quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Carrossel

                  A época escolar trazia-nos saciedade. O que outros preteriam, nós desejávamos. Almoços de arroz com feijão, massas taludas com grão, feijão frade e atum, sopa da panela. No pacote, incluíamos a compreensão e o riso aberto de funcionárias que nos atafulhavam os pratos e de boa mente nos voltavam a servir. Em vista do nosso agrado, as mulheres floresciam só para nós. A Casa dos Rapazes fornecia a maior parte dos apreciadores da sua culinária sem arte, a generalidade dos comensais franzindo-se à vista da oferta e mastigando de obrigação. E elas por detrás de conchas e terrinas fumegantes, a deitar a comida nos pratos de má catadura, apostrofando-os, então, não te apetece, és muito fino, tu; ou virando a autoridade para rapariguitas magrinhas, à época as gordas eram sobra, não queres nada só um bocadinho, olha para ti,  pareces um palito, pensas que tens melhor lá em casa, pensas.   Neste mundo de vapores domésticos e cheiros perenes, desde o primeiro dia concordei com Esparguete, as refeições eram a melhor oferta da escola. Em vista desta circunstância, o trio fez pacto de pontuar. Nada de faltas. Enquanto os outros abancavam por aqui e por ali, caçoando, nós três, Esparguete, Lingrinhas e eu, saíamos da carreira para o café do senhor Rogério, único lugar aberto desde as seis da matina. Ali chegados, depúnhamos livros e cadernos num canto e, por entre clientes matinais e apressados que mastigavam a primeira refeição, varríamos, lavávamos e limpávamos os copos sujos de vinho e bagaço, asseávamos mesas e balcão, despejávamos o lixo.  As simpatias de Rogério impediam-nos o relento a céu aberto. Em troca dos nossos favores, oferecia-nos abrigo matinal. Mal  o Relógio Suíço entrava pedir uma bica bem tirada, dávamos um adeus apressado ao de trás do balcão e sumíamos rua fora. Por vezes, o senhor Rogério estendia-nos três metades de sandes que íamos mastigando até à escola, embrulhados em rijeza de frio que casacos fortes não havia e os Invernos alentejanos são ásperos. Na certeza da estabilidade conseguida, conseguíamos continuar a ser crianças. Tínhamos os dias ocupados, o sustento medianamente assegurado, um tecto e, sobretudo, navegávamos protegidos pela eternidade daquela trindade amigável. Tia Emília era tempo que me parecia longínquo, coisa de uma vida de sonho e sem volta.
                      Nas aulas, pouco aprendíamos. Faltava-nos a vontade de saber, a curiosidade dos livros não nos espicaçava. Acresce que, no regresso a casa, a vagabundagem pelas cercanias impedia-nos de chegar à Boa Semente com tempo para cumprir deveres escolares. Logo que a carreira  nos vomitava na paragem, corríamos as quintas, rondávamos as casas, vigiávamos portas e janelas em busca de ajuda no jantar. De conluio, dois de vigia e um a agir, roubávamos fruta, ovos, figos e uvas postos a secar, tomate da horta, tudo que nos servisse e a terra desse.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Percalços e Contradições da Timidez

                E as botinhas das minhas amigas, toc, toc,toc, martelando as tábuas do passadiço, um ou outro transeunte a cruzar-nos. Nas dunas, o amarelo afogueado das mimosas em espanto abúlico, afinal é verão e falhámos o carnaval; a gratidão risonha das flores silvestres  curtindo o sol; certo ar de tundra, presente na vastidão levemente arqueada da terra. Na esperança de WC aberto (procedia  ao transbordo imediato do fato de banho), desviámo-nos até à harmonia de um casinhoto de madeira, apoio de praia bem enquadrado. Infundado intento. As maçanetas, zangadas com a nossa vã pressão manual, enxotavam-nos, fora, fora, não nos perturbem. E as fechaduras a secundá-las,  olhando de viés, são parvas, então não vêem que temos duas voltas de chave, ora esta. Refizemos caminho. Incentivados pela sublevação minimalista ocorrida na casota, os recamados do corpo aprontavam-se à revolta, isto não é lugar para mim, quem me dera a sapateira lá de casa, o fresco do roupeiro, um lugar sem surpresas e subidas de mercúrio. Mas, num repente de calor, chegou-nos o final do passadiço e, logo, logo, a liberdade dos pés na areia. Ter os pés assentes na terra definiu-me. Olhei em volta. A uns metros, plantava-se nova casota. Maior. Um restaurante de praia ou, quem sabe, lugar de venda de gelados. Arrepiei caminho e decidi, vou vestir-me ali naquela sombra. A esta altura, a natureza do calor já não convidava, impunha. E enquanto as minhas amigas descansavam conferenciando hipóteses e possibilidades, abarquei num ápice dois pormenores: chegava gente no passadiço e eu estava na sua frente; o lugar que à distancia nos parecia deserto, estava tão ocupado como outros que recusáramos. Pactuei comigo mesma ser assunto de irrisória importância, qualquer topless ligeiro, em gente da minha idade, é coisa que não alonga cobiças e até se pode tornar incómodo para quem vê.  E eu era tão estrangeira para eles como eles para mim, que é como quem diz, não me existiam. Foi mesmo fácil.
                Escolhido um lugar isolado com gente à volta mas resguardadas de mirones abusivos, completámos a obra. A ninfa, claro, ostentava uma lingerie de estalo e ninguém diria - verdadinha - que não usava biquini. Linda, linda. Molhada desde a firmeza dos pézinhos à ponta mais afastada do seu afro rotundo. A mãe optou por, guarde-a Deus pela ideia, ir ao banho com body de manga comprida que, acaso feliz, usava por debaixo do vestido. Ora, é claro que nos rimos do body e de tudo,  mas as fotos estão bem originais. Portanto, o trio repartiu a minha toalha e casaco. E, caso insólito, digam lá se já viram alguém, em dia estival, estender um cachecol na areia para se deitar sobre ele. Pois também nos aconteceu. E mais. Na tardinha, já saíamos em cansaço leve, quando vimos, calculem vocês bem,  uma fada caminhando pela areia. E a minha amiga na sua proverbial lucidez, olha, está na hora das fadas virem à praia.
Não foi bonito?! Foi. E tão memorável.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Percalços e Contradições da Timidez


Tudo começou aqui. Com a Nina a lembrar o que não esqueço. E depois, a meteorologia detonou-me. Sem espavento, no seu debitar quotidiano, anunciou um domingo cálido, de sol radioso. Num palpite relâmpago, o tiro partiu sob a forma de sms que, em terreno fértil, germinou. Combinámos o essencial,  espaço e tempo do encontro. Somos assim, desinteressadas de pormenores. No dia seguinte, depois de algumas peripécias irrelevantes, encontrámo-nos. Passava das doze. Três mulheres. Eu, ténis, collants e vestido largo de flanela cingido por espessura de cinto, mochila ao ombro e o estorvo de um casaco de malha no braço; elas, collants de malha, botas, kispo, vestidinhos de fazenda suave, um saquinho discreto a tiracolo. Dado o lugar para onde nos dirigíamos, ligeiramente bizarras. Mas tudo bem, íamos só ver, morder o ambiente. Entretanto, o ar resplendia e convidava. Lamentámos não levar chapéus (tanto gosto de enfiar barretes e escapou-me).
No barco, relembrando cenas de há mil anos e nós duas jovens, optámos pelo ar livre, mas não ousámos a amurada onde, completamente fora do mundo, nos pendurávamos a cantar tudo o que sabíamos, pares de golfinhos em cambalhotas felizes, seguindo-nos empolgados, quem sabe se presos da nossa flauta de Hamelin. Mentalmente arredadas do pessoal, éramos nós e o rio. Desta vez, sentadinhas e compostas, éramos nós e a nossa circunstância, a insistente força do sol insinuando dúvidas na oportunidade da indumentária; golfinhos não havia. Mas, em rigor, ainda só lamentávamos a falta de chapéu. A luminosidade franzia, e, à ninfa cuja juventude condescendia em acompanhar-nos faltavam as lentes solares, ufano objecto que a minha miopia ostentava.  Embaladas no ronronar do veículo que cortava a água como faca em manteiga, comparámos equipamento. Eu levava toalha e – descargo de consciência - tinha atirado para o fundo da mochila o displicente fato de banho da natação. As minhas amigas, pousadas no banco como deusas, ambas em traje de passeio. Enfiadas em suas botinhas e collants opacos, vestidas de invernia diáfana. Muito in. Quando o barco atracou, num rasgo de frescura, aproveitei a casa de banho, despi os collants e desfiz-me do cinto, apetecendo-me despir o vestido. Elas mantiveram a compostura.
Fazer caminho ao longo do passadiço foi vento de mudança, que é como quem diz, suportámos um calorão que fez surgir propostas. Minhas. Claro. Por essa altura, a nossa ninfa afro já lamentava o fato de banho e maldizia os dois pares de meias; a mãe pretendia sentar-se na areia e despir os collants; eu oferecia o fato de banho engaiolado à pequena deusa que caminhava donairosa. E ninguém ousaria pensar, daquele passo seguro, que também lamentosa.
Fomos andando no calor das dunas. Cheirava a terra aquecida de sol e à vegetação rasteira que sobrevive em alegria. E, à medida que eu levantava hipóteses que elas rechaçavam de voz mas iam acomodando na mente, íamo-nos afastando de lugares mais povoados. Parece que tinha dado a toda a gente um vaipe idêntico ao meu. No compasso de calor, as minhas propostas já ousavam os trajes menores, com exemplos práticos, o savoir faire e a total desvergonha que me caracteriza  em situações caricatas. Mas elas reticentes. E se. As pontas soltas de restos de pudor  boiavam no ar e amoleciam no calor, quase, quase, a desmaiarem. E eu, de cabeça, a confirmar o impossível de enfiar o fato de banho rejeitado através do recato de vestido menineiro. Mas convicta, hoje vai ser o meu primeiro dia, está feito.
(cont.)

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Surpresa


É em ti que o quotidiano se dilui e a mais escaldante notícia arrefece. Viajo para ti quilómetro sobre quilómetro e o caminho é prenúncio de alegria. Não é um amor incondicional. E nem sei se é amor o buscar-te por me seres um bem. Não morrerei de privação se não volte a ver-te ou a sentir-te. Mas hás-de faltar-me terrivelmente. E, no colectivo de momentos bons, apareces. E apareces. E apareces. Contudo, dos teus muitos rostos, só um me descansa e dá prazer. Digo que é meu esse pedacinho, sabendo que a ninguém pertences senão a ti. Não me serves irado, raivoso, impaciente. Não te gosto descomposto e fora de ti, arremetendo em trovões de espuma, deus desavindo querendo subverter a ordem das coisas. Até medianamente aborrecido, a desmanchares-te em ondas de azeda resmunguice, me entristeces. Tem dó.
 O enleio entre nós acende-se no ritual de ondas meninas que rasam ternuras em dedos de pés e se perdem e entregam na areia; na transparência azul que vive no contentamento da água; no marulhar suave e secreto que me enfeitiça e escuto insaciável; no balanço espelhado da tua irresistível pele líquida que amo alterar; nesse abraço molhado em que sou sempre mais do que “um corpo mergulhado num líquido”; no cheiro suave e exaltante da maresia. É um descarado namoro. Portanto.
Acertas-me o lugar das coisas e dás aos problemas a sua dimensão. Regresso em paz, munida de certa leveza. Depois de nós, sou mais capaz de mundo.
Vá, reconhece, ficaste surpreendido. Já te tinha visitado em Abril. Mas em Fevereiro…Diz que não foi boa ideia, que não gostaste. Mente, vá.
Desvanecemos. Positivamente.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Golpe de Asa


Uma vez por outra, sem motivo que se veja, acordo no início da madrugada completamente desperta. Como soe dizer-se, dentro do hipotético cada um encontra a resposta mais  conveniente. A minha hipótese para tal singularidade é que alguém me chama. De longe.  Em persistente força de sentimento. Não alcanço a proveniência do chamamento, não sei se neste ou noutro mundo, mas tem o poder de me arrancar ao sono. Podem ser as três, as quatro ou as cinco. Não interessa. Sem sono ou rabugem, é um despertar para o dia. Só que não é dia. No ar, há um silêncio intocado que a minha presença perturba. Curvo-me à sacralidade da noite. Vestida de silêncio, fantasmática, ouso antecipar o pequeno almoço, o aroma do café, um artigo na revista. Lá fora, o cerne da noite abraça todas as coisas, distende-as em sono solto e liso. Desligado de maquinações e jogos humanos, sem o sobressalto de uma curva ou pedra no caminho, o benévolo sono do mundo é inocência linear. No breu nocturno que as estrelas vigiam e o luar esclarece, tudo devém possível.
Quem sabe, alguém sonha comigo e por detrás de olhos fechados persegue a minha imagem porque lhe sou um sol que se insinua por frestas de janela cerrada. Então, o meu desejo vai, pé ante pé, vigiar-lhe o sono. Desfaz uma ruga, desvia uma mecha de cabelo, arrisca um carinho em leveza de polpa de dedos a que a pele responde involuntária (que coisa bonita é haver resposta reactiva da pele). Ou tu me chamas de outro mundo, que desde sempre te moves a meu lado, anjo da guarda que não desliga do mister. Ou não me chamas ainda e apenas me despertas, bateu-te uma saudade. Quem sabe... Não acredito, e nunca o hei-de crer, que me tenhas esquecido só porque o mundo é outro, e Deus, e tal. Quem sabe, nesse mundo sem memória, me negociaste com o divino e esta é a hora de, por vezes, te insinuares no meu espírito, me visitares.
É óbvio, são madrugadas de escrita, coisa que não perturbe o acordar quotidiano. Depois, bem, depois é a vida de todos os dias. Banal. Prosaica. E nem parece que te chamei. Ou me chamaste. Ou assim. Por aí.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Carrossel


Por vezes, parece-me inútil recolher lembranças e fotos antigas, pesquisar recordações escritas e de viva voz,  perscrutar o passado com olho clínico devassando intimidades que, por mais densas, se quiseram em anónimo recato. Factos que são bolor e poeira e forço a serem vivos, que animo e insuflo de presente, por minha mão os retiro da fatia de esquecimento onde o flagelo da ausência lhes deu sumiço. E não sei se o que faço é bom ou é bem. Caminho para o antes de ti em busca da genealogia do feminino sentir. Apuro as mulheres que te antecederam. A força do sangue que te precedeu e deu origem. Sem ignorar o lado masculino. Todas lhe sofreram influência. E também tu, mas eu que peso tive. E o que antevês e é difuso em cada uma, se eu a desencante e souber contar,  hás-de entendê-lo melhor. O passado não se acrescenta, é história feita e contável. E se não leres. Se morro e não  concluo o propósito. Pois nada se perde, que a tarefa não é grandiosa nem a tua vida se torna outra por ela. É rumo meu, bordão a que me encosto neste caminho destinado, certa luminosidade de fim de dia.
Perdoa que também eu faça parte do que vos pertence. Por egocêntrico sentir, contar-vos não me basta. E vai a minha vida ensarilhada na vossa mesmo antes de o ser. Desde as primeiras lembranças com tia Emília. Mesmo quando era apenas o novato do Lar dos Rapazes e, por montes e quintinhas, aprendia a roubar gente quase tão pobre quanto nós. Podia tornar-me um profissional do rapinanço. Ou bom estudante. Ou esmerado e paciente agricultor, que, fazer nascer e medrar hortaliças e demais produtos em solo alentejano, requer perseverança e paciência.
Portanto, volto à escola. Não ao primeiro dia em lugar onde tudo me foi novo e o mal estar me impediu qualquer ideia decente - desejava com toda a alma regressar à Casa da Boa Semente - mas à rotina a que, gradualmente, me habituei. A carreira despejava-nos manhãzinha na praça principal e era suposto fazermos o caminho até à escola, função a que, ora um ora outro, faltávamos com desplante. Àquela hora, de portas abertas, apenas uma ou outra taberna a que os locais chamavam café e onde, se conseguíamos uns tostões, nos alambazávamos com sandes de chouriço divididas a meio ou em quatro por facalhão de respeito que o proprietário brandia como se fosse cortar um bacalhau, metade para mim metade para ti, desimportados de migalhas e círculos violáceos de copos de tinto nas mesas de fórmica lascadas aqui e ali. E os “rapazes do lar” assegurando que podiam beber sem efeito visível. O de trás do balcão, mais vezeiro em copos de cinco e de dez do que em tirar bicas a preceito, rara vez anuía. Em dias de sorte, resmungando, passa para cá a guita; e é só hoje, ouviste. Içava uma nesga de balcão e ia espreitar a rua posto o que voltava, fechava a ponte levadiça e servia o garoto ordenando,  emborca rápido, se a guarda sabe  ainda me fecha a porta. Mas tu, menina afinada e certeira, não conhecias o cheiro do vinho recozido pelas mesas, o azedo do vómito bêbado que a serradura do chão não neutraliza e que possivelmente me salvou da experiência dos copos de cinco ou de escorropichar restos e fundualhos em copos de véspera, o do balcão a fazer vista grossa. Tu não precisaste da nossa escola de ladroagem sem mestre. E quando o azul dos teus olhos me cruzou, era sem nuvens, um plácido céu aberto, ignorante céu, se queres que te diga.



sábado, 15 de fevereiro de 2020

Equação


Tenho amor entranhado ao portátil. E não por ser último grito ou ter avassaladora elegância anatómica. Como em todos os amores, gosto dele sem o entender cabalmente e até sem querer entendê-lo. É um amor e pronto. Contudo, nada o iguala aos amores humanos. Nele, o meu amor é interesseiro. Ou talvez melhor, interessado. É estrada onde os meus passos ressoam. Liga-me ao mundo e a outras pessoas, dá-me notícias, vozes e composições musicais, deixa-me ver o interior de palácios, põe ao meu alcance raridades que existem no outro lado do mundo ou rondam mais perto, gostos e sabedoria de gente desconhecida e longínqua por algum motivo exemplar. Permite-me as virtualidades comezinhas de participar nos gostos e desgostos de outrém que na realidade pouco conheço, dar e receber opiniões, testemunhar tristezas e alegrias. Enfim, é espaço de convivência e agradável tempo livre. E, muito importante, embora pouco se pense nisso, é espaço leve, não pesa. Cada um parte ou suspende quando quer, e, em geral, as opiniões contrárias perdem acutilância. Neste modelo de interacção tudo depende, em suma, do desejo e decisão individual. No âmbito relacional existe em diferido, vive sobretudo de palavras, alimenta-se de passado (mas todas as palavras se alimentam de passado). Penso por vezes sobre o que li – e vi numa reportagem da tv - acerca dos japoneses que estando sós e sem pachorra para uma relação a sério com outra pessoa (dá trabalho, sofrem-se revezes, os outros nem sempre acertam connosco e nós com eles) resolvem dar o seu amor e estima a cães que existem em lugares próprios e onde os visitam e acariciam (tudo muito clean); e eu, que tive uma peninha grande dos japoneses, pergunto-me se quem vive apenas neste mundo de ficção e relações que tais, não anda como os ditos nipónicos. Mal comparado. Como bem disse bettips, é uma conversa de surdos mudos, vive dos signos e sua replicação. Facto que mais me aponta a necessidade de preservar o convívio de viva voz e em presença, os amigos de sempre, a efémera vida que está diante dos olhos e chama. Bem dizia Vergílio Ferreira que a realidade factual transcende o signo, é, infinitamente, outra coisa. Há o tempo do mundo exterior, nem melhor nem pior que o de qualquer, mas diferente em cada um. Ali, o acto de viver é soberano. Nem sempre prazeiroso e tanta vez muito esforçado e ligado ao dever. Mas o corpo inteiro sofre e goza raios de sol e chuva fina, brisas e ventos fortes, doenças e revezes da fortuna, destinos precários que se julgavam eternos, alegrias e amores bombeados na força do sangue e alimento da vida toda.
Posto isto, restrinjo o telemóvel ao essencial utilitário, exponho-me à realidade exterior. O portátil é caso diverso e que não misturo, oferece-me outro mundo e outras gentes, pessoas.  E haver tempos de estar aqui e me entregar sem desvios, descansar em tempo de inspiração lenta, isolar-me de outras preocupações, podem crer, é deveras gratificante. E depois, eu sei, a net põe à disposição um mundo de coisas boas (as más, hoje não assuntam). Mas, mais do que procurá-lo, retiro prazer do que está em oferta, do gosto dos outros, mão aberta em partilha. Isso é o que acho maravilhoso e me sabe diferente. Fotos, músicas, palavras, sabem muito melhor se não sou eu a procurá-las (algumas não as encontraria). Mesmo. Portanto, meus amigos desta banda do mundo, se chego, estou  de gosto e da forma mais prazenteira que imaginar se possa. E afirmo de pedra e cal a verdade insofismável: devo-o a vós.
Obrigada


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Recado

Amigos desta Janela


sou a dizer-vos que, por problemas no portátil,  estarei off por tempo indeterminado e oxalá curto.
Portem-se como vos aprouver.
E façam o favor de ser felizes

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Carrossel


No período de ditadura nacional iniciado com Carmona, o baptizado de tua avó foi um fait divers. Houve festa de arromba e o solar  encheu-se de cor e luz. Nas semanas que antecederam o dia festivo, a casa sofreu desarranjo, andava num virote,  regorgitando de gente e preparos. Novas mulheres foram contratadas e por todo o lado espanejavam, lavavam, limpavam. Nos jardins e no pomar, o hortelão, secundado por jornaleiro das cercanias, aprimorava a esquadria floral e agrícola e, cuidando de muros e regueiras, erguendo uma planta aqui, podando ali, respigando velhice de folhas e caules, cuidando, dava à quinta o ar de objecto de requinte que espera, cabeça erguida, aquisição condigna. Na hora do almoço, a azáfama e os ruídos de arrastar de móveis e abrir e fechar de portas e janelas davam lugar à mexida de talheres e pratos por entre a conversada das mulheres, os dois homens mastigando em silêncio. Na mesa comprida do pátio traseiro, debaixo da tília, almoçava-se. Sentadas lado a lado, as mulheres  aproveitavam da boa mesa que não tinham em casa e maravilhavam-se de tudo, do pão mole em vez da côdea dura caseira que ainda assim não sobrava; da fortaleza gostosa  da sopa que tinha de tudo e até bocadinhos de carne; das cestas de uvas e maçãs frescas, vindas do pomar para a mesa e comidas à discrição; da loiça onde o almoço era servido; do copo de vinho que não se negava a homem ou mulher. Consolado o estômago e libertas da companhia dos dois homens que se afastavam para uma sombra e breve fechar de olhos, as mulheres devinham espirituosas, brejeiras e alegres, os males caseiros em suspenso, esquecida a miséria a que não viam fim, porradas dos homens, filhos pequenos a tomar conta uns dos outros e sabia Deus o que faziam todo o santo dia, mas incumbiam-nO de guardá-los que ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo, e o povo é, por sua condição, obrigado à confiança no Altíssimo. Depois do almoço, ensejando que tão bom trabalho lhes durasse ainda muitos dias, retornavam  à lida. Os homens marchavam por enxadas e sacholas e, palpando no bolso a tesoura da poda, seguiam ao pomar e jardim. As mulheres continuavam o serviço interrompido, areavam metais, sacudiam e lavavam carpetes, lavavam e enceravam o soalho, arejavam o bafio nos quartos de hóspedes, desempoeiravam cristais, loiça fina e talheres de prata, faziam camas, floriam jarras e jarrões, davam lustro a móveis. Alindavam.
Isolado da refrega, o morgado cuidava as suas meninas, fazia perguntas e constantes recomendações às criadas de dentro relativas ao bem estar das duas, fechava portas por mor das correntes de ar, mimava a mãe com doces e iguarias da sua preferência, não se deslocava a Lisboa senão por obrigação maior e no mais curto período de tempo. E quedava embevecido no berço da primogénita, escrutinando parecenças no espanto abismado que dedicava a cada parte do corpo como se fora minúscula e rara peça de relojoaria. Em desvanecida admiração saíam-lhe ternuras exclamativas que D. Ana num sorriso doce apodava de venturosas, que unhas pequeninas e bem modeladas, repara no indicador espetado; e a elegância das mãos, quem sabe vai ser pianista; e os pés, já reparaste neles. Tudo na filha o maravilhava.  
E por semanas se falou da festança. Era o refinado luxo dos convidados, o sermão do padre e a igreja mais enfeitada que jardim, os pratos do banquete confeccionados por cozinheiras que vieram propositadas e bem pagas, e o monte de doces e pitéus que chegaram de Lisboa por encomenda expressa. Mas, mais que tudo, ficou na memória o vestido de baptizado, tão longo e rendado como o de qualquer princesa. Ninguém esperava que a tua bisa, que vestia tão desafecta, escolhesse para a filha tal aparato de rendas de Bruxelas que nenhum dos criados sabia ser nome de cidade. E ficou célebre o desvanecido morgado a exigir ao fotógrafo pago a peso do ouro, uma foto das duas, faça o necessário, mas ponha-se à altura dos meus amores. E, apesar de antiga e desfocada pelos anos, lá está a tua bisa num sorriso jovem e feliz, ao invés do que acontece nas poucas fotos da época que exibem homens e mulheres carrancudos e muito direitos. Ela não. Está sentada em cadeirão que já não existe, adquirido para amamentar e segurar a filha no colo sem se doer das costas. Terá sido no verão, o baptizado. A jovem mãe veste blusa rendada com ligeiro decote. A blusinha assenta sobre saia escura comprida e com roda, por certo colorida, talvez azul ou vermelha. Mas o centro da foto é a criança, ou melhor, o vestido de baptismo, brancura de rendas que esparge em ondas sob a saia da mãe quase a ocultando. A primeira foto de tua avó. E o que sobra daquela rapariga doce e sorridente que foi D. Ana.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Carrossel


As casas guardam os mais recônditos segredos dos homens,  conhecem até aqueles que nem a si mesmos ousam formular. Infiltram-se por chão e paredes e, como um sal iodado e marítimo as vão corroendo. As casas envelhecem do que nelas se viveu e não apenas por madeiras de janelas e portas que incham ausências e desamor, caruncham e ganham bicho. Com o peso de tanta recordação surgem  sulcos pelas paredes, brechas engendradas nas feridas humanas que não sararam. E a humidade que lhes escorre do interior são lágrimas guardadas; rejeitam o que não é seu, expelem-nas à beira do não ser, cofre enfim aberto, repleto de títulos sem validade.  Também assim acontece ao solar que o morgado e D. Ana estrearam.  Por ele passaram gargalhadas e sorrisos alegres e o contrapeso de sofrimento e tristeza; grandes e pequenos problemas; ninharias e quezílias comezinhas; nódoas negras esfacelando o espírito, nascentes de aleivosos desânimos. E houve mortes e nascimentos, vozes austeras, tristes, gritos, desaforos sem razão e com ela, mágoas roxas e caladas. E doces chamamentos, riso de crianças, constantes sonhos de Penélope, inventores de primaveras. Hoje, e até onde a vista alcança, o solar padece de outono avançado. A palmeira, tronco velho incapaz de novas palmas, ainda ergue lá em cima o penacho débil e quase seco. O moinho de vento parou há muito e resiste encanecido e ultrapassado pelo antigo viço e donaire de palmas saudosas de mar. Amputado de uma pá, salpicado de manchas castanhas, marcas de idade ferrugenta, o moinho é gigante adoecido. Noutros tempos foi símbolo próspero; hoje, confrange o olhar. De tanto não servir, apequenou. Quanto às laranjeiras sobrantes - duas ou três árvores artríticas e dolorosas –, votadas ao descaro de abandono severo, entrou-lhes uma revolta calada, moída na seiva dos anos. Da mágoa e orgulho ferido resultou o raquitismo de frutos amargos e sem serventia. No antigo tanque de rega abundam escaras soltas pelas paredes outrora brancas e a água apodrecida enxameia de pequenos corpos aquáticos que pululam  e atraem tudo que é mosca e insecto menor. Afastando partículas de lixo e folhas mortas, vem-nos o cheiro denso e escuro da água há muito estagnada. Forrando paredes de acetinado verde, o lismo cresce  sonâmbulo e em balanço materno. Do jardim sobram os arruamentos e  a coragem de uma ou outra flor que se precipita em cada primavera, sobrepondo-se aos tentáculos do ervaçal invasor.  
Gasto o meu tempo a recordar-te casa e família, esmiuçando diferenças como quem conta as pedrinhas pequenas do caminho feito. A entender a rede das raízes. Contando-nos.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Carrossel


Atardo-me por vezes a pensar no contraste da tua família grada com o exíguo anonimato que tia Emília resgatou ao apanhar-me na soleira de casa. Nesse tempo de miséria salazarenta, a pobreza gerava muita criança e não se pensava em roubar uma. Algumas, por força da míngua que se vivia em casa e desejo de que tivessem melhor vida, eram dadas a quem as não tinha e podia criá-las com desafogo. Outras, abandonadas à nascença, eram deixadas na porta de fulano ou sicrano que se julgava poder acabidá-las, na penumbra de uma igreja para que o padre as destinasse a qualquer instituição, no portal das irmãzinhas de caridade que podiam mandá-las para lugar onde roupas e alimento não faltassem. A maior parte das crianças abandonadas eram crianças secretas, vinham sem encomenda e eram estorvo de solteiras e casadas. Que o pai podia ser qualquer e saía incólume e tanta vez incógnito, mas à mãe crescia-lhe a mal querença à medida da barriga, “portava-se mal”, a letra escarlate existia sem existir. E portanto, sabe-lo bem, julgo que terei andado encoberto, nove meses sujeito a um aperto de ligaduras  e trapos sujos. Serei filho de uma solteirinha ou de qualquer solteirona – a partir dos trinta as mulheres eram consideradas velhas e solteironas. Ou sou resultado de um caso fora do casamento, uma aventura breve ou amor escondido. De uma coisa estou certo, deixou-me na porta de tia Emília, portanto, não era – ou não é -  uma má mulher.
Mas tu, sim. Tu tens árvore genealógica ordeira e dinástica, ramos que originam ramos e se perdem nos confins. Que recuei apenas até à bisavó que tanto admiras, senhora que parece ter existido a partir do casamento, tão poucos os dados que encontrei. Criada em Mafra, viveu sempre na periferia de Lisboa junto do pai amanuense em repartição do Estado e não foi a princesa que a província imaginosa concebeu. Cresceu sem mãe  e atensa ao prior do lugar, amigo do pai desde os bancos da escola e que se condoía dos dois e a entregava aos cuidados da governanta. Familiar de água benta e batinas, a pequena Ana conheceu todos os cantos da sacristia, chamava os santos pelo nome, impressionava-se com o tamanho natural do Cristo morto que julgava ser de origem, o próprio Deus  num caixão de vidro, jazendo  na sacristia do senhor prior. E, enquanto a governanta varria a igreja, ajoelhava em todas as cetinosas almofadas de sumaúma dos genuflexórios das senhoras mais senhoras. Do pai sabe-se que vestiu até ao fim a viuvez e, em vésperas do casamento da filha, o levaram uns maus ares, talvez a tísica galopante, mas nada foi confirmado. Dele resta a opinião escrita pela bisavó, que a tristeza lhe ensombrava o olhar e era senhor de impávida rectidão.