quinta-feira, 20 de março de 2025

DISSONÂNCIAS

 

Pedra a pedra

a casa vai regressar.

Já nos ombros sinto o ardor

da sua navegação.


Vai regressar

o silêncio com as harpas.

As harpas com as abelhas.


No verão morre-se

tão devagar à sombra dos ulmeiros!


Direi então:

Um amigo

é o lugar da terra

onde as maçãs brancas são mais doces.


Ou talvez diga:

O outono amadurece nos espelhos.

Já nos meus ombros sinto

a sua respiração.

Não há regresso: tudo é labirinto


Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio


Nota: este blogue vai hibernar durante oito dias (ou por aí). 

         Sejam felizes o quanto possam.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Pensamentos Esguedelhados

 

        O Homem põe e Deus dispõe”, entendendo cada um a afirmação de acordo com as suas convicções, facto que não lhe retira verdade. Pois eu devia estar agora a subir para a última sessão do curso “Camilo Castelo Branco, o primeiro romancista português”. Mas estou em casa a escrever estas palavritas que em nada se assemelham ao que iria ouvir do professor Abel Barros Batista que tem aqui uma aluna atenta, por gostar demais da forma como nos esclarece acerca do escritor (se calha, não volto a vê-lo; que aborrecido!). Daquilo que me foi dado observar até hoje, as pessoas mais sábias são também as mais simples e esclarecidas na ensinança. Não tem nome nem medida o quanto lamento faltar. Mas pronto, é o que é. Quereria relembrar “Maria Moisés” (matéria de hoje), que li aos treze, catorze anos, quando levei para casa as “Novelas do Minho”, só porque sim. Queria ouvir-lhe os apartes, já que além de admirar a sabedoria sobre Camilo, aprecio a forma como troça com bonomia do autor e dos humanos em geral. Amo as suas interjeições; as frases que, propositado, deixa a meio ou só inicia; a forma como nos olha inocentemente e que mais corrobora a patranha dessa inocência de avô que já viu muito mundo; o jeito de olhar os sabichões que se querem fazer notados; a entoação e a forma como pronuncia certas palavras e expressões, havendo nisso um mundo de sugestão. Enfim, estou quase apaixonada pelo método que utiliza. Fez-se próximo do meu herói. Ainda que não diga como ele “ó pá estou à rasca”, expressão que acho muito típica e me lembra um dos meus filhos que, saindo do posto de vacinação todo franzido esclareceu, “Ó mãe, tou à rasca”. E eu desasada e cheia de pena terna, “filho!”, com ganas de pôr no colo os doze anos dele e pensando para mim, “onde é que aprendeu isto, que lhe sai tão espontâneo”. Eu feita galinha e a querer esquecer-me que ele já tinha saído da capoeira.

        E a esta hora, estará o professor quase a terminar. Enquanto ele falou andei eu a ver batatas doces no forno e nos tímpanos azucrinava-me a constância furiosa do vento sacudindo as janelas; ignora-se a pendência que o terá posto contra elas, mas palpito que seja coisa grave. Neste pequeno mundo sobejam trivialidades obscuras. Mas pronto, a alma de Ulisses, no acto de escolher a vida seguinte, e lembrada dos anteriores trabalhos, também se decidiu alegremente por uma vida obscura. É fora de dúvida, eu preferia as palavras do professor Abel. Que se há-de fazer quando o querer não basta?! Como tanto que acontece ou resolvemos que aconteça, para mim foi uma sessão irremediavelmente perdida. O peso do irreversível mata-me.

        Pronto. Decerto já terminou. Estaria já descendo para o Metro.

        Ciau, professor Abel:). Foi um prazer conhecê-lo. Espero mesmo - de verdadinha e com grande desejo – que nos voltemos a encontrar em situação semelhante (foi mesmo um encontro ainda que o senhor o não saiba). Se não morrermos antes.

segunda-feira, 10 de março de 2025

A Essência Cheira a Tangerina

 

        Quando li pela primeira vez Claire Keegan, “Pequenas coisas como estas” maravilhou-me. A história recupera a simplicidade que admirava e me prendia, qual fio de Ariadne, aos contos orais, passados de geração em geração, por gente não alfabetizada e que neles ilustrava a integridade. Gente que os contava como verdades antigas, de valor indubitável, nada de fantasia astuciosa. Os contos acompanhavam-nos a infância e os personagens encorpavam, faziam-se carne e osso, sofriam “as passas do Algarve”, entravam em aventuras maravilhosas e temerárias e podiam ser felizes como anjos. Eram modelares, ensinavam-nos sobre a vida que pouco sabíamos. Existiam-nos mais que os membros da família a quem se escreviam cartas: tios, primos, avós que desconhecíamos e de quem não sabíamos a história. Um dia, seríamos parecidos a essas figuras contadas e que sentíamos próximas.

        Adulta a cair de podre, a leitura de tal livro foi janela que se abriu a odor cítrico. A obra cria no leitor a convicção benevolente de sentimentos ancorados em princípios de justeza e respeito pelos outros que se contrapõem à sugestão de raivosas injustiças que, superando a descrição, despertam o imaginário do leitor e são leit motiv do fascínio que o empurra a prosseguir a leitura. De algum modo, paira por lá a eterna luta entre bem e mal, o conflito entre os ditames da consciência e as ordens peremptórias do bem parecer e do bem estar familiar que a realidade exige ao personagem principal, um Cillian Murphy muito convincente, em degladiação interna (o acto de lavar as mãos arrepia), de tom pausado e verbo curto. Será, afirma ou pensa o leitor contemporâneo, o senão do livro; a vida não é a preto e branco, entre bem e mal há muita nuance, o mundo dos cinzas é retumbante e “Pequenas coisas como estas” ignora-o.

        Tem razão, esse leitor. E não tem. Existem situações a que o cinzento se exime (ou deve). Ponderações de branco ou preto. Decisões que nos levam a pele.

        Lembrei Elisabeth Strout quando vi o filme baseado no livro. Porque também ela escreve simples. E por haver nas suas obras a expansão de sentimentos bons. Não que a escritora ignore o outro lado da lua e falseie a vida (toda a escrita a falseia - que bom! - já que é incapaz de dar conta dela tal como acontece), mas sabe contar histórias. Leio-a e suponho que os livros sejam a tentativa que faz para endireitar o mundo. Como Claire Keegan. Ambas apelam à humanidade que existe em cada um e, a seu modo diferenciado, o bem prevalece. Ora isto – até agora - não foi a norma de finais do século XX e nem do XXI que já houve. Em geral, os autores comprazem-se na violência e outros itens bastante reais do mal estar humano. Muito do romanesco explora esses filões sem lhes dar fim. Neles não pode existir um homem capaz de carregar nas costas uma rapariga maltratada, sabendo que esse preciso gesto, à vista de todos, decerto lhe altera o bem estar, o afecta pessoalmente e a toda a família. Pergunto-me se não estaremos a precisar de romances desta natureza, que chamem por nós e pela nossa humanidade. Que, essencialmente, nos façam ter esperança no ser humano. Talvez seja uma das portas para o sucesso que bafejou as duas escritoras.

        E, contudo, porém, todavia, não gostei o suficiente do último romance de Elisabeth Strout. Parecia que ia ser tão bom, não era?! Talvez para outra gente o seja. Fica o parecer de andorinha buraqueira.

quarta-feira, 5 de março de 2025

É Bom Dia(!) Todo o Dia

 

        Ontem encontrei-me com a primavera. Chovia, a berma da estrada era lago que os veículos espadanavam sem misericórdia e a clorofila dos muros refulgia. Nem um peão, um guarda chuva, um sinal de vida animada. Eis senão quando, os olhos atraíram à brancura debruçada por entre verdes intensos, salvo conduto de pacífica beleza acenando na beira do caminho. À medida que me fazia próxima (dei graças por usar os óculos), destrinçava milhares de pequenas flores e, inédita maravilha, distingui as minúsculas pétalas. Na minha mente semeada de enxertos agrícolas surgiu a copada alvura de uma ameixeira. Cumprimentei, com reverência e cuidado, a nuvem florida - o volante não permitia mais. E, mau grado a chuva que só por milagre não parou, a tarde robusteceu, endireitou-se nas horas, fez continência à coragem primaveril. A ameixeira que não vi no regresso porque sempre volto perdida no meio da noite, imaginando lugares onde aporto e que não sei onde ficam; intermitente, aterro na intransigência perfilada dos mestres semáforos, ponteiros digitais da realidade. Estou a pensar nela, na ameixeira virada aos viajantes “faça sol ou faça chuva/ meia noite ou meio dia” (era um slogan de publicidade?). Quem terá plantado árvore de beleza tão frontal e a propósito. Quem a alimenta a olhares diários e amistosos; que, bem o sabemos, não se floresce em glória sem um carinho especial - será cuidado humano, de pássaros ou de animais domésticos?! Quem, dos tantos que se apressam, lhe endereça um olhar grato e segue caminho com a árvore dentro da alma, a discrição perfumada das florinhas perpassando o pensamento. Quem leva consigo a primavera e, para que não soçobre, a planta no território do sonho, ou tira de si a água que a alimenta numa jarra. Quem.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Uma ET na Blogosfera

 

        Invade-me em certas horas o aconchego de saber que posso vir aqui e escrever o que me apetece; sobre o que me der na bolha. Quantas vezes o faço com desvios e infidelidades assinaláveis em relação ao meu intento originário. Há horas assim, a vontade manda uma coisa e o apetite outra. Devo esclarecer que, neste âmbito, sou consistente com os apetites e enxoto a vontade. 

        Neste lugar impalpável e dentro da vida quotidiana, mantenho a ilusão de conversar com alguém - seja quem for, desde que não ultrapasse os parâmetros da boa educação. Interessa-me a permuta de pensamentos na troca de opiniões. Claro que é insatisfatório. Porém, a não existência desta possibilidade falseada de estar com alguém, escurecia-me (mais) a vida. Portanto, acarinho e mantenho a sensação irrazoável de pertença ao mundo digital, como se ele me facilite – torne mais leve - o outro (é bem capaz de acontecer). Não venho aqui para aprender, para fingir ser quem não sou, para me construir noutra personalidade, ou sequer dar vida a sonhos antigos (dos meus sonhos que foram, alguns são já irrealizáveis e outros a vida decidiu não os realizar e eu dei uma mãozinha). Sou fiel ao inicial propósito: trocar opiniões, conversar, estabelecer pontes de uma solidão a outra – todos precisamos delas e por tal as procuramos; mas cada um encontra o que encontra e é com isso que tem de se haver. Há quem as descubra fora deste mundo de faz de conta. E quem não. Ou quem as encontre, mas não lhe bastem. 

        Ora eu também me divirto nesta actividade. Digamos que espaireço e me evado. Agrada-me encontrar opiniões que partilho ou nem por isso, e outras de que discordo frontalmente. Por vezes contesto; algumas ficam tão fora da minha órbita opinativa que não me merecem comentário; e também me eximo de pôr palavra em assunto de que nada entenda ou desinteresse. 

        Tal como mantenho “contactos cativos”, há os que frequento sem cativação, interessa-me neles a erudição, não a pessoa – se os abandono, nada deles guardo. Enquanto os que pela escrita me cativaram deixam intacta memória, os restantes são paisagem na janela do comboio em que viajo. Não esqueço – por exemplo - certa “Nina” que por mim passou ou “Presépio com vista para o canal” (não sei bem se era este o nome do blogue). Desejo com veemência que sejam felizes lá por onde andam, mas continuarei a lamentar que tenham desaparecido. Se eu fosse francesa diria de ambas, “Tu m’as touché”. Mas o mundo digital faz-se também deste desprendimento (não me habituo), aprendemos a aceitar que os outros têm diferentes motivos para aqui chegar e por diferentes razões nos abandonam; acredito que a decisão de partir sem regresso os beneficie. Este mundo é bastante mais efémero que o outro; nele, nunca saberemos a mais ou menos segura verdade dos outros, a ficção pode acompanhá-los sempre, sem que demos conta. Que, se não os conhecermos e pudermos tocar, podem ser sonho que eles mesmos constroem na nossa mente. Mas, se até nesta condição contribuem para prosseguir viagem, que estejam ou partam e façam como entenderem. Não é afinal esse o espírito?!

        Este mundo vai-se fazendo com os que chegam e permanecem. Ainda que em modo "faz de conta", temos de reconhecer que até a ilusão precisa ser consistente:)

        Bom Carnaval, gente!!! Que a quaresma já nos espreita por entre os pingos da chuva.

     Um abraço