quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Desconcerto

 

        Havia as inesperadas noites em que o sonho mostrava outra de si. Quem sabe não era ela. Mas apostava que sim, sentia-se a ocupar espaço. Não o espaço de quem pega uma cadeira e se senta à mesa com hábito de talheres; ou de quem entra no super e passa despercebido até para as meninas da caixa que despacham clientes com sorriso mecânico. O sonho apresentava-se como filme desligado de paisagem, o grande plano dava-o a ela - o sonho era ela sem que ela fosse. Desconhecia-se nele e contudo sabia-se personagem principal, talvez mesmo a única. Era sonho paralelo ao paradigma: sem moléstia ou pesadelo que lhe chegasse, feito intenso presente. Acordava mansamente, imersa em bem aventuranças. Sorria para consigo do que a mente, sem a grade da razão, lhe oferecia. Pouco afecta às letras, a televisão fora sua mestra nas lides do amor. De resto, de pouco lhe serviu o aprendido, os anos foram passando sobre o namorico que não cumpriu a promessa de buscá-la e lhe abalara para lugar estrangeiro, uma reviravolta de letras no nome entretanto esquecido. E ela foi ficando. Primeiro ficou para tia e ajudou a criar a sobrinhada. De quando em vez, abria a arca e cismava para o enxoval, “dá-me vontade de rasgar isto tudo”. Mas a mão avançava a aperfeiçoar dobras e, como que distraída, deslizava dedos sobre íntimas cambraias. Acordada do breve devaneio, a mão tombava a resoluta porta da arca retirando da vista adereços adquiridos por força de braços.

        E sob o peso dos dias e a candura das manhãs que pressagiam possibilidades, sem se dar conta, passou de tia a solteirona. Sentiu-se. Custou-lhe. Solteirona não é uma palavra, é um palavrão que magoa, um pontiagudo de pedra que se atira de língua e bate de chofre na dignidade de qualquer mulher. Mas reconhecia não haver homens no seu horizonte; e nem ela, afeita a trabalhos e crianças, rotulada como já estava, era o horizonte de algum. Qual burro que foge à canga, levou que tempos a aceitar a condição. Não se aproximou da igreja nem remoeu ciumeiras criando boatos e coscuvilhice; também não se pôs a procurar homem e vinha-lhe uma bílis rancorosa se alguém ousava a oferta. O que então se evidenciou foi a postura, passava mais direita que antes, como quem reivindica lugar. E no estendal da roupa surgiram repentinas camisas e pijamas bordados, lençóis e atoalhados mimosos, roupas suaves e em tons pastel. Finezas que pediam outras cordas, dizia a inveja. Anos e anos de arca, as dobras que a água não alisara a delatá-los. Pôs tudo a uso e jogou fora as naftalinas.

        Dobrados os cinquenta, era dona de sua casa, tinha boa saúde e algumas amigas seguras. Em nada lembrava as solteironas azedas de que falam os romances que não lera. Uma mulher bem resolvida, diziam todos. Mas “todos” é uma exterioridade e ninguém é o seu exterior. Ela vestia-se para si? Pois sim, vestia. Mas o apreço masculino, se comandado pelo amor, é impagável. E ela sabia: não o tinha. No sonho-filme, a mente fazia o seu papel. Não havia enredo nem história. Não havia aparência ou imagem. Havia só a sua boca subindo no rosto de um homem, percorrendo lábio a lábio, ternamente, a pele ora áspera ora suave. Um homem sem identidade que - isso também sabia - cheirava a homem, como as mulheres cheiram a mulher. Ignorava-lhe a duração. Podia ser uma escalada vagarosa e feliz, um poro a poro depurado, ou apenas um flash de si mesma noutra dimensão. Acordava grata pela descoberta de si, reconhecida à beleza do sonho.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Desconcerto

 

        Acordava em sobressalto, o cabelo ralo colado na testa, todo o corpo empenhado no esforço de clarear ideias e expulsar o sonho. Sem êxito, tentava situar-se. Nesses instantes permanecia incógnita de si mesma. Desconhecia quem era, em que quarto dormia, quem estava consigo. Tacteava as laterais e sentia a cama estreita. Era um facto, dormia sozinha. Chegava-lhe a noção de haver, talvez próxima, uma fonte de luz. Armada de cuidado e vagar temeroso estendia a mão para lá dos bordos da cama, dedos flutuando no ar em busca de solidez. E encontrava a madeira esquinada, lisa, rebordo saliente. Tentava adivinhar um candeeiro, um interruptor, enquanto a mente lhe trazia o copo da dentadura da avó que os seus olhos evitavam, a náusea a subir-lhe à boca. Temia a ponta dos dedos a tocar - tombar? - o vidro do copo ou mesmo o asco de mergulhá-los e sentir a flutuação da dentadura. Teria dentadura? Passava a língua pelos dentes a investigar enquanto avaliava a bizarria da situação: não se lembrava de si e tinha tão presente aquele copo malfadado, apenas entrevisto num soslaio, e que temia com todas as forças sempre que a avó doente. “Dá um beijinho à avó”. e ela a aproximar o rosto vago na vontade imensa de afastá-lo; na indiferença que caracterizava a relação, beijar carecia de sentido, era indesejado faz de conta. Entretanto, os seus dedos, quais aranhas, desciam no fio eléctrico, palpavam e premiam o interruptor atrofiando memórias. A luz azulada espalhava-se pelo quarto e a realidade, impositiva, fazia-se presente. O candeeiro árabe entrava-lhe nos sentidos; ele e mais quem dela se lembrara em viagem exótica. Detinha-se a apreciar os desenhos de luz e sombra na parede e o recato suave de íntima luminosidade colada a todas as coisas. Olhava o espaço que sabia de cor e antes não recordava. E reconhecia a dimensão própria do mundo onírico, espaço e tempo de cada um obnibulados. Em sintonia com António Gedeão: “Que bom é dormir”. Ia mesmo mais além: nada é melhor que dormir. De seguida corrigia-se, nada é melhor que dormir desde que os pesadelos não nos dobrem em dois, não façam de nós gato-sapato, não nos lancem na angústia da impotência. Os pesadelos revertem para o reconhecimento da impotência humana e da subsequente angústia de viver.

        Havia outras vezes. Vezes de sonhos perdidos de si. Vezes de estar em terra estranha e ser pessoa sem carteira ou documento. Vezes de si sozinha por entre as gentes como todos imaginamos que fosse o deambular de Cesário Verde por Lisboa. Não como Cesário, claro. Ele vivia a solidão de ser poeta e desigual; ela a solidão de estar perdida, fisicamente longe dos seus e sem cartão que dissesse “esta sou eu”; sem um número de telemóvel a que se ater; sem outra possibilidade de regresso que abordar qualquer desconhecido(a) e mendigar a viagem. Ela observando os rostos que a cruzavam apressados, este não; este não; esta não. Ela temendo não haver a quem confessar o desconcerto, imaginando sabe Deus o quê que nunca soube o que era porque acordava.

(cont.)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Eles

 

        Acontece quando a madrugada não tem suspeitas de um raio de sol. Lá onde vivem a noite é eléctrica ou apenas noite, o silêncio e a frialdade são a voz mais funda. Os passos deles afogam-se no sonoro vazio de casas e homens adormecidos. Não conversam, pernas de pressa, seguem sérios e compenetrados como quem revisa contas em busca de erro não detectado. O ronco do autocarro esventra a quietude das coisas enquanto eles cumprimentam com um aceno os companheiros de espera. É como se a voz assuste o mundo, e excluam as palavras ou as aflorem em sussurro. Esperam até que o bicho se imobilize a resfolegar brandamente. Ouvem mais que vêem as portas que escancaram, bocas sôfregas engolindo gente aos magotes, a actualização do passe, pim, pim, pim, em timbres repetidos de campainha dissonante. Eles, sonâmbulos e escuros de alma e corpo, descaem nos assentos com a cama na lembrança. E é assim todos os dias, as semanas em comboio interminável e só o recreio de haver fim de semana.

        Despertam ao som do telemóvel, pés bambos no chão e cabeça zonza. No horizonte da mente não piscam estrelas, piscam horários de autocarro. Arranjam-se a trouxe-mouxe estremunhados e inábeis, pernas que não obedecem à vontade, braços que desconhecem as mangas; na pressa dos minutos, enquanto enfiam os ténis do seu orgulho, bendizem o saco feito de véspera. A maioria passa na cozinha já encasacado em plástico e invisíveis nuvens de algodão cujo aconchego agradece. Vão pela merenda de dia inteiro. Recolhem-na num sprint de segundos e saem para a noite ainda ajeitando gorros e bonés, mochila nas costas. Apanham autocarros que os levam meio adormecidos até ao Metro. No subterrâneo persiste-lhes a noite no corpo, mas em alguns o estômago cria voz, puxam da mochila e dão uma trinca na sandes do pequeno almoço; outros mergulham nos mistérios do telemóvel. O Metro é deles. Usam olhos sem expressão, bocas cépticas e a indiferença leva-os a novo destino enquanto o novelo da noite começa a desfazer. Vão descer em Entrecampos, nos Restauradores, Sete Rios, e em todos os lugares que mantêm ligações com barcos e comboios.

        São as oito da manhã, a claridade está de pé, ocupada a espantar restos de noite. Eles esperam o último comboio. Vão para Sintra, Setúbal, Corroios, Montijo, Cacilhas, sabe Deus para onde. Vão para as obras, para a restauração, para a agricultura. Estão ainda a caminho, mas já são do lugar que os emprega. São eles, os emigrantes.

        Hoje, um deixou no comboio o provável almoço. Alguém lhe carregou a mochila e a deixou nas informações. Oxalá ele saiba que o balcão das informações existe.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Uma Ponta de Saudade

 

        Gosto de filmes e séries sobre ambiente escolar, a vida quotidiana de professores, alunos e outra gente que, por bem ou por mal, ou por nenhum deles, se vê unida na mesma trama durante alguns anos. Defeito profissional, talvez. Mas gosto.

        Por razão que não merece procura, aprecio o que não é conto de príncipes e princesas ou seres de maravilha, com fim quase sempre alegre e amores vencedores por mais reviravoltas que dê a história. Aprecio melhor - e mais - o que, mantendo um ou outro lampejo de fantasia, se chega à vida como ela é: tanta vez sem graça, injusta e inglória; feita de seres que são em simultâneo bons e maus, personagens únicas que se intersectam por acaso ou vontade e desejo e encarnam, perfeitos, a imperfeição que nos constitui. No que respeita a actores e actrizes, recuso os que, para proteger a imagem, quase mudam de cara - ficamos sem entender que imagem preservam. Prefiro gente velha, a gente velha que pretende fazer de nova e se faz parecida a todas as mulheres que se submetem a tais atropelos e sofrimentos. Suponho que ser bom actor/actriz anule a idade. E é claro que esta minha suposição se torna falsa muito rapidamente, o mundo olha cada vez mais para a aparência, facto que me faz desgostar, quase massivamente, do cinema americano.

        Portanto: aqui estou a fazer a apologia de uma série francesa (2022) que vi (vejo) na RTP Play. Chama-se “Uma de nós” e conta a vida no Lycée Toulouse Lautrec, uma escola secundária única no género e que integra sobretudo alunos portadores de deficiência. Segundo as datas de emissão, está ainda a ser transmitida.

        Não me cabe e nem apetece fazer considerações sobre a meia dúzia de episódios disponíveis (espero que amanhã exista mais um), mas recomendo. Como se imagina, não é, definitivamente, série que sirva a quem preferir a vida alegre.

E é isto.


sábado, 11 de janeiro de 2025

Pós Natal

 

        Bom, parece que a doente Tilda Swinton ficou a dever um favor à única amiga que anuiu em acompanhá-la nessa última viagem de “férias”, Julianne Moore. Foi uma doente excepcional, fez tudo a sós, pensou e tratou de todos os pormenores, incluindo a promessa de a amiga não saber quando aconteceria. E morreu graciosamente, bem arrumada, festiva, pintada como se fora para uma festa. Quando a amiga a encontrou, parecia dormir, como se a morte apenas um sono e a passagem em nada a tenha desarrumado. No filme, a acompanhante parece sofrer mais que a doente. Acorda assarapantada, temendo ver fechada a porta do quarto – uma incontestada e nada casual porta vermelha -, sinal combinado para a presença da morte. O que nem é verdade. O cineasta preferiu focar-se em quem fica e sofre a perda. Mas, quem decide, mesmo tendo já decidido e pensando ser para si o melhor e mais digno, quanto sofre e já sofreu fisicamente antes de?! Não sabemos, nunca o saberemos se não vivermos igual situação. Ora a dor física é algo tão insuportável que nos tira de nós, nos aliena de tudo que não seja ela. E depois, o estar preparado para morrer, pode por acaso retirar-nos a sensação de que estamos de modo definitivo e irreversível a cortar com a vida?! Pois não sei. Sei que a amiga vai continuar a viver, sei que enquanto a doente toma o comprimido definitivo ela almoça com um amigo ex amante de ambas. Sei que as marcas ficam, mas não serão necessariamente más. Sei até que encontrou novo tema para possível romance (é escritora). E sei que a doente de cancro teve um grandessíssimo azar.

        Pois, ainda há uma filha da doente e um desentendimento na relação desde sempre. Que não se resolve, tal como muitas coisas na vida não chegam a resolver-se. Não senti que o tema central fosse essa relação falhada.

        Atentar contra a própria vida (e é aquilo viver?) num caso como este não me surge como acto criminoso - o realizador escolheu um caso fácil e simples, com gente que tem o poder de escolha ampliado e não se poupa a meios para conseguir o que deseja para si até ao mais ínfimo pormenor. Há um requinte na antecâmara da morte que chega a ser belo. Mas não é universal. Nem sequer os paliativos o são. Os paliativos que deveriam acompanhar os mais desprotegidos - os outros sempre encontram uma maneira -, os paliativos são um luxo de que só alguns hospitais usufruem e que deixam muito doente à mercê do coração que tarda em desistir da vida.

        Acontece que não somos todos iguais. Existem mesmo muitos casos bastante desiguais do apresentado.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Pós Natal

 

        Os sinais de Natal estão quase extintos. Bom, ainda não despendurei o cortinado da cozinha. A sala perdeu a garridice e agora parece-me sorumbática, hirta e sem pingo de graça; e nem as vicejantes camélias esmagaram a certa austeridade que desprende. A copa aguenta-se melhor, voltou ao ser de sempre. É um facto, em qualquer casa, cada divisão tem a sua idade, a sala é velha como eu, talvez até mais, nunca gostei muito dela. À copa, tão pequena que mais parece um preâmbulo, acho-a sempre jovem, anda pelos vinte cinco, trinta anos e aguenta-se à vida com vigor. E a cozinha não tem idade, é ela e basta – lugar de trabalho onde as horas fogem e o relógio impávido na mesmidade da cadência. O resto da casa desconhece o Natal.

        Fora o que correu mal, correu tudo bem. Pela primeira vez não fiz árvore de Natal nem suspendi o anjo que me guarda o sono nesta época. Fui devidamente recompensada com uma caterva de insónias. Bem feito! Talvez no ano que vem não o abandone mortinho e amorfo sobre a cómoda.

        Como sempre, lá estive na Gulbenkian para o concerto de Ano Novo, cujo, por acaso, me pareceu ter menos lustro que os anteriores. Paciência. Ou fui só eu a gostar menos e será de mim que me queixo?! Contudo, ter como pano de fundo o lago já merece o bilhete. Deo Gratias.

        Fui ver “O quarto ao lado”, o último filme de Almodôvar. Bonito, com certo peso, algo fantasioso. Em questão está a morte e a forma de morrer. A eutanásia. Ou a liberdade que qualquer deveria ter de, em consciência, recusar continuar a sofrer sem remédio até que uma paragem cardíaca se compadeça. Mas não só. É também a ideia de solidão, da morte solitária. Porém, analisando o filme, foi mesmo como é sempre, uma morte solitária. Mas aceito que a doente precisasse solidariedade e compreensão, aceitação de alguém próximo e que a gostasse.

        Claro que admito e aceito opiniões divergentes - por razões éticas, religiosas, ou outras em que agora não me apetece pensar. E não desejo sequer convencer ninguém, neste caso a razão não é só uma. Mas não entendo os pruridos em ajudar alguém a morrer (nem sequer é o caso do filme), não entendo como é que pode falar-se em cuidados paliativos que prolongam o sofrimento ou onde o doente nada aproveita além da dor e da dormência em que o mergulham sedativos de força maior. Sobretudo não entendo qual a razão de não se respeitar uma vontade individual e consciente que, sabendo próxima a degradação e o consequente sofrimento, sabendo que a morte é o único final que a espera, decide antecipá-la. A doente do filme afirmava sentir-se preparada para a morte.

(cont.)

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Dia Oito - Onde se Conta uma História

 

        Após o que devem ter sido meses de viagem, os reis magos chegaram a Belém. A estrela, liberta de obrigações, foi lavar o cabelo que as areias do deserto tinham empoeirado e mais todas as cerimónias de brilho que já conhecem. Ora os magos verificaram que no estábulo já só moravam os de hábito, burros, vacas, cabras, ovelhas. Isto porque Maria e José não podiam – e nem queriam - ficar a morar num estábulo com o bebé e tinham alugado uma casinha em Belém. É provável que pensassem ficar por lá, talvez José tivesse mais e melhores condições para carpinteirar, porque não se entende a razão de vir de longe para se recensear e não querer voltar à sua terra. Mas pronto, ficamos em que o casal gostou de Belém para viver e por lá se organizou. Os três reis parece que se perderam da sagrada família e foram pedir ajuda a Herodes o rei da Judeia para encontrarem a criança que ia ser o rei dos reis. Herodes que não era boa rês e cortava os males pela raiz, após esta visita, mandou matar todas as crianças com menos de três anos. E o Deus-Pai não fez nada, assistiu lá do seu empório à matança dos inocentes e tratou de mandar um recado a José para fugirem os três e assim salvou o filho (que egoísmo, não é?). Bom, mas esta história é outra. A nós, para fechar a época natalícia, só interessa a adoração dos reis.

        Imaginem, estava José com a plaina a carpinteirar e Maria talvez em casa com o filho e chegam os três reis em toda a sua pompa, com os servos e sei lá que mais. É claro que Maria se atrapalhou, a casa era pequena e de escassa mobília, uma pessoa não vai recensear-se com mesas e cadeiras atrás. E portanto veio até à rua com o menino e todos ajoelharam, até os camelos que eram mesmo os seres que ali estavam com mais prática de joelhos em terra. E quando Maria esperava uns bolinhos, umas roupinhas, talvez até um guizo para entreter a criança, os reis deixaram-lhe de presente ouro, incenso e mirra. À parte o ouro que lhes pode ter servido de moeda de troca, Maria e José ficaram a olhar para o incenso e a mirra, e josé, isto de que nos serve? Maria encolheu os ombros e entrando em casa depreciou exclamativa, “homens!”.

        Quanto aos reis, voltaram aos lugares de onde tinham saído e esvaneceram.

       E foi assim, por entre paradoxos contínuos, como compete a uma religião, que Deus veio à Terra e se fez criança igual às outras. Não sei quem foi a madrinha, mas chamou-se Jesus Cristo, nome que ainda conserva. Escrevo o Seu nome e lembro-me logo de Pessoa, “ e mais que isto é Jesus Cristo que não percebia nada de finanças e nem consta que tivesse biblioteca”.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Dia Cinco - Onde se Conta uma História

 

        Desconhecemos o número dos reis que a estrelinha guiou e tampouco sabemos como se arranjou para o fazer, visto que vindos do Oriente, cada um saiu de seu reino e não há certezas acerca da sua origem. O termo “magos” não se associa a reis ligados à prática de artes mágicas, mas a sacerdotes especialmente sábios que se dedicavam ao estudo da astrologia, razão para terem detectado a estrela que os levaria até Belém. Há quem não acredite nos reizinhos sábios e afirme “a pés juntos” serem invenção do evangelista - a narração sobre a sua existência aparece apenas no evangelho de S. Mateus.

        Mas nós já conhecemos a estrela e a evidente presteza no cumprimento de ordens divinas. Ora o ser divino e cristão não mente; só os homens se enchem de tal artifício, em geral para ficarem (ficarmos) bem na fotografia. Portanto, vamos seguir os sinais do astro e observar as mudanças que causou a visão daquele corpo celeste e mais seu brilho único: homens e animais entraram em trabalhos dobrados, que um rei não viaja como qualquer. Portanto, juntar um séquito de homens e bagagens, embrulhar presentes, refeições e água em quantidade suficiente para o caminho, coisas que não cabiam em lancheiras modernas, daquelas que parecem esconderijo de tupperwares e se compram em qualquer supermercado, exigiu um redobrar de funções. Corridas de servos para aqui, corridas para ali, a lista de carrêgos aumentava e os camelos, como Job, a aguentar com tudo, mesmo de má vontade. O arreganhar de dentes bem nos diz que os animais não tinham vontade à viagem, mas quem nasce camelo, o que pode fazer senão sê-lo, não é? Não se pode fugir à natureza. E um deus é um Deus, de tudo pode pedir e dispor.

        Portanto, depois do material bem acomodado e disposto de forma a não haver grande maçada para os reizinhos, lá partiram homens e animais atrás da nossa conhecida estrelinha. Estou até confrangida em escrever isto, mas sempre tive grande pena dos camelos que ajoelham para que os homens desçam lá da sua altura, e o seu arreganho nunca valeu um chavo para amos ou condutores da cáfila. Um burro carregado não é nada comparado com um camelo; por tal razão, sei eu muito bem, até a estrelinha lhes lamentava a sorte e, de vez em quando, desligava o botão de ser guia e fazia-se igual a todas as outras. Escolhia para tal as horas em que os pobres camelos, espojados nas areias do deserto, descansavam de bagagens e homens; ou, em dias de sorte, quando encontravam um oásis e se enchiam de água como nós enchemos os depósitos de gasolina e abocanhavam onde chegassem, que um camelo não é esquisito com a refeição. Abençoada estrela, pensavam os das bossas agradados da benesse de mais um tempinho livre. 

        Mas os homens infernizavam ajeitando turbantes e protecções com inquietos  dedos morenos e relances ao firmamento, já clareia, ora esta, onde se meteu agora a estrela. E constatavam num desconsolo a falta da bússola, é que sem ela não damos passo. Mas, como um destino, recomeçavam a carga animal.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Dia Três - Onde se Conta uma História

 

        Abençoado seja o sono da estrelinha onde decerto poisou mão divina: dormiu a parte da noite que competia e mais o dia que se seguiu. E a ausência foi tal que os adultos da Sagrada Família a estranharam e ao mirá-la com atenção, viram-na mais amarfanhada que folha de papel atirada ao lixo; e logo a julgaram doente e se deitaram a aventar hipóteses, talvez sofresse gripe de estrela, aguentar a noite sobre a cabana seria, quem sabe, superior às suas forças. E foi Maria a lembrar-se de colocá-la junto ao cordeiro que aquecia Jesus, assim como assim, quem aquece um, aquece dois. Então José encostou à parede exterior a escada que no estábulo servia para puxar a palha empilhada, subiu à cabana e trouxe a estrelinha amorfa e leve como uma pena, escorrendo-lhe por entre os dedos de tão deslembrada, o que até calhou bem porque as cinco pontas estavam amolecidas e não picavam. Maria pegou nela e, desvelada, colocou-a bem juntinha ao cordeirito que dormia com o menino. E nenhum dos três se mexeu porque o sono os vencera há horas. Assim o determinou Deus-Pai, digo eu que conto a história.

        Maria ficou vigiando o sono dos três. O cordeirito baliu de fome e logo foi a retoiçar perto do estábulo e voltou a deitar-se no seu lugar, tão inteligente quanto muitos cães o são. Quanto ao Menino-bebé mamou, a mãe fez-lhe a higiene possível e voltou a adormecer. Mas a estrelinha continuou sem dar acordo de si, apenas um pontinho brilhante apregoava a sua condição. E quando Maria se dispunha a tomá-la na mão a ver se despertava, num repente se elevou e ficou a pairar dentro da cabana agora completamente iluminada. E Maria deliciada com o facto de ser dia ali dentro, querida estrelinha bem-hajas por toda a ajuda. Olha, antes de ires ocupar o teu lugar no céu, queria pedir-te um favor: detém-te cá dentro mais um pedacinho que tanto Jesus como o cordeiro acordaram e estão de olhos postos em ti. Ontem acendemos uma fogueira, mas é luz que não tem a tua força e estou a ver muita teia de aranha e lixo pelos cantos do estábulo. Se fizeres a fineza de me alumiar, aproveito a tua luz e faço uma limpeza ao estábulo, que ontem não tinha cabeça para mais do que parir e foram as mulheres e os pastores que o assearam como puderam, coitados.

        Seguidas pelo olhar animal e humano, trabalharam as duas cada uma em seu mester. E já anoitecia e José provia a fogueira que cozesse o jantar, quando terminaram e a estrela se despediu numa pressa e sem dizer onde ia. E Maria, absorvida como estava pela maternidade, nem perguntou; disse para si que a estrela benfazeja já faltava no seu lugar do firmamento; e que há limites para as excepções divinas, um Deus não pode, indefinidamente, desviar uma estrela do seu poiso.

        Ora, à semelhança de todos os humanos, Maria mãe de Deus nem sempre acertava nas suas suposições. O que aconteceu à estrela foi lembrar-se repentinamente que lhe cabia guiar os reis magos, senhores de grande saber que viviam longe como tudo, num tempo sem automóveis e muito menos aviões, e que, estava escrito e tinha de cumprir-se, visitariam O Rei de todos os reis, tal como os próprios tinham estudado em livros antigos e que hoje, com toda a certeza, já esfarelaram.