Havia as inesperadas noites em que o sonho mostrava outra de si. Quem sabe não era ela. Mas apostava que sim, sentia-se a ocupar espaço. Não o espaço de quem pega uma cadeira e se senta à mesa com hábito de talheres; ou de quem entra no super e passa despercebido até para as meninas da caixa que despacham clientes com sorriso mecânico. O sonho apresentava-se como filme desligado de paisagem, o grande plano dava-o a ela - o sonho era ela sem que ela fosse. Desconhecia-se nele e contudo sabia-se personagem principal, talvez mesmo a única. Era sonho paralelo ao paradigma: sem moléstia ou pesadelo que lhe chegasse, feito intenso presente. Acordava mansamente, imersa em bem aventuranças. Sorria para consigo do que a mente, sem a grade da razão, lhe oferecia. Pouco afecta às letras, a televisão fora sua mestra nas lides do amor. De resto, de pouco lhe serviu o aprendido, os anos foram passando sobre o namorico que não cumpriu a promessa de buscá-la e lhe abalara para lugar estrangeiro, uma reviravolta de letras no nome entretanto esquecido. E ela foi ficando. Primeiro ficou para tia e ajudou a criar a sobrinhada. De quando em vez, abria a arca e cismava para o enxoval, “dá-me vontade de rasgar isto tudo”. Mas a mão avançava a aperfeiçoar dobras e, como que distraída, deslizava dedos sobre íntimas cambraias. Acordada do breve devaneio, a mão tombava a resoluta porta da arca retirando da vista adereços adquiridos por força de braços.
E sob o peso dos dias e a candura das manhãs que pressagiam possibilidades, sem se dar conta, passou de tia a solteirona. Sentiu-se. Custou-lhe. Solteirona não é uma palavra, é um palavrão que magoa, um pontiagudo de pedra que se atira de língua e bate de chofre na dignidade de qualquer mulher. Mas reconhecia não haver homens no seu horizonte; e nem ela, afeita a trabalhos e crianças, rotulada como já estava, era o horizonte de algum. Qual burro que foge à canga, levou que tempos a aceitar a condição. Não se aproximou da igreja nem remoeu ciumeiras criando boatos e coscuvilhice; também não se pôs a procurar homem e vinha-lhe uma bílis rancorosa se alguém ousava a oferta. O que então se evidenciou foi a postura, passava mais direita que antes, como quem reivindica lugar. E no estendal da roupa surgiram repentinas camisas e pijamas bordados, lençóis e atoalhados mimosos, roupas suaves e em tons pastel. Finezas que pediam outras cordas, dizia a inveja. Anos e anos de arca, as dobras que a água não alisara a delatá-los. Pôs tudo a uso e jogou fora as naftalinas.
Dobrados os cinquenta, era dona de sua casa, tinha boa saúde e algumas amigas seguras. Em nada lembrava as solteironas azedas de que falam os romances que não lera. Uma mulher bem resolvida, diziam todos. Mas “todos” é uma exterioridade e ninguém é o seu exterior. Ela vestia-se para si? Pois sim, vestia. Mas o apreço masculino, se comandado pelo amor, é impagável. E ela sabia: não o tinha. No sonho-filme, a mente fazia o seu papel. Não havia enredo nem história. Não havia aparência ou imagem. Havia só a sua boca subindo no rosto de um homem, percorrendo lábio a lábio, ternamente, a pele ora áspera ora suave. Um homem sem identidade que - isso também sabia - cheirava a homem, como as mulheres cheiram a mulher. Ignorava-lhe a duração. Podia ser uma escalada vagarosa e feliz, um poro a poro depurado, ou apenas um flash de si mesma noutra dimensão. Acordava grata pela descoberta de si, reconhecida à beleza do sonho.