sábado, 31 de dezembro de 2022

Viva 2023!

 

O final de ano é-me  tempo de gratidão. Não sei porquê, mas repasso o que e quem me foi importante em 2022; tarefas de que retirei algum prazer; surpresas que surgiram e gostei. E não apetece à pena debruçar-se sobre gestos infelizes, malvadezas pequenas, agasturas que corroeram o quotidiano e verei repetidas até ao fim dos meus dias. Coisas.

Portanto, e pela ordem enunciada, verifico que o mais prazeroso foram as poucas viagens realizadas - o meu luxo. Transigi bastante, tomei balanço e viajei; quem não tem cão, caça com gato. Foi assim. E quanto valeu a pena! Não existe palavra para o êxtase que nos possui na contemplação da beleza. Apreciar o belo é parte da água que me mantém viva. Ajoelho perante Deus que assim me dispôs espírito e olhar,  e emprestou coragem para sobrevoar a mágoa e usufruir do que me alimenta.  Bendito seja Deus (e eu).

Em 2022, ninguém me mereceu importância particular: as amizades mantêm-se dentro do que a distância e a vida de cada um impõem; e as (poucas) novas caras deslizaram, são pó. Das tarefas, saliento a leitura, forma de evasão e descanso mais utilizada. Que boas surpresas terei tido?! Decerto uma ou outra sem memória. Bom, talvez um vídeo com uma entrevista a Joan Didion que me comoveu e levou ao  livro “O ano do pensamento mágico”; ou, no Aljube, a conversa emocionada e entusiasta entre Francisco Fanhais e garotos de duas ou três escolas. Francisco Fanhais é um Homem. Tenho absoluta certeza que aqueles garotos saíram com outra ideia do que foi o 25 de Abril; cientes do espírito dos cantores de intervenção e da sua acuidade na história da revolução; com ideia cimentada do que seja uma profunda amizade; contentes do testemunho; a conhecerem melhor Fanhais e, por decorrência, José Afonso. Para Fanhais e Didion, ambos exemplares, a minha eterna e efémera gratidão.

E, por último, sou grata aos bloguers. Aos que, desinteressadamente, publicam o que vou lendo e seguindo passo a passo. Remetem-me para as questões diárias que não acompanho nos media por ser anti notícia; oferecem-me (a mim  e a todo o colectivo) pequenas pérolas que, digitalmente falando, descomprimem brevemente. Acompanham-me; não sendo, propriamente, companhia. Porque também me comentam. São o mal e o bem da modernidade. Não me retiram tempo devido ao presencial, prefiro a presença a tudo que seja escrito, o olhar a qualquer sinal gráfico, o calor de um sorriso a todas as imagens, por mais belas. Sou pelo desencanto real na vez do encanto digital. Mas a vida é o que é. E hoje também é o mundo digital a que me liguei há muito ano, a mente prenhe de ideias falsas mas bem intencionadas. Por esse laço digital, bem hajam. E que o novo ano nos encontre nas janelas uns dos outros e nas próprias. Contando. Sempre contando. Um abraço virtual (sei lá eu o que isso é) e, mau grado as nuvens que o ensombram, o meu desejo sincero para 2023: que traga alguma coisa de bom e memorável. Com a saúde possível, amor ao presente e incólume capacidade de projectar.

Sempre vossa

Bea

 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O Aroma deste Natal

 

É cada vez mais difícil chegar ao Natal em roda livre, despida de peias que obscurecem a quadra. Consegui. E, de tão atrasada, pouco recordo do torvelinho. Tão breve a magia e fugaz a união. Tão pouco presentes os meus mortos. Para onde fariam caminho em data que nos reúne; o que, prestes, os levou de mim?! Ou, como em tanta hora, deito aos outros responsabilidades minhas. Pois. Sei que chegaram e, sem delongas, partiram. Senti nos olhos de minha mãe certa pena, talvez mesmo compaixão por mim que sou feliz, tenho casa e companhia, filhos próximos a rodear-me. Tudo indica que, à parte a imprevisibilidade de cataclismos - mundiais ou do país -, sou a mais favorecida das três. Tudo indica.

Mas não se pense que, por este dislate, desgostei do festejo. É sempre uma noite mágica. Mesmo se os meus benditos não acompanham até ao fim. A magia emerge da reunião, é fragância que se aspira e se faz nós. Fora dela, tudo amorfa e desvale. Bendito seja este entrever de céu, abençoada nesga de azul na atmosfera de cinza. A festa de nascer um bebé-Deus dilui todo o amargo destino que o espera. Assim somos nós, aqueles que fazem a história e ela esquece. Bendigamos o hoje em que existimos e nos é benesse.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Menino Jesus

 

Desculpa não te ter atendido no tempo certo. Talvez pelo facto de não ter pelo termo advento um gosto particular. Mesmo no tempo de sentido nenhum, quando era apenas palavra de acrescento vocabular, encontrava-a bafienta, tristonha, chocha. Falta-lhe uma álacre vogal, um ditongo delator que nos entristeça ou arrebite. O som sabe-me a mofo e fechamento de carranca. Pode significar espera, ânsia de tempo novo que virá. O que entenderes. Mas não altera o sentir.

Chegou-me – finalmente – o espírito. Terá vindo de Madrid com o Turrón. Ou de Lisboa com o saco de roupa suja. Ou passou à minha porta e entrou. Não interessa o como, mas que esteja. Bem sabes que tenho andado na azáfama de doces e sopas e o mais para entregar. A propósito, e por favor, dá olhada em minha tia. A pobre não provou as maçãs assadas nem o arroz doce. Então é coisa que se faça, Menino Jesus?! A visita marcada não te tolheu os desígnios. Ok, bem sei que não mando nada – nunca mando nada, que coisa - Está a pobre longe e meio morta, coração descompensado em data tão de família. Cá ou lá é o mesmo, não a deixes sofrer em demasia, deixa-a ter a visita do filho por uns minutos. É o meu pedido mais instante. Para mim, nada. Está visto que devo ser uma pessoa feliz, ocupas-te sempre com outras coisas; portanto, desobrigo-te da minha pessoa. Vira-te por exemplo para a Ucrânia (só para te dar um nome, ainda assim não te iludas e nos julgues no paraíso. Toma atenção: o facto deste ser o melhor dos mundos não é sinónimo de um mundo melhor). Se puderes, entre a mudança de fraldas, faz qualquer coisa pela dignidade humana que é tão afrontada. Diariamente, há gente que morre por ela e gente que, até sem sem o saber, morre por falta dela. Dizes o quê, vê se te explicas, é melhor tirares a chucha que assim não te percebo. Ah, pronto. A dignidade é problema nosso?! Mau Maria (desculpa lá, Mãe de Deus), é que Tu és só um, pode ser que eu te convença; bem sabes que não chego para a humanidade inteira, parece-me mais tarefa divina. Continuo a pensar que devias tocar o coração de alguns, mas pronto, se não podes, não podes.

Bom, isto de falar com um recém nascido (é que ainda nem nasceste) por via digital envolve umas paletes de crença. Resmas.

Bem gostaria de fazer o caminho dos pastores, campos fora. Mas de comboio, dou-me mal com caminhadas e Belém é uma lonjura. Acho eu que não te levava presentes, um Deus que mora no astro –como frisava minha avó espingardeira - de que precisa.  Mas ia beijar-te o pezito e a bochecha. Com olhos de amor sentido.

E posto isto, fica bem. Que hoje sou de muito afazer - com tanto doce para fora, os próprios ficaram para trás. E já tenho convivas a almoçar. O arroz doce saiu bem e já só está em metade, julgo que não chegue à consoada. Mas que é que isso interessa. Desejo que a vaca e o burro estejam de feição que os animais são como o vento, se embirram de não respirar para o teu lado ainda te constipas. Dá os meus parabéns a tua Santa Mãe e aos dois pais e diz-lhes – embora os três saibam, não é de mais repetir – que têm muita sorte, calhou-lhes um filho que faz anos eternamente, já vai em dois mil e tal festas de aniversário. É obra. E coisa mais divina não existe.

Um beijinho doce

Desta que se assina

Bea

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A Sissi de Corsage

 

         E, de repente, Corsage. Sissi de novo. Transitou-me, directa, da adolescência para a velhice. É certo que a inolvidável  e juvenil irradiação de Romy em versão conto de fadas, me acompanhou em fundo de hábito, o mesmo é dizer, não pensava nela mas estava lá, inteirinha, num canto da memória.

A primeira coisa que me intrigou em Corsage foi o título. O meu francês não alcançava o termo e a tradução inquietou-me: corpete. Jamais eu pensaria que um filme sobre figura tão conhecida desse pelo nome de roupa íntima. E, no entanto, é adequadíssimo. Serve-lhe como luva em mão.

Depois de consulta à minha extensa lista social, mudanças daqui e dali, consegui tempo para o filme. É sabido que não gosto de ler críticas, súmulas e o mais. O meu preferível é ir em branco. E foi nessa ausência de cor que ele se ergueu, oferecendo várias surpresas, entre as quais ressalvo a canção que acompanha Sissi e – terá sido intuito da realizadora -  a define. Que a trama aborda apenas o período mais conturbado da sua vida, o último. E o que mais vi nele foi a inadequação entre uma mulher e a vida que lhe coube viver, juntando-lhe as fugas possíveis. Com todas as decorrências. “Corpete” faz sentido: literal era a sua obsessão pela magreza, as tentativas que fazia para conservar a figura esbelta da juventude, a constância da fita métrica e a tortura do espartilho; e não eram quaisquer mãos a conseguir cingi-lo à medida dos desejos de sua alteza real. Em sentido figurado, o corpete simbolizava a sua vida aprisionada dentro de funções que abominava. Como seria Sissi, se não tivesse encontrado seu primo Francisco José?! Não sabemos. Tenho para mim – mera suposição – que os danos seriam menores. Contudo, ressalvo, há uma propensão de carácter que se manifesta à revelia da circunstância. E creio que a Sissi que existiu a possuía (ou era possuída por ela).

Corsage é um filme sombrio com raios de beleza. É sempre triste assistir a uma vida a debater-se, entrar nos bastidores pode tirar todo o glamour à personagem. Creio que terá sido esse o propósito da realizadora, queria que víssemos o dramático estrebuchar da mulher que deu vida à imperatriz.

Tragam-me a Romy, se faz favor.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Sissi

 

Depois da inolvidável Sissi que Romy popularizou e gravou em mim, li outros romances e outras sínteses de filmes, na colecção que sabemos. Lembro-me de “A condessa descalça” e “O homem do braço de ouro”, mas foram muitos mais. Nenhum destronou a história de Sissi. Nesse tempo, já as galinhas tinham desertado do casinhoto e as restrições de minha avó empalideciam. Os livros seguiam a caminho de minha casa e a exigência era  ser minha mãe a escolhê-los. E assim acontecia, oficialmente; no particular, eu sugeria. Portanto, passei a ansiar as visitas de minha mãe a meus avós, facto que ocorria de quando em quando e, mal ela chegava, havia uma busca ao saco e um abraço apertado mais uma série de beijos a honrar os quatro ou cinco livros de que me apossava.

Porém, e contra todas as minhas expectativas, foi meu tio preferido o primeiro a desfear a imagem dos imperadores de conto de fadas. As suas opiniões caíam-me como lei, esse tio era a minha fonte de água pura. Julgava-o o mais inteligente dos homens, o mais paciente e alegre, o mais optimista. E tinha absoluta certeza, gostava de mim. Era-me indizivelmente grato todo o carinho que me demonstrava - fui a primeira sobrinha e minha mãe era a sua irmã preferida -. No mundo áspero dos homens, a sua ternura e desvelo enchiam-me o coração e faziam-me devota daquele amor que retribuía a mãos cheias. Mas, certo dia em que louvava o império austro-húngaro  e mais Sissi e Francisco José, meu tio atirou quase desdenhoso, olha que a história que tu leste não é igual à história que eles viveram. E, no meu pasmo essencial, deixou cair nódoa a alastrar: a imperatriz morreu assassinada e vivia a passear e separada do marido; havia muita gente que não gostava dela. Pensei que brincava. Mas negou, chegou mesmo a dizer-me que lhe tinha lido a biografia (explicou o que era uma biografia) e que o filme lhe fugia por muito lado.  Fiquei sem palavra. A mulher a sério não me interessava. Queria de volta a Sissi de Romy que meu tio partira e jazia sem conserto. Perguntei e perguntei. Mas o que ele contou desfez ainda mais a imagem. Não é fácil crescer.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Sissi

 

Fui ver Corsage. Por gosto à Sissi que Romy Scheneider ajudou a vender com tanto êxito.  Não vi qualquer dos filmes em que interpretava a mui original imperatriz, mas tenho pena. Acontece que, aos 8 anos, lia tudo que aparecesse sob os meus olhos (sob e sobre). Ora, Sissi, uma garota de sonho, explodiu-me nos livros da Colecção Cinema que minha tia caçula adquiria munida de espírito missionário. Depois de lê-los, abandonava-os em qualquer lado e não voltavam a interessá-la. Leitura acabada, a missão evaporava. Minha avó, na sua prática de analfabeta despachada, atirava-os para o carrinho onde passeara meu primo em bebé e que estava sem uso junto à capoeira das galinhas. Não era bem a capoeira, a carripana morria devagar na casota onde as aves dormiam, chocavam e meditavam. As galinhas são assim, têm horas de silêncio: empoleiram e ficam por lá pensando, olhos vagos. Será por terem tão pouca massa cinzenta que os pensamentos não repercutem na acção. Ou estarão apenas dormindo de olho aberto.

Portanto, minha gente, se queria ler, tinha de me sujeitar ao mundo. A primeira coisa que o mundo me exigia era a espera. A longa espera de ver minha avó azafamada com o panelão do almoço e mais o lume de chão que o alimentava. Nessas horas benditas, esgueirava-me sem esforço até ao que eu chamava a capoeira das galinhas e tentava destapar o depósito de livros. Minha avó teria certo pejo em deixá-los ao apetite dos galináceos e cobria a parte aberta do carro - nesse tempo, já descapotável retinto - com uma tábua que a inabilidade dos meus braços ajuizava ser de chumbo. O ex-carro de bebé era um artefacto rectangular, em tudo semelhante a uma banheira com rodas, excepto na pega onde me lembro de pôr as mãos para empurrar a cria de goela aberta, eu circundando a casa na esperança de emudecê-la. A segunda dificuldade era pôr à vista o tesouro. Talvez os livros nem fossem muitos, mas, mal conseguia arredar a tábua um nadinha e pôr-lhes a mão em anzol, parecia-me entrar num mundo imenso que lamentava não poder abraçar de mente limpa. Porque raras vezes tive ensejo de ver o tesouro na totalidade, a minha imaginação nadava no exagero e, para mim, eram volumes incontáveis. A terceira dificuldade, o cheiro a cocó de galinha, nauseava-me e suponho que seja móbil da pituitária esquisitinha que me possui. Mas era mister ler ali e estar atenta ao exterior. Minha avó proibia-me os romances como se fossem veneno. Se me apanhava em flagrante - acontecia de vez em quando -, tirava-me o livro sem cerimónias e arremessava-o para o lugar, apressando-se a fechar a gruta de Ali-babá com estrondo. Enfiava um carão severo e resmungava enquanto me punha fora da casota,  não te quero ali, a tua tia é maluca deixa tudo por todo o lado; aqueles livros não são para ti. Por vezes, chorava  a história interrompida, desejava a continuação. Mas nada demovia minha avó.  

Posto isto, como poderia eu esquecer aquela Sissi tão linda e o esplêndido Francisco José. Os livros da Colecção Cinema, tinham três ou quatro fotos do filme e precisei que minha mãe elucidasse que não eram dois bonecos perfeitos, mas duas pessoas. Fiquei ainda mais fã.

Mas a Sissi de Corsage é outra coisa. Já o nome indica. Lá iremos.

 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Escorrências

 

A chuva fustiga-nos e ameaça tornar este Natal numa grande tristeza. Para muitos, é já  dolorosa verdade. Ficamos pendurados no écran, a olhar. Incrédulos e esparvecidos. Tanta desgraça. São casas inundadas, mobílias e electro domésticos a boiar e sem serventia, automóveis submersos. E gente que empurra à vassourada a água invasora, como quem esconjura a má sorte. São lares que não se parecem consigo, estabelecimentos e postos de venda que deixaram de o ser. E, proprietários ou locatários, ainda sem fazer conta ao prejuízo,  de vassoura em punho. A par desta paisagem de ruas que viraram rio caudaloso, de moradores abismados, “há casas onde a água chegou ao tecto”, de automóveis candidatos à sucata, há os velhos. Os velhos que perderam o seu lugar de muito ano e não têm a força necessária para o recomeço. Falta-lhes tudo – o lugar onde se sentam, a cama que lhes tirou o molde ao corpo, as gavetas da roupa, a televisão, a liberdade do seu pequeno mundo. A água varreu-lhes os rituais quotidianos. E agora? Agora dizem - inconformados e desiludidos - como aquele senhor de Rio Maior: “agora vou lá para o norte para casa de família”. E encolhia ombros cépticos. Ele sabe o que todos sabemos: que as casas e as famílias de hoje não contam com os velhos. Por muitos quartos que existam em casa, os velhos ocupam sempre um quarto de que se precisa para outra coisa. Mas, na maioria dos casos, nem sequer há quarto ou lugar para eles. Dormem no sofá da sala onde ninguém os deseja porque a tv é ali e não apetece deitar cedo (a eles parece tarde); ou, pior ainda, dormem no quarto de um dos netos. E depois ressonam muito alto, e durante a noite levantam-se, acendem a luz, levam a vida na casa de banho. As casas modernas– salvo as excepções que o dinheiro compra – não foram feitas a contar com os velhos. Os velhos são um peso que se disfarça com sorrisos iniciais e se empurra à mínima aberta. E depois há ainda os que são recebidos no anexo e dali não saem. Não importa se o frio é muito porque o tecto é de telha vã; carregam-nos de cobertores pesados e sem uso, naftalinas de fundo de roupeiro. Que os edredons ficam todos em casa, pertencem aos netos e filhos. Por vezes, deixam-nos entrar em casa e sentar à sua mesa. Em muitas outras, nem isso. Mas os velhos precisam espaço próprio em casa dos filhos, ou serão infelizes. Essa é uma das razões para desejarem a permanência no Lar que sempre repudiaram. Deixam de ser pesados. Não estorvam. Não sofrem o desamor daqueles a quem deram o melhor de si e que nunca na vida abandonariam.

Foi isto que vi naquele encolher de ombros.  O mau é ser verdade. Existir.

Uma Aberta

 

Sempre gostarei da prosa de Miguel Esteves Cardoso. Ao seu tempo, parece que foi inovador e que muitos ali beberam o estilo. Tudo coisas que pouco me interessam. Dei por ele quando, durante algum tempo, e já não me lembro porquê, comprei o Independente. Julgo ter sido por lá que descobri a publicação do livro de crónicas “A Causa das Coisas”. E bastante me serviu. Usei-o vezes sem conta em recreação pessoal, nas aulas, ofereci-o a amigas e julgo que, se nessa altura me falassem mal do Miguel, eu defendia o meu osso com unhas e dentes. Não fazia ideia do seu aspecto, mas isso não interessa nada. O élan aconteceu pela escrita.

Ora, o Miguel foi entrevistado para a Visão desta semana. E fiquei a saber mais umas coisitas sobre ele. Por exemplo, que coincidimos em Évora no mesmo ano, que ele chumbou por faltas em Sociologia, dado só escrever e ler. Bem gostaria de saber se seria o rapaz que, no Largo onde morei e de que não recordo o nome, mesmo de frente para nós, num primeiro andar de varandas verdes, víamos, dia e noite, sentado à secretária. Jamais o encarámos de frente, mas o perfil era-nos sobejamente conhecido. Nesse tempo de freiras e padres, aguentando verões e invernos difíceis, o Instituto era o suprassumo, o púlpito da juventude eborense. Qualquer garota que conseguisse um namorado do Instituto, subia de posto. Mas parece que o Miguel não apreciou. Creio que temos de Évora opinião muito idêntica e talvez seja esse o nosso único ponto de contacto. Além da relação leitor-escritor que desenvolvemos nos livros e artigos,  ele só imagina e eu sei.

O Miguel é um exagerado. Mas, por entre os seus exageros, diz grandes verdades, aponta caminhos, planta esperança. O que venho aqui ressalvar, razão do meu desvio nos caminhos do natal, é essencialmente: O gosto de viver que o possui - e é lógico e natural - sendo que desse gosto fazem parte os prazeres quotidianos. É como diz, a vida não tem tempos livres, o prazer é a toda a hora, não se deixa para quando. E agradou-me que tenha referido um dos meus/nossos prazeres – beber água se temos sede. Depois, avança com uma ideia bem prazerosa, uma visão de futuro que oxalá. Diz o meu guru que a este imperialismo do eu, se vai sobrepor a cultura do outro, cuja lhe parece mais realista e consentânea. Ou seja, lá está o professor Cerqueira Gonçalves a acenar com o peso da relação (o outro só existe nela). Digo que o eu precisa do outro para existir, é o outro que o reconhece. E o Miguel, que não tem papas na língua, arrasa o eu e mais a importância que a si mesmo se dá: cada um de nós é mera desimportância, grão de areia no deserto universal; o prazer quotidiano é aquilo a que nos devemos na efeméride da vida. E lá vem ele, de novo concordando comigo, a propor o limite moral: não se aceitam prazeres que magoem os outros.

A entrevista é longa e tem muito por onde pegar. Cada leitor a lê a seu modo, a interpretação é grande coisa. A escrita e o que distingue o escritor do narrador daria outro post, mas numa aberta não há tempo para mais. Portanto, deixo à vossa consideração a leitura.

Só mais um pormenor: diz o Miguel que  tem apenas 365 dias para viver os 67 anos.

 E, ainda que noutra idade, não acontece o mesmo connosco?!

domingo, 11 de dezembro de 2022

Agridoce

 

Lento mas seguro, o Natal vai entrando. Chega mansamente, que não é quadra de grandes repentes, antes puxa do bolso ternuras inesperadas e abraços de aconchego. Natal é um madeiro a arder, mais o calor que irradia; é a casa a receber-nos vaidosa de si; é a lembrança da família reunida e mais daqueles que passaram para o outro lado, ou os que nunca estiveram estando sempre. Natal é mesmo o presépio de lata que o Rui cantava na rádio e talvez ainda cante para os netos (Carlos T, és o maior); Natal são os que dormem na rua e sabemos lá onde, até no túnel gelado do Vasco da Gama, rígido e artrítico, a abóbada condensando em admiração, adormecem deitados em meio metro de pedra fria, luz acesa, ruído de gente que passa, sobe e desce escadarias, segue conversando. Que sono pesado os consome, que recursos usam, a que horas acordam daquele dormir anómalo e desligado.

Natal são as ruas vestidas de festa, mil luzinhas a brilhar e o enlevo de passeá-las por entre a gente, nariz vermelho de frio ou, este ano, guarda-chuva em punho, o chão espelhando as luzes. Natal são os ballets que regressam às cidades e só alguns podem assistir – levam as crianças, netos, filhos, sobrinhos; Natal são os concertos com data expressa e que o interior de Portugal desconhece e tanto perde, os delíquios de alma nascem e evolvem por ali, sentem-se na sublime vibração da música. Natal é um Menino que nasceu para amar os homens indiscriminados, um Menino que foi o primeiro e enorme democrata da história: entendeu todos os homens como iguais, acudiu aos necessitados, não priorizou os poderosos e rodeou-se de pescadores e gente humilde. Um Menino que era e – para muitos - é Deus; que absolveu o ladrão arrependido “hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Até para o não crente, Jesus Cristo foi homem de excepção: único e exemplar.

Enviar boas Festas é tarefa que a profissão me permitiu. Em troca recebo telefonemas, mails, what’sapp bonitos. Cada um tem sua forma de desejar bom Natal a quem gosta. Somos todos diversos. Devo a atitude a minha tia mais nova, pessoa que pouco vejo e de quem recebíamos o único postal de Boas Festas. Um por ano. Estacávamos maravilhados com as figuras, rostos rosadinhos e bem penteados, bonitos, felizes. Os garotos usavam gorros, luvas, casacos compridos, botas debruadas a pele. O nosso cinema era o postal de Natal que minha mãe abria sobre o louceiro e adorávamos à vez, o interior abalroado por arabescos que não líamos.

 

Projectos de Curto Prazo

 

Hoje vou inventar o Natal e, enfim, dar-lhe ser.  Consoante as reticências em evidência no post anterior, julguei acertado roubar um dia aos dias do café e vou postar, naturalmente desenvergonhada e fútil, os meus planos da pólvora. Vou, sei lá, procurar os lápis e o caderno onde faço anualmente uns rabiscos que envio a amigos benevolentes, cujos se esforçam por ver neles os meus desejos sinceros de quadra vivida em amor, não obstante ser um pouco nostálgico. Para efeito mais mágico – só recorrendo ao sortilégio da magia conseguem vislumbrar o Natal que lhes desejo naqueles breves riscos cheios de dedadas –, escrevo umas palavras com a caneta dos dias especiais e que não uso há bastante. Nada disto parece vital, mas acreditem, importa. A mim; e aos que não são mim e me gostam. Que é bem supremo haver ainda quem continue a dedicar-nos afecto sem cansaço. No caso, mais que do meu, será mérito do coração deles, mas pronto, mantêm o sentimento.

Também pondero dar um look de Natal à porta da rua e apor-lhe a coroa habitual, talvez com um laço de fita diverso; briosa como é, todos os anos exige variação e desenvolvimentos na beleza. Portanto, faço-lhe um penteado novo e preparo os livros para a estação dos correios.  Estou na rota certa. Depois, basta seguir na correnteza, o espírito implantou em profundidade, impedindo a morte súbita.

Estou aqui pensando se o Menino atendeu o meu pedido e, de boa mente, se dispôs a ajudar. Mas pode ter sido apenas do café.

Ó benditas madrugadas! Um dia ainda dou em poeta da cafeína.

 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Menino Jesus

 

Tens obrigação de saber que a vida não está fácil por aqui. Ok, inda não nasceste – oficialmente – e já eu venho com queixas e pedidos. É aceitável que penses assim. Acontece que me encontro invulgarmente desprovida de espírito natalício e venho por este meio dar-Te notícia do facto no intuito de me modificares, nem que seja um bocadinho pequenino. A Ti que tudo podes, custa-Te um esforço de mexer dedinhos de pé, oferecer-me qualquer coisa que bruxeleie e se regozige com azevinhos e laços, e Tu deitadinho nas palhas da manjedoira sem o burrito nem a vaquinha, nu e contente como se em pleno verão. Aceito que não tenhas nada a ver com a minha falta de sentimento e que o problema seja meu em exclusivo. Mas, tem dó, os dias correm demais e se o espírito me chega com muito atraso não dou conta. Já Te digo que está tudo inactivo. Que é como quem diz, não há presentes e os enfeites continuam nas caixas respectivas. Na minha rua as casas estão engalanadas há mais de uma semana. Fui de visita a uma amiga e havia coroas e azevinho a saltar pelos olhos; velas, musgo, laços, eu sei lá. Achei uma graça, mas não me moveu. Também fui a um almoço de Natal e há muito ano que não ia a nada do género. Pois olha que foi coisa bem desenxabida, não sei se volto. Mas parece que fui a única que desgostei; houve elogios em barda, o que é bom para os participantes, amaram.

 Dada a circunstância, espero que ponhas o meu pedido entre o molho de cartas prioritárias, embora saiba que estiveste muito ocupado a dar a volta  - espero bem que tenhas resolvido isso enquanto andavas à mercê dos solavancos do caminho. Portanto, agora que estás a bem dizer pronto para o mundo, faz-me um favor, separa a correspondência e atende a premências maiores. Que, mal nasças, vais ver, depressa se Te acabam os coros de anjo e mais as visitas de pastores encardidos e a cheirar a ovelha e sujidade, olhos ainda ofuscados pelo brilho da estrela, porque, bem o sabes, não fora o aviso angelical, não saberiam os sinais da Tua chegada. E tens de reconhecer, uma estrela sobre o estábulo é luz a mais. Eu adorava ter sido um desses pastores amedrontados pelos anjos que anunciaram o Teu nascimento. Adorava ter corrido, meia estremunhada, a ver-Te nas palhas de Belém. Mas olha, nasci tão depois. Que posso fazer senão ir-Te adorando nos outros da vizinhança, os que Tu dizes que são Tu, e eu asseguro: não parecem. Perde-se o cenário, é certo. Mas olha que o cheiro a estábulo não é coisa que se recomende, tivemos uma vaca e um burro no barracão e aquilo não era agradável. Tu é que não Te lembras, mas, de certeza, Tua mãe Maria, quando se livrou da cocheira, encheu-se de contentamento. Só as palhas que se pegam à roupa e entram no corpo dão que fazer, asseguro-Te.

Desculpa o incómodo, Menino Jesus, mas é que não há mais a quem recorrer para este milagre de nada e que tanto me falta. Bem sabes que te escrevo em última instância, já tentei de tudo.

Estou certa que, no dia 25, vais ter um bolo de anos poisado numa nuvem e com muita estrelinha bebé em cercadura, mais o canto dos anjos a entoar os parabéns e os progenitores a acompanhar e bater palmas num orgulho legítimo. Olha, estive para Te enviar o “Happy Birthday” dos Beatles, mas também o perdi. E tanto que gostava daqueles quatro anjos a cantá-lo, pois se até achei que não cantavam menos ou pior que os Teus. Manda-me lá o espírito, que também ensejo comemorar-Te o aniversário. Vá lá…

 Um chi-coração de parabéns e dá por mim, a Teus pais e mãe, as melhores felicitações pelo bom gosto, és verdadeira preciosidade.

Sempre tua

Bea

 

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Paisagem de Fundo

 

É do conhecimento geral que o Natal deste ano vai ter um fundo triste. E não apenas pelas crises económica e energética que por aí vêm e não dão repouso ao espírito. Que os portugueses sempre viveram em crise, umas naturais e outras – quase todas –, de fabrico humano. A tristeza vem-nos de saber a injustiça de uma guerra aqui tão perto; de, sentados à mesa ou no sofá, em ambiente aquecido e de estômago confortado, observarmos diariamente os destroços humanos e naturais; tanta cidade arrasada, tanto edifício-esqueleto, ruas intestinas em impúdico esventramento. E a solidão das coisas apodrecidas, a falta das vozes de criança, o minguado de vida activa. Por essa Europa fora, quanta gente desirmanada e estrangeira à procura de uma identidade que lhe sirva, mesmo se fingida;  perguntando-se, eu a solo como sobrevivo, eu para que sirvo, quem sou assim separada por distância e má fortuna. E, na maior parte dos casos, existem com a morte no colo, carregam-na por todo o lugar. Pergunto-me se estarão vivos.

  Bem sabemos, há guerra noutros pontos do mundo, os inocentes são muitos mais. Lá, como na Ucrânia. As guerras são soberbamente desumanas e anti democráticas. Metódicas, derrubam os mais fracos e servem-se deles para combater; os fracos, leia-se, os de menor poder económico, não têm fuga ao destino, são, em bloco, carne para canhão. Quem promove a guerra visa a submissão e usa a autoridade pisando sobre o corpo de outrem, ignorando-lhe os direitos. Guerra é exercício inteligente do poder – há uma atractiva inteligência do mal -, força bruta e indevida de os homens roubarem uns aos outros o bem mais precioso e efémero que possuem.

Mas há ainda a vida de cada um, essa inamovível guerra pessoal atrelada ao sujeito. Injustiça que, em tanto caso, não foi escolhida e lhe cai em cima com fragor. Faz-nos bem saber destas coisas, vê-las, assistir-lhes?  De tudo que é contra o homem, não pode advir bem, e a impotência perante um mal irremediável amarfanha, retrai. O que dizer a quem, faça o que faça, se degrada a cada dia que passa. Não há letras para dizer um arco íris invisível. É tudo noite.

Então, colocamos as mãos frias entre as nossas, puxamos o aquecedor e  sobre ele estendemos a manta dos joelhos que acomodamos sobre pés e pernas, canalizamos o calor. E, enquanto alenta, sempre de mão na mão, contamos uma história engraçada. Até que lhe assoma um sorriso e mãos e pés aquecem.

Mas isto, é o quê?! Nada. É mar alto e não sabemos nadar.

domingo, 4 de dezembro de 2022

Percalço

 

Terminei o cachecol, rematei, cortei as pontas soltas.  Julgava eu que aprontara a oferta antes de tempo. Estava até contente comigo. E vai daí, vim a saber que o aniversário era hoje,  chegou-me um convite para amanhã: o tal café que não bebo. Pois digo-vos que fiquei tão atarantada que nem felicitei a aniversariante. Bonita figura.

Oxalá o presente agrade. Se não, que finja. Nem precisa ser completamente.

Sublinhados

 

As minhas desculpas ao calendário, mas ontem o Natal esfumou por inteiro, talvez antevendo a névoa de hoje, duvidosa de um improvável D. Sebastião-cadáver. Não me lembro se esfumou enquanto ouvia Lídia Jorge a conversar com Bernardo Mendonça e eu de mãos ocupadas no futuro de um cachecol; se foi à sua vida na cozinha e, farto de cheiros e clamores de panela, se resolveu em amuada brevidade de “vou ali e já venho”. Qualquer coisa. Também não sei se voltou; para abreviar hiatos e os aguentar na maior, compensei com um café. E agora, venha quando lhe der na bolha.

E dado ter-me faltado espírito para a escrita, veio-me à memória um trio que conheci em meus anos verdes que já não eram tão verdes assim. E posto que ao telemóvel deu para morrer nesta altura do ano (é que não dá jeito nenhum) e me faltam todos os contactos – nem o meu sei de cor – resta-me a outra memória. A lembrança é presença só com um vector, não existe diálogo entre lembrado e lembrador, e é grande pena.

Dos vinte e quatro aos trinta anos fui hóspede de uma senhora já de provecta idade (teria uns oitenta e tal quando a deixei). Era uma casa muito sui generis. O aluguel era em conta, mas, em casa, faltava quase tudo. Não tinha frigorífico, esquentador, máquina de lavar, …etc. Mas tinha a grande chance de a proprietária só a usar para dormir (entrava sempre depois de mim) e quanta vez nos vimos apenas ao fim de semana. Ou nem isso.  No fundo, era eu quem vivia ali em permanência. Viúva, a senhoria gastava-se literalmente a ser a empregada doméstica gratuita da única filha. Sem feriados ou dias santos.  Ponderada a situação, como nunca gostei de quem espiolhasse as minhas acções e em casa de meu pai nem sequer ainda havia luz eléctrica, avaliei que entre prós e contras a que estava habituada, era preferível ficar. Demo-nos como Deus e os anjos. Foram bons tempos, os nossos. O lugar geográfico era-me totalmente desconhecido e do que mais me lembro, talvez pela novidade que representou, era que, à semelhança do que sucede nos USA, as ruas tinham números em vez de nomes. Também me parece que jamais assistira a tão grande miscelânea de pessoas cruzando-se nas ruas. Vivia eu ali há mais de um ano, quando comecei a conversar, de varanda a varanda, com a filha dos vizinhos do lado. Era uma garota baixinha e amorosa, grandes olhos esverdeados, carinha de bebé, boquinha diminuta e aquelas bochechinhas de pele sedosa que apetece mordiscar. Frequentava o 12º ano e tínhamos uns cinco a seis anos de diferença. Mas demo-nos lindamente. Tão lindamente que chegámos a acampar juntas e fomos vezes sem conta ao cinema e à praia, víamos tv  em sua casa (filmes, filmes) e a mãe, uma doce senhora, conhecedora das minhas parcas condições de hospedagem, passou a dispensar-me, no frigorífico, algum espaço que eu tentava não fosse muito invasivo. Devo muito àquele casal, e a amizade com a filha foi panaceia num período em que a minha melhor amiga, seguindo a ordem natural das coisas, namorou e casou, a nossa amizade sofrendo o afastamento de que ambos os estados carecem. Aquela garota estava tão bem para mim e eu para ela que dávamos por nós a lamentar o ano que perdemos sem saber uma da outra sendo vizinhas.  Este post é um Deo Gratias a tanta gente que me compreendeu sem palavras e assim me deu a mão, aos que me ajudaram a ser fazendo-se próximos. A todos os que, cruzando o meu caminho se detiveram e incorreram em percurso conjunto, aos que me ensinaram, sem palavra expressa mas com exemplo, a dádiva de sermos uns com os outros.

Do fundo do meu coração, lugar onde moram comigo até à eternidade: Bem Hajam.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

A Força da Correnteza

 

 Como as noites cresceram.  Dezembro traz manhãs embrulhadas e sonolentas que nem parecem elas. Ora, mal o dia amadurece, logo num relâmpago desaparece. Então, as noites aproveitam e, contentes,  espreguiçam-se  pelo mundo, sorriem, é tudo delas. Esta situação de dias apoucados e fugazes transforma os planos de qualquer ser solar. E eu entro ao engano nas horas incompreendidas.  Senão vejam, quando julgo que são dez da manhã, é meio dia. E logo paro tudo porque, haja Deus, vem aí o almoço.  Mais duas horas de cozinha e imediações. Ora, às duas da tarde, o dia começa a murchar e vai caindo naquela melancólica sem vontade que atrai a noite suspeitosa. E é assim que me vou perdendo dias afora, na invernia que nos governa.

 Mas entreguemos à própria, a translação e rotação da Terra. Ela que se amanhe com as oscilações do eixo e o mais, que a nós já nos bastam as consequências (oxalá o planeta não siga a parvidade dos homens e se dê à loucura de um desvio na rota).

Hoje recebi a primeira visita de Natal. Fiz um bolo, pus a toalha na mesa, servi um chá. Esquecemos tanta vez essa necessidade de criar ambiente e estar com alguém que nos fita com prazer e atento ao discurso; a quem ouvimos, olho no olho. Alguém que é outro, diferente de nós. Mas a conversa flui e propicia convergências, pontos de toque, luzes pequenas que agarramos aqui e ali (creio que falei demais). E foi isto.

Foi isto e mais uma prenda de Natal (ainda tão poucas). E a lã que intenta ser cachecol e presente, mas que o sarilho do dia me impediu de experimentar  nas agulhas.

PS: ando cá a pensar que a Maria do presépio era pessoa pouco avisada. Então vai assim, num fim de gravidez, sem uns cueiritos nem uma camisinha para a criança. Ai valha-me Deus.  Ou será que Jesus se antecipou e nasceu de sete meses.  Não acredito, as imagens mostram-no perfeitinho e rechonchudo. Mau Maria.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Um Alisar de Folha

 

O calendário de Natal do ano passado começou a 8 de dezembro. O de 2020 não me lembro, mas hoje inicio o calendário de Natal 2022.

Ora bem. Atendamos aos pressupostos acerca da data: a festa da consoada é a minha preferida. Encaro-a como o lugar aprazível e familiar que nos  preenche nessa noite em que o Menino-Deus faz anos. Imagino que lá no etéreo haja festa rija e os intervenientes originais recordem esse dia aziago que acabou bem – isto de andar muito grávida de estalagem em estalagem não é brincadeira nenhuma. E depois um burro é vagaroso e as dores de parto, garanto, são terríveis. Bom, numa virgem não sei, mas imagino que sejam em tudo a mesma coisa. Tenho imensa pena de Maria. Calculo que estivesse mal comida, andasse a fazer a dilatação sentada no burrico, toda dobrada e dorida por inteiro - o primeiro filho fica-nos na memória. Pronto, era a mãe de Deus, mas ele lembrou-se de ser homem e lá sacrificou a pobre. No nascer e no morrer não a poupou. Maria bem mereceu a assunção,  elevar-se assim, inteirinha, com sapatos e tudo. Mas um Deus é necessariamente bom filho. Um Deus cristão, entenda-se, que por exemplo os deuses gregos eram terríveis de maus, estou a lembrar-me de um(a) que pontapeou com tanto afinco o filho que o deixou coxo para sempre (pobre Hefestos, já não lhe bastava este nome horrível, ainda teve de ser coxo e feio). É como se vê, a violência doméstica começou cedo e em alta patente.

Retornando ao tema, parece-me bem que no Natal de Jesus Cristo (Cristo seria apelido? E da mãe Maria, ou do pai José?), o mais feliz foi ele. Porque, vejam só: o pobre José, aflito por Maria se encontrar naquele belo estado, calcorreava sítio atrás de sítio, a pé, guiando o burro que devia estar como ele, cansado; entrava nas estalagens, ouvia as negas e continuava caminho num lugar que desconhecia. E os anjos, em vez de lhe dizerem qualquer coisita, não. Andavam todos lá para Belém, entretidos a escolher poiso no estábulo, como se não tivessem tempo para isso. O parto do primeiro filho demora um tempo desgraçado, dava-lhes até para voar ao céu e fazer uns gargarejos ou mudar a harpa. E já agora: estou ciente de que Jesus é filho de Deus. Mas vocês desculpem, o pai é quem cria e educa. Portanto, não me venham cá com a teoria de pai adoptivo e tal e tal. José era o pai. Ponto final. Por outro lado, penso que o sangue de Deus (pai natural e sobrenatural) corria nas veias do bebé de mistura com o de Maria. É bonito um Deus de verdade misturar o seu sangue com o de uma mulher. Mesmo que o resto seja por obra e graça do Espírito Santo. Julgo eu que Deus-Pai fez de propósito só para lhe dar algum trabalho porque nem os católicos se lembram do tal Espírito Santo que, desculpem lá a má língua, é uma figura muito apagada, parece-me que, literalmente, existe para fazer número. Pessoa, no amoroso poema dedicado ao seu Menino Jesus, arrasa-o (ao Espírito Santo). Um dia que me lembre ainda hei-de trazê-lo aqui.

Mas atenção, mesmo na descontra, tenho de reconhecer: alguém que vem ao mundo por amor aos homens só pode ser Deus. Um Cristo que prega o amor e se deixa matar pela humanidade tem de mim o que queira. É que nós não prestamos, temos por vezes alguns actos dignos e é só. O resto é ramerrão, mais do mesmo com muita calinada à mistura. Bem precisávamos ser resgatados. Para o amor. Não há no mundo coisa que valha mais a pena que dar a mão a quem precisa e, na medida do possível, conservar a inocência de alma (se quiserem, do espírito; ou mesmo da mente).

E hoje foi Natal, pois foi. Paguei um almoço que devia há tempos. Pagar, em linguagem pessoal é fazê-lo, agarrar nele e levá-lo lá onde o esperam. Que agradável sentir-me bem recebida. Havia na mesa uma toalha de linho antigo, daquele fiado em tear manual com florinhas bordadas a ponto cheio (nunca tinha visto e palpado um linho tão linho). E, melhor que isso, em homenagem ao almoço, as minhas meninas que já quase não mexem, desceram à vez a escada, sentadinhas na cadeira igual às que vemos na TV. E comeram o que lhes pus no prato e depois  servi a sobremesa. Para remate, por entre cuidados e fragilidades, levei uma a ver as suas flores in loco (não as visitava havia muitos meses). Deu-me uma data de beijos e ciciou quando lhe ajeitei a manta nas pernas - já só cicia -, assim sim, almocei uma coisa que me soube bem; e vi as minhas flores.

Digo eu, foi um bom Natal.