Por minha parte, advogo que não cumprir linearmente os mandamentos é humano e normal; sinal de que se pensa neles e, em circunstância, se opõe algum bom senso aos preceitos criados há mais de dois mil anos e supostamente entregues por Deus a Moisés. A mim me basta o primeiro mandamento “Amar a Deus sobre todas as coisas”. Se isto acontecesse, os restantes nove preceitos poderiam desaparecer; como dizem nuestros hermanos, “no hace falta”. Mas como alguém (Deus?!...) deve ter intuído que este mandamento é um ideal – e é mesmo -, tratou de informar mais nove corolários de ordem prática a fim de orientar a acção humana isenta de mal. Ora a grande verdade é que não somos isentos de mal, as leis divinas, por serem morais e um “dever ser” deixam-nos a liberdade de não as cumprir. Não me parece que deixemos de ser católicos por sermos humanos, a infracção faz parte de nós. E quem não tiver pecado, atire a primeira pedra. Quanto ao primeiro mandamento, transformo-o em “Amar os outros como a si mesmo”, coisa tão impossível como o que afirma a primeira tábua de Moisés. Mas é que não sei amar um conceito, pura abstracção. Os outros são concretos e sei o que fazer no sentido de. Mesmo se o não faço.

        E é isto. Biépi.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Tempo entre Parêntesis

 

        A força da vida vegetal vê-se a olho nu, pode mesmo sujeitar-se a medição e, se assim procedermos, saberemos o tempo em que a natureza é capaz de submergir um jardim, sufocá-lo de ervas que brotam enclavinhadas umas nas outras, vindas da humidade da terra. Já o filósofo de Mileto observava: tudo que é vivo precisa do húmido para existir. Na primavera a terra enfeita-se como para uma festa e se déssemos livre curso aos enfeites, devinha intransitável. Por vezes imagino esse mundo natural num crescendo de tudo cobrir, repleto de pequenos animais esquisitos e venenosos que onde tocam deixam bolha, maleita, mau estar. Penso em aranhas reboludas e babosas, ventre em felpa engandora, mosquitos vorazes, e o mais que vive indómito na imaginária natureza abandonada a si mesma. A seiva rebenta e corre pelo chão, os campos viram arco íris, beleza que o gado não vê, mas sente no estômago, que é como quem diz, baldeia na pança ou bandulho. O gado remói a beleza que já não é ela, tanto arrota florinhas breves como ramos de esteva e roamaninhos, lagartos que não fugiram a tempo (será?), talvez até ratos do campo bem pequeninos que marcharam enrodilhados no ervaçal. É claro que se os pobres não conseguirem fugir daquelas bocarras, talvez elas dêem por eles e os deixem escorrer pelos beiços, misturados com um cuspinho esverdeado e alguma haste seca que lhes cai da boca ou espreita lugar lá dentro. A vida interna de um mamífero é mecanismo sincronizado de várias estruturas interligadas. Como é que poderíamos não morrer?! Máquinas que vêm à vida têm de avariar. E vão avariando. Trabalham a remendos até um dia. Assim os humanos mamíferos.

        Bom, veio tudo isto a propósito de ter observado na praia – com muita ternura, esclareço – essa força vital que a natureza dos seres vivos traz consigo. Foi o caso do raiozinho de luz que vou contar. Estava eu olhando a água que sem acaso não é do meu mar, quando dei por eles. Estavam próximos de meus sisudos pés mergulhados em soalheira letargia. O meu olhar perdia-se tão na distância que os saltara. Faziam parte da família que, sem apercebermos, nascera perto do nosso guarda sol. Havia um juvenil pai adormecido deitado na sombra; uma mãe fotógrafa ao minuto, sempre rondando as crias para mais um recuerdo; e os dois garotos, completamente alheios aos adultos, entretidos no seu mundo. A mais velha teria uns quatro anos no máximo e talvez que ele nem dois – metidos em fatinhos de banho de padrão igual, a curiosidade da fralda espreitando na cinturinha dele. E eu que pensava na morte da bezerra, dei conta das crianças. Com a pá, a garota escavara um buraco e saltava-lhe para dentro para depois se içar ao exterior– a fundura tapava-lhe as pernas e o princípio do tronco. Entretanto, o garoto olhava muito atento. Ela repetiu várias vezes o movimento sempre seguida pelos olhos dele. A dada altura, ele arriscou pisar a elevação de areia escavada que aglomerava na borda e, perninhas bambas, quase se desequilibrou e caiu no buraco. A mãe fotógrafa não sei onde andava, sei que me sentei repentina na toalha, pronta a agarrar o bebé. Mas equilibrou-se enquanto a mana ia e vinha, buraco dentro, buraco fora. Captei o anseio no olhar, desejava imitar a irmã. Aguardei. Em menos de um minuto, atirou-se. Saiu-me uma interjeição, mas semi descansei ao vislumbrar a cabecita bandeando ao choque dos pés na terra. Caíra de pé. Pensei, agora fica ali até que a irmã o puxe. Qual! De repente vi a perninha curta tentando a borda sem conseguir, era quase só um pézito e um bocadinho de perna procurando apoio. E repetiu. E voltou a repetir. E ainda outra vez. Sem sucesso. A irmã não ajudou, não deu conselhos, a irmã continuava a jogar o fora-dentro, fora-dentro que o incentivava. À quarta vez, não sei bem como, apareceu um joelho pequenino e parte da coxa. Senti-lhe o esforço de alavanca que durou o que me pareceram vários minutos de músculos retesados, mas podem ter sido segundos. Num repente, estava cá fora. Não chamou ninguém, nada disse, mas o sorriso de vitória gloroficava o rostinho pequeno; parecia ter crescido. E logo se atirou de novo ao buraco. Quanto aqueles musculozinhos pequeninos se esforçavam na subida! Pensei no macaco da psicologia e mais no cacho de bananas. Seria a mesma coisa?! Nem que fosse. Na criança, o esforço é de uma ternura comovente. E não foi assim que muito aprendemos, por esforço e imitação?!

        Quando saí da praia, o abençoado pai mantinha a postura de sono solto, a mãe retomara a fotografia e os rebentos eternizavam o sobe e desce. Inenarrável aquela pernita titubeante, o pé como que pedindo ajuda à areia que desmoronava. A muda tenacidade do garoto. Nas minhas mãos, o formigueiro receoso, os meus gritinhos de velha tonta de cada vez que ele se atirava despedido e sem dar por mim.

        Foram momentos de espontânea beleza, ternura natural exposta à luz. Quanto o desejo nos motiva!

domingo, 15 de junho de 2025

Tempo entre Parêntesis

 

        Há uma idade em que os planos solares que fizemos, se acaso chegam à concretização, se mudam em dia inglês: têm as quatro estações. Na concepção, eram assombrosos; na realidade, são assombrados. Nublam-se por mau estar que esperava a hora de afirmação: percalço de uma queda; um desaforo intestino; uma alergia súbita; um dente esparvoado; um sabe Deus o quê a retirar-nos do éden em que não nos lembrámos de incluir os vários desmancha-prazeres em que o corpo se desdobra. Não é mau de todo, empresta algum movimento à roda da vida e redobra o valor beatífico de “um dia por outro” sermos como nos lembramos de nós, facto que é passado, mas de que nos custa muito despegar (termo que me lembra o sempre nítido “deslarga-me” de Lobo Antunes), portanto, o presente, nesta circunstância, é pouco usado; raro contamos com a realidade do que somos. Se padecer em férias é pior que sofrer fora delas, é, contudo, melhor que não as ter. E é isto. Vamos vivendo.

        Jamais o meu ser tinha experimentado férias de praia que não metessem ao barulho supermercados, fogões, idas à praça do município...coisas de quem não descansa nunca, sina da maior parte das mulheres portuguesas. É claro que excluo as mulheres que têm casa própria em qualquer estância e em casa uma Maria que lhes faz tabuleiros de carne assada; bacalhaus à isto e aquilo; arrozes e o mais que segue congelado se acaso a dita Maria não vai atrás agarrada às geleiras e a aparar as garotices dos pimpolhos. Está para todo o serviço, sacudir toalhas e aspirar a areia, vestir e despir a garotada, fazer mochilas e lanches, lavar e passar a ferro, ir às compras e encarregar-se das refeições, pôr a casa em ordem. Pois é, mas desta vez, mesmo sem Maria, consegui. Digamos que paguei a várias Marias. E gostei de fazer vida de porco, comer, dormir, tomar banhos de mar em água menos fria que a da minha praia. Porém, concordo com minha irmã: aquela água não nos liberta a mente, falta-lhe a frescura que nos leva as mágoas, senão todas, grande parte. Diria que não cheguei à catarse. Mas almejo. Compreendi – finalmente – quanta coisa a meus olhos se fechava (o trabalho mostra resmas de factos e impossibilita outros mais; tudo é como tem de ser). Gente desocupada de funções tem tempo para ver mais, pensar melhor, observar pormenores que escapam ao corre-corre. E descansar.

        Não me desagradou a vida de animal preguiçoso. Sentava-me na varanda a assistir ao despertar da outra gente, quando tudo era quieto e uma breve claridade antecipava o sol. Descia e o pequeno-almoço tinha pouca gente e pão muito fresco; diariamente bendizia aquele pão ainda morno que não tinha de buscar na padaria e me sabia a maravilha enquanto os pardais esvoaçavam à minha volta. Um ou outro passaricava nas costas da cadeira a meu lado e logo batia asas rumo à largueza das janelas abertas. Sem horário e tão perto da praia, seguia leve, desobrigada de carregos. Isto enquanto a maior parte do pessoal amontoava piscinas fora, à torra na respectiva espreguiçadeira, escutando as quedas de água fingidas (caso pudesse ouvi-las, que a gritaria de miúdos e graúdos desentraitados nos escorregas, era enorme). E a eterna mania da conversa ao telemóvel. O que deixará esta gente por dizer?! Talvez quase tudo seja ruído, barulho, nada. Tanto de nós é nada em vida tão curta como rara. Que estranhos somos.

(cont.)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

B-MAD

 

        Numa tarde desta primavera atípica - era a véspera do dia dos museus -, resolvi visitar o MAD (Museu de Art Déco). Não entendo a razão de tanta demora quando sei que me agradam os ingredientes deste tipo de arte. Mas pronto, lá fui até ao Calvário depois de uma prévia olhadela ao google maps que tem a virtude de indicar o percurso consoante o meio de transporte; pelo que sou muito grata à dita ferramenta.

        Ao invés do que me sucede quase sempre – lá diria Aristóteles que o necessário é o que acontece sempre ou quase sempre -, cheguei, sem premeditação, uns dez minutos antes da última visita guiada. Comprei o bilhete e já está. Por ser a única portuguesa, a guia dissertou em inglês. No problem, era inglês para iniciados como eu, com a vantagem de perguntar em português se não entendesse. A garota era jovem e principiante, estava um tanto nervosa. Mas portou-se lindamente, foi simpática e sabia a lição. No final, os falantes da língua inglesa deram-lhe parabéns pela boa pronúncia e o mais. No meu caso, agradeci o facto de ter respondido – em português - às várias questões que me suscitou a visita (sou um bocadinho chata).

        Pois é, o museu pertence à Bacalhoa que é como quem diz a Joe Berardo, e, no final da visita, houve prova de vinhos que recusei por tal néctar não ser do agrado das papilas gustativas que me pertencem. Pensam vocês que não entro no mundo do paladar divino e talvez seja verdade, de vinho desgosto e ambrósia não sei o que seja. Mudando de assunto: estou aqui a pensar, desconheço se os seis euros do bilhete incluíam a prova ou seria um extra. De qualquer modo, não provei nem comprei a bebida. Mas saí do Calvário completamente ressuscitada; não as pernas, não a mente, inteirinha, da ponta dos cabelos à ponta dos pés, ténis e tudo.

        Amei aqueles objectos delicados, originais e de desusado requinte. Candeeiros e lustres, os primeiros convidando intimidades penumbrosas e ciciantes em seus vidrinhos coloridos; os segundos, num apelo ao glamour intemporal da belle époque, afectivos polvos em abraço de beleza esfuziante, modelados em cristal e brilho. Perpassei, milimétrica, a elegância das peças de louça. Linda, a mostra-o jarra de Bordalo Pinheiro refinado e de chapéu alto, aligeirou o popular e surge de fraque, usa laço e talvez monóculo, faz-se citadino cingindo a si a bengala de castão dourado; e a sua obra não desmerece. Ali brilha um Picasso feito vaso, vários Laliques com sua ternura delicada e contundente a entranhar-se, imorredoura, na sensibilidade de quem os repara. 

        O MAD é uma viagem ao pormenor e pareceu-me muito feminino. Ou tão só uma homenagem à Mulher como nos sugere a amostra na entrada. Uma parte existe dedicada às bailarinas. Nela, as estatuetas das ditas senhoras abundam. E é admirar-lhes a elegância do gesto, a breve curva das mãos, o arco tenso do tronco, a pose de dedos, a leve asa de pés. Olhando-as, bibelots pequenos e frágeis, é impossível não as aliar ao artista que lhes deu o ser, de certeza com amor. Só é possível criar coisa tão fiel ao original, se esse trabalho reproduz o acto amoroso entre criador e criação. E ainda: existe uma sala dedicada à mulher, talvez seja um quarto ou o quarto de vestir, já não recordo. E é infinitamente feminina, tão bonita que apetece. Ainda que saibamos não ter hoje habitações onde caiba tal gineceu (talvez o mesmo que Virgínia Woolf referia como “um espaço que seja seu”), é agradável e até saudável saber que alguém o teve assim, repleto de pormenores delicados. Ou muito semelhante. Digo eu, proletária convicta a quem beleza das coisas atrai como a luz à borboleta. É que não haja dúvida, isto foi movimento de gente endinheirada, para aí uma burguesia que precisava gastar o que tinha e apostou no glamour estiloso. Parece que o movimento nasceu em França (bem se vê pelo nome, não é?), logo universalizado pelo interesse que suscitou. Explodiu, qual grito triunfal, entre os anos vinte e trinta do século passado. Está pois a fazer cem anos.

        Bom. Para finalizar: eu não diria que que o MAD é inteiro em Art Déco. Antes afirmo, daquilo que conheço, que mistura Art Déco com Arte Nova. O mobiliário não é todo de linhas direitas. Há várias peças (pareceram-me em abundância) que são pródigas em enfeites florais e também nas curvas tão sugestivas da Arte Nova. A Guia não o citou e pode nem ser verdade o que digo, amparo-me ao senso comum. Mas, seja um único, ou dois estilos, a conjugação resulta: é autêntica pérola. O próprio espaço, uma casa fidalga de dois pisos, cujo primeiro proprietário foi o conde de Abrantes, sofreu remodelações e passou por várias mãos; contudo, guardou a traça inicial e mantém originários pormenores, arquitectónicos e de natureza doméstica. Mas tudo isto e muito mais vos dirá o/a guia. E já basta para abrir o apetite.

domingo, 1 de junho de 2025

Minudências

 

        Já passou bem mais de um mês sobre o passeio à ilha de S. Miguel nos Açores. Talvez tenha perdido o interesse. Mas, só pelo facto de conseguir teclar quase normalmente, vale a pena escrever. Voltar a ele. Dizer o de toda a gente: que é uma ilha divina, tanta beleza natural faz-nos ajoelhar sentindo uma enorme gratidão pelo que nos é dado a ver e por sermos nós a estar ali. E, em simultâneo, a mágoa por tantos sem a chance, a quem S. Miguel é impossível qualquer que seja o tempo verbal que usemos.

        Fica muito por dizer. Não falei das plantações de chá Gorreana e Porto Formoso, lugares de ruas e casas lindas e cuidadas. Não escrevi das funcionárias que vimos a trabalhar, dos instrumentos reluzindo novidade e dos mais antigos e baços e históricos, mas que não perdem beleza. Quanto o chá necessita para ser delícia a fumegar nas nossas chávenas!

        Bebemos chá nas varandas aprazíveis como noutras épocas, em senhoriais e delicadas chávenas. E nós debruçadas nas varandas, mirando a plantação em esquadria perfeita, oferecida ao olhar como sendo nossa – o que vemos e trazemos é nosso. Que ninguém traz apenas o chá em pacote, recadam-se os cheiros, o verde a perder de vista, a altura rasourada da plantação, a inclinação do terreno, o relógio antigo na varanda, o olhar das funcionárias, mãos sempre trabalhando e o pensamento, “mais uns mirones, só empatam” ou “andam de passeio a ver quem trabalha; fraco gosto”. Lembro-me de cogitar que, sentadas àquela mesa comprida – o chá a meio -, ainda assim não podiam atirar conversa fora, os visitantes, sempre novos, passavam a todo o momento. E tive pena daquelas mulheres sisudas, sentadas e silenciosas rodeando a mesa, todas mãos e dedos maquinais nas dobras de pacote. Mulheres que não podiam dizer uma graça, contar uma anedota, falar do almoço ou do jantar, desabafar uma tristeza. Mulheres trabalhando conjuntamente e em completo silêncio. Deve ser mau.

        Da plantação de ananases pouco sei. Não recordo o nome da que visitámos, eu e os ananases não conectámos. Apreciei bem mais o variegado jardim de orquídeas no Hotel do Parque Terra Nostra: eram flores, sobre flores, sobre flores. A perfeição em estado floral.

        Que dizer das cascatas?! Não as vi todas, mas as da Ribeira dos Caldeirões passei-as a pente fino. Se algumas houve com que deparei sem esperar, desbundando lá do alto, as da Ribeira são esplêndidas; por elas mesmas - beleza espectacular – e pelos caminhos e circuitos floridos e verdes que as rodeiam. É paisagem idílica e imagino que seja uma espécie de céu (se lhe retirarmos a loja de souvenirs) a que os antigos moinhos, ora recauchutados, dão certo ar de família. Já não recordo nomes – excepção feita ao véu da noiva – mas guardei as gotas húmidas na pele, o cheiro misturado da água nas pedras e na vegetação molhada. E não esqueço o encantamento que notei em alguns olhos. Porque vemos e sentimos nas mesmas coisas, coisas e sentimentos e emoções diversos. Contudo, entre nós havia uma comunhão espontânea despoletada pela natureza. Agradável, a ideia de me sentir internamente de mãos dadas a gente desconhecida, sermos capazes de experimentar sensações e pensamentos idênticos. E lembrei-me, imaginem, de Kant. Segundo julgo, este filósofo afirmava que era no juízo de gosto que os homens se encontravam. Quem sabe se não teria razão. Mas, por várias razões, nem todos os homens têm na beleza o seu ponto de encontro com os outros.

        Garanto: não vos maço mais com a única ilha que visitei na vida. Até porque hoje é o dia da criança - em parte será sempre o meu dia -  e tenho de ir celebrar.

        Queiram dar-se à fortuna de uma boa semana