Quando li pela primeira vez Claire
Keegan, “Pequenas coisas como estas” maravilhou-me. A história
recupera a simplicidade que admirava e me prendia, qual fio de
Ariadne, aos contos orais, passados de geração em geração, por
gente não alfabetizada e que neles ilustrava a integridade. Gente
que os contava como verdades antigas, de valor indubitável, nada de
fantasia astuciosa. Os contos acompanhavam-nos a infância e os
personagens encorpavam, faziam-se carne e osso, sofriam “as passas
do Algarve”, entravam em aventuras maravilhosas e temerárias e
podiam ser felizes como anjos. Eram modelares, ensinavam-nos sobre a
vida que pouco sabíamos. Existiam-nos mais que os membros da
família a quem se escreviam cartas: tios, primos, avós que
desconhecíamos e de quem não sabíamos a história. Um dia,
seríamos parecidos a essas figuras contadas e que sentíamos
próximas.
Adulta a cair de podre, a leitura de
tal livro foi janela que se abriu a odor cítrico. A obra cria no
leitor a convicção benevolente de sentimentos ancorados em
princípios de justeza e respeito pelos outros que se contrapõem à
sugestão de raivosas injustiças que, superando a descrição,
despertam o imaginário do leitor e são leit motiv do fascínio que
o empurra a prosseguir a leitura. De algum modo, paira por lá a
eterna luta entre bem e mal, o conflito entre os ditames da
consciência e as ordens peremptórias do bem parecer e do bem estar
familiar que a realidade exige ao personagem principal, um Cillian
Murphy muito convincente, em degladiação interna (o acto de lavar
as mãos arrepia), de tom pausado e verbo curto. Será, afirma ou
pensa o leitor contemporâneo, o senão do livro; a vida não é a
preto e branco, entre bem e mal há muita nuance, o mundo dos cinzas
é retumbante e “Pequenas coisas como estas” ignora-o.
Tem razão, esse leitor. E não tem.
Existem situações a que o cinzento se exime (ou deve). Ponderações
de branco ou preto. Decisões que nos levam a pele.
Lembrei Elisabeth Strout
quando vi o filme baseado no livro. Porque também ela escreve
simples. E por haver nas suas obras a expansão de sentimentos bons.
Não que a escritora ignore o outro lado da lua e falseie a vida
(toda a escrita a falseia - que bom! - já que é incapaz de dar
conta dela tal como acontece), mas sabe contar histórias.
Leio-a e suponho que os livros sejam a tentativa que faz para
endireitar o mundo. Como Claire Keegan. Ambas apelam à humanidade
que existe em cada um e, a seu modo diferenciado, o bem prevalece.
Ora isto – até agora - não foi a norma de finais do século XX e
nem do XXI que já houve. Em geral, os autores comprazem-se na
violência e outros itens bastante reais do mal estar humano. Muito
do romanesco explora esses filões sem lhes dar fim. Neles não pode
existir um homem capaz de carregar nas costas uma rapariga
maltratada, sabendo que esse preciso gesto, à vista de todos,
decerto lhe altera o bem estar, o afecta pessoalmente e a toda a
família. Pergunto-me se não estaremos a precisar de romances desta
natureza, que chamem por nós e pela nossa humanidade. Que, essencialmente, nos façam
ter esperança no ser humano. Talvez seja uma das portas para o
sucesso que bafejou as duas escritoras.
E, contudo, porém, todavia, não
gostei o suficiente do último romance de Elisabeth Strout. Parecia
que ia ser tão bom, não era?! Talvez para outra gente o seja. Fica
o parecer de andorinha buraqueira.