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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Busca de Sentido

 

        Gasta-se a vida em busca de sentido. Do sentido que temos dentro dela. Não do sentido da vida em geral, mescla de seres animados e inanimados que povoa este mundo que para muitos é de Deus e para tantos será outra coisa. Sentido que nos pertença como homens, o sentido de cada um no mundo pequeno que lhe coube, ou conquistou, ou. E que foge. Se transmuta. Perde-se e readquire-se. Em cada mutação há um florescer por entre pedras, progressiva força ou debilidade, mas sempre afirmação vital. Quanta gente cresce e envelhece sem que a questão lhe aflore a mente. Há uma ignorância feliz, robusta, que se nega o mais que pode ao sofrimento alheio. E vêm as desculpas, não posso ver; sou muito sensível; faz-me mal. Acontece muito com a experiência da morte ou a sua proximidade. Mas quem vê, quem “sabe” do sofrimento alheio; quem, por bem querer, assiste filhos, pais, cônjuges, amigos, gente que se não despega do afecto. Esses, que sentido encontram, que processo os levará a refazer o círculo sempre incompleto do sentido?! Não sei, mas é certo que hão-de levantar-se; depois da tempestade, a bonança.

sábado, 19 de julho de 2025

Bolas de Sabão

 

        Nos dias e momentos em que nada apetece, tenho por hábito picar aqui e ali, blogs a que pouco me prendo e leio por desfastio enquanto penso no a seguir. Creio ter sido assim que cheguei a “A Gata Christie”. Bom, fui muito pelo nome: é bem humorado e lembra-me autora que admiro e de quem, em meu tempo de literatura policial, li tudo que havia a ler.

        O que “A Gata” escreve sobre terapia! Cara mas importante. Um salva vidas de iate, digo eu.

        A terapia parece-me período de actividade paga de atenção ao outro; coisa muito mental. Não aparenta ser de dificuldade assinalável que justifique os preços irrisórios a que se guinda. Portanto: somos um largo conjunto de desajustados a nível mundial e os/as terapeutas, e mais a sua eterna proposta de auto conhecimento, mantêm resultados restritos. Elitistas, digo. Gostaria sinceramente de saber se os beneficiados se tornaram melhores pessoas. São melhores para os outros? Têm maior e melhor capacidade de doação? Fazem melhor o mundo desde que a terapia lhes entrou na vida? Apesar da máxima socrática (o filósofo), “conhece-te a ti mesmo”, o sentido parece-me diverso. O certo é que as surpresas vindas de outrem – boas e menos boas – me determinam bastante (pode ser falta de análise?). Vou-os e vou-me neles aprendendo, actividade sempre inconclusa. 

        No abraço da velhice, aprendo o desprendimento; afrouxo laços – o mundo dos velhos vai-se estreitando e vamo-nos despindo e despedindo à medida do entendimento da nossa perda de importância. Os anos e a circunstância restringem-nos ao essencial e a isso somos gratos, perdida a elasticidade que nos disparava para diversos campos. Afastados do mundo da necessidade, por certo ficam alguns amigos, mas já sem premência; fica a família, mas sem ilusões; ficam amores e seu caudal (minguado ou não). Ainda que o presente nos exista, tudo vale mais no que fomos.

Descartados os terapeutas de ofício, o que resta ao extenso mundo que os não frequenta?! O mesmo que a todos os analisados e aos próprios analistas: viverem da forma mais propícia que conseguirem. Ou, no caso da Gata, ir passando a ferro e dando abraços, e amizades e isso, que um dia também há-de mudar. É bem mais nova que eu, essa menina. Ainda lhe faltam umas coisas, tal qual me faltaram a mim:).

Enquanto haja, é tudo vida.


domingo, 24 de novembro de 2024

O Mundo Que Somos

 

    

    As festas natalícias não parecem abaladas pela incerteza dos tempos. Os espíritos embebem em supostas preparações, marcam-se almoços e jantares de Natal nas empresas, entre amigos e conhecidos, e este espírito corre por instituições e outros organismos corporativos. No corrupio de refeições festivas, os restaurantes exultam e vão encher. Contratam mais um ou outro imigrante para ajudarem na época mais afanosa e fornecem-se de ingredientes, aumentam contratos de peixe e marisco, põem doceiras e cozinheiras de sobreaviso e encomendam paletes de ovos, resguardam encomendas de carnes e enchidos. E as couves, as couves de Natal que poucos comem noutra época do ano. A sociedade de consumo não pára.

    Acordo no meu quartinho silencioso e confortável e penso nos que outros homens lançaram à guerra, os que ela surpreendeu e não foram vistos nem achados senão para as consequências – não têm como eu um lugar próprio, limpo, isolado das intempéries e, até ver, seguro. Muitos perderam a rede familiar que sustinham e os sustinha, não gozam de fins de semana e para eles todos os dias são igual inferno. Não têm banhos quentes nem as refeições a que foram habituados num tempo que lhes aparece tão recuado como sonho antigo. E desses, estejam onde for, seja qual seja a sua nacionalidade, pertençam aos que ganham ou aos que perdem, sou irmã de alma. Mas irmanarmo-nos com a dor e o sofrimento, deplorarmos a injustiça intestina de toda a guerra, é nada. A piedade dos homens não minora sofrimentos, não tem mérito, é apenas decorrência natural em quem é humano. O facto de me serem hábito no pensamento não os toca. E eu gostaria que bastasse lastimá-los com sinceridade e veemência para que algo de bom lhes acontecesse.

    Em dias e noites de temporal, açoitados pelos elementos, penso mais nesses abandonados da sorte. Penso sem proveito. Penso sabendo que, quando o Natal se aproxime, também o meu mundo se enfeita para receber a família, também corro aqui e ali, colaboro no desejo de que tenham uma noite pacífica e agradável. Mas eles continuam lá sem diferença. Que poderemos fazer?!

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Da Santidade

 

    Quando a acelera do padre Gama ronronava na curva do portão, tinha vontade de desaparecer. Era como se, indubitáveis, as suas palavras puxassem para mim a santidade que repugnava e antes não me apoquentara. Não sei quando me abandonou o terror religioso, mas recordo nítidos os momentos em que passava na esquina do monte correndo sem parar. Ali existia uma pequena azinheira que a minha imaginação guindara a poiso de Nossa Senhora – porque Ela ia aparecer-me de certeza, tinha aparecido às santas todas e aos três pastorinhos, portanto, aparecia-me. E de seguida, eu morria ou adoecia de morte. Ou ia para um convento, que Nossa Senhora não fazia por menos, acontecera, sem falha, aos que a tinham visto (factor que não entendia: como é que uma aparição podia ser uma coisa boa, se os contemplados acabavam todos mal?). A minha solução era correr sem medida e, nunca por nunca, olhar a azinheira. Se a Senhora lá estivesse mas eu não a olhasse, não chegava a santa, podia seguir estudando na vila e pedalando pelos caminhos da vida. Conclusão: espero que a Mãe de Deus não se tenha dado ao trabalho de pousar na enfezada azinheira da esquina, árvore tão pequena que só por milagre se aguentaria a uma nuvem com uma senhora que, mesmo etérea, pesava. Por mim, enquanto aquele projecto de árvore existiu e éramos as duas na esquina, nem um soslaio me mereceu.

    Porém, certo dia escurecido em que corria desalmada, o coração ao pé da boca, ouvi a voz de meu pai, onde é que vais a correr tanto? – e depois em solilóquio - A gaiata tá maluca. Abrandei. Do que tinha investigado, os encontros com Nossa Senhora eram mais ou menos íntimos, a presença de meu pai, ateu convicto, salvava-me. Mas como é que eu lhe explicava a corrida?! Deixei por conta dos mistérios que acontecem aos treze anos e segui ao meu destino. Disfarcei.

    Entretanto, o padre Zé regressado, lá se foi a acelera e mais o senhor padre Gama. Voltei ao meu ser e nem resquícios da perspectiva de santidade que me imolava a contragosto. Foi fumo que dissipou.

    Passados alguns anos, naquela esquina de sol virada ao montado, havia um acordo tácito: fazíamos uma pausa na lida e comíamos laranjas depois do almoço. Eram dias de férias, luminosos e gélidos, e havia a brevidade do calor invernoso a reflectir na cal e o sabor frio e doce dos citrinos, as cascas em monte e nós quatro unidos no cheiro do fruto, dedos ágeis separando gomos. Eternos e sem idade, os chapéus e bonés de meu pai na cabeça, palrávamos sobre os pequenos nadas da vida, partilhávamos as novidades diferentes que vivêramos em período escolar, mãos lambuzadas ajudando à história e que depois lavávamos no tanque de rega. Deuses uns dos outros, bentos de sol e futuro, existíamos naturais e sem susto.

    E nunca senão em letra eu me decidi a contar estas avarias mentais, secretas tropelias de meus anos verdes.


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Da Santidade

 

    Não recordo o teor dos diálogos e julgo que logo após me fechava com os garotos na casinha que meu pai cedera para as aulas e esquecia tudo. Tudo, não. O padre insistia em repetir afirmação que, a cada vez, me assustava mais. Dizia ele convicto olhando-me nos olhos, “ a menina é uma santa”. A princípio limitava-me a sorrir incrédula e acenava que não. Mas ele insistia, “a menina é uma santa”. Na vez seguinte, fosse qual fosse a conversa, lá íamos parar ao estribilho. Aquilo impressionava-me sobremaneira. Era inegável que eu não tinha o aspecto das santas que conhecia de imagens e santinhos que minha mãe guardava. Nas horas livres, ia dar volta à caixa onde um monte de santos e virgens confraternizava a esmo; elas, se não estavam de olhos em alvo, miravam-me docemente – podia ser que alguma daquelas figuras fosse menos áurea, menos bonita, menos penteada. Passava-as uma a uma, atenta ao detalhe. Mas não, todas surgiam impecáveis, lindas, olhar de bondade resplendente e sempre limpíssimas. Além disso, exibiam sugestiva patine e surgiam tão viçosas como a flor que seguravam - quase sempre uma açucena -, factores que não quadravam ao meu ser. Arrumava a caixa descansada, eu jogava noutro baralho

    Um dia tomei coragem e quando o padre voltou à santidade, disse-lhe que era impossível, faltava-me perfil (não disse perfil, ainda desconhecia o termo); e enumerei uma soma considerável de diferenças. Ele sorriu com bondade e volveu que os santos são pessoas como as outras, mas de bom coração; acrescentou que havia santos em todas as épocas e a maioria era desconhecida. Voltei a ficar de pé atrás. Mau, não me digam que eu podia ser santa. Sem revelar o que fosse das dúvidas que me perseguiam, investiguei junto de minha mãe se seria verdade qualquer pessoa ser santa. Para meu assombro e tristeza, ela assentiu. Eu, mas como é que se sabe que uma pessoa é santa? E minha mãe, só Deus precisa saber, os santos são como tu e como eu, mas distinguem-se porque praticam o bem, erram menos e têm fé mais forte. Varei. E como quem sente faltar-lhe o chão e se ampara à primeira coisa que encontra, insisti: mas os santos eram pessoas ricas, estão bem vestidos, limpos, têm boas cores...Minha mãe deu-me o seu sorriso mais terno, filha, os santinhos da caixa são pinturas, desenhos, ninguém sabe se eles eram assim. E rematou, não vês que o Francisco, a Jacinta e a Lúcia eram pastores? Parece-te que eles guardavam as ovelhas limpinhos e com túnicas claras?! Caiu-me o coração aos pés: então o meu S. Sebastião varado de setas e ainda assim lindo de morrer, podia ser um homem feio e barrigudo em vez do deleite musculoso e meio erótico de tudo no lugar?! Pronto. Estava feita. Ainda por cima, podia ser santa. Se tinha calhado aos três pastores, podia calhar-me. E aí começaram os meus tormentos. Fui ler a vida dos pastorinhos de Fátima e fiquei pior: dois tinham morrido em criança e a terceira, a Lúcia, tinha ingressado numa ordem religiosa e, que eu soubesse só saía para ver papas (lembrava-me de a ter visto com Paulo VI). Ora eu estava viva. Portanto, ou morria daí a pouco tempo, ou acabava em clausura. Bela perspectiva.

(Cont.)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Da Santidade

 

    No caminho dos dias e das vontades, interessei-me pela vida e trabalho de Paula Rego, que é como quem diz, comprei dois livros sobre. Uma das obras é um conjunto de entrevistas amplamente ilustradas, feitas e coligidas por Anabela Mota Soares, “Paula Rego sobre Paula Rego”; a outra é de Cristina Carvalho “Paula Rego – a Luz e a Sombra uma forma de olhar”. E vem isto a propósito de, anteriores às conversas, já os pensamentos serem como as cerejas. Estando a pensar nas pinturas executadas e que se encontram hoje em Belém na capela da presidência, mais precisamente, no quadrinho Anunciação, reparei que a forma como a pintora encarava a religião é muito comum. Semelhante a muita gente, Paula Rego vê no divino as pessoas de que Deus se serviu. E recordei Kant, o filósofo a reconhecer não possuírem os humanos estruturas intelectuais para entender o transcendente, razão porque tudo referem ao humano. Mas essa, sendo a mesma, é outra questão. O certo é que não consegui evitar a comparação de sentimentos pessoais e recuei aos meus treze anos e às suas mirabolantes inquietações religiosas.

    Cresci dentro da religião católica e sempre me lembro do padre Zé. Segundo me contaram, protagonizámos alguns episódios nos meus primeiros anos de vida. Minha mãe era profundamente religiosa, a beatice ausente- uma pessoa de fé. Tentei imitá-la sem grande proveito e também sem grande preocupação pelos fracassos, sempre soube medir a diferença entre nós. Ora, a dada altura (a tal dos meus doze-treze anos), o padre Zé ausentou-se da paróquia por mais de um ano e foi substituído nos serviços religiosos por um velhote regressado do então Ultramar, o senhor padre Gama, que cedo me distinguiu sem que eu entendesse porquê. Talvez o padre Zé tenha posto mão nisso, não sei. O certo é que conversávamos nos finais das cerimónias religiosas.

    Nessas férias, minha mãe tivera a ideia de me pôr a dar escola paga, facto que me encantou e hoje recordo com ternura. Foi a forma mais simples de me dar tarefa do meu agrado e pôr fim às brigas e pregações de meu pai acerca da minha fraca produção campesina e do enfunado desinteresse por tarefas caseiras. Além disso, granjeava uns escudos para uma ou duas peças de roupa. Nesse primeiro ano de trabalho de férias comprei lã e mandei fazer um casaquito; e adquiri um par de botas. Considerei-me rica.

    Ora o senhor Padre Gama que Deus levou há muito, aparecia por vezes em nossa casa, velhinho e caquético, sempre no horário da escola paga. Tinha uma acelera que rimava com a sua idade e suponho que falássemos de assuntos triviais enquanto os meus pretensos alunos pinoteavam num recreio feito à medida da conversa. O ponto era que, de repente, o padre parava de falar e adormecia escarranchado na velha motoreta, pés no chão. E eu quedava cabisbaixa e, sem saber o que fazer, mirava estupefacta as nódoas da blusa ou da saia, que só nesse momento me caíam sob o olhar; retraída, ajuizava não ser próprio de uma mestra apresentar-se em tais preparos. Mas estava ali, com nódoas e tudo, muito provavelmente despenteadíssima que de nascença sou inimiga de pentes. O padre não se tocava do meu ser físico e, quando acordava, desculpava-se como podia. Falava-me em paludismo, doença contraída em África que o punha a dormir nos momentos mais impróprios. Pedia-me que o acordasse com um abanão, acto que eu repudiava secretamente e que a minha judiciosa timidez bania com presteza. De modo que as nossas conversas aconteciam nas intermitências do sono.

(cont.)

sábado, 9 de novembro de 2024

Do Avesso

 

    Neste mundo onde o presidente de um grande país afirma que a sua vitória é a vitória do senso comum – até concordo –, Déscartes e demais filósofos são atirados para debaixo do tapete: invisíveis é o que eles são. Porque as opiniões pesam mais que a razão. A razão procura o bem comum e persegue a concordância entre pensar e agir desconfiando de si mesma e de tudo o que existe; as opiniões, por mais discursivas que sejam, procuram um bem particular - individual ou de grupo - e muitas são dogmáticas, não se põem a si mesmas em discussão, mas levantam cabeça e baseiam a acção. Aceitam-se como as verdades luminosas que não são. Tomam gato por lebre.

    Diz Déscartes no início do Discurso do Método que “o bom senso ou razão é a coisa do mundo mais bem distribuída”, dado que ninguém afirma tê-lo em demasia ou faltar-lhe. Ironiza, só pode. Se edifica um método para bem conduzir a razão, é por ter concluído que ela (os humanos) erra em demasia, se confunde e baralha na falta de um método rigoroso que permita distinguir o que é falso do que é verdadeiro.

    O motivo de chamar à conversa um pensador da primeira metade do século XVII, pode parecer anacrónico, afinal estamos no século XXI, sempre são trezentos e muitos anos de diferença. Peguei em Déscartes, mas podia ter chamado Sócrates ou Platão, e até qualquer filósofo actual: a divergência entre opinião e razão, com esta ou outra nomenclatura, está presente em qualquer pensador – uma coisa é o pensamento vulgar e superficial; outra, o pensamento crítico. O mesmo é dizer que uma coisa é o senso comum e outra o bom senso. São mundos separados.

    Um dos maiores e mais poderosos países do mundo faz-se porta-voz e é senso comum. Já não é questão de mostrar um método, a razão foi rejeitada. A opinião, que durante séculos foi zurzida por não saber distinguir o verdadeiro do falso e não ser de confiança, está sentada no poder.

    Os seres humanos são surpreendentes, idolatram o carrasco.

    Vamos em frente, o precipício é já ali. Ou será que vão existir surpresas?!

terça-feira, 5 de novembro de 2024

A Boa Velhice

 

        A gente percebe que envelheceu se, ao lembrar o que sempre gostou de fazer, repara que tudo se concentra num único objectivo: querer estar vivo(a) e com alguma saúde. Porquê? Porque a pouca saúde remete para o óbvio e temido sofrimento, afasta a companhia dos outros chegando mesmo a impedir projectos - comuns ou à unidade. Nestes casos, não é possível iludir a proximidade do fim. O sofrimento reúne consenso: é de evitar. Portanto, ser velho não é impedimento, o que verdadeiramente aborrece são as limitações, as restrições, os cuidado com máquina (a nossa) que durante anos fez parte de cada um sem queixas, e de repente lamuria a desábito. Pressuponho que vivam – os de mais queixas - a equilibrar; gosto da imagem, lembra-me a destreza de minha mãe com as sacas de pinhas à cabeça. Mas não garanto igual destreza. Portanto, a par da exigível habilidade externa que vão driblando como podem, têm agora de controlar os sistemas internos, cujos existiam invisíveis e bem oleados, a cumprir funções sem que dessem por tal. Mas atenção, há o tempo em que se fazem notar, acenam - por vezes, frenéticos: estou aqui, existo. E não, não é capricho egoísta, em geral é doença, mau estar, qualquer roldana que emperrou, falta de óleo numa peça da engrenagem, uma substituição necessária. E enquanto assim vivem, estão bem. Mas estarão?! Pois, não sei. Mortíssimos, estariam, sem dúvida, pior. Serão felizes a regular válvulas e calcular vapores, a evitar isto e mais aquilo, a calcular se o bem de um alimento suplanta o seu mal? Já não é a felicidade que os empurra, mas o desejo de sobrevivência. E continuam a equilibrar – cada vez mais torcidos, cedem na postura, transigem. Sabem por observação que cada cedência é uma corridinha para a meta que poucos desejam - felizmente poucos. Há equilíbrios extremos e extremamente instáveis. Num deles serão absorvidos pelo caminho. Faz-lhes um decisivo delete. E enquanto não, há que vigiar a máquina, impedi-la, tanto quanto sabem, do desnorte que é a rotação livre. Deve ser também para isso que existe a mente.

        Farto-me de ouvir dizer que a boa velhice se prepara a vida toda. É razoável pensar isto, dá-nos guita enquanto somos papagaio no azul. Mas é apenas meia verdade. Há demasiados casos em que a dita preparação serve zero, temos casos na família, nos amigos, nos conhecidos. Isto se não me quiser armar em defensora das classes mais desfavorecidas que mal têm para hoje. Como é que a gente pobre evita carrêgos múltiplos que lhe destroem a coluna onde o cálcio já não abundava?! Como pode haver uma boa higiene dentária (para não falar de outros problemas) quando o fast food é mais barato e satisfaz, surge à mesa pronto a deglutir e assim proporciona algum tempo livre?! Há muita pergunta que, quem vive na realidade quotidiana e popular conhece, mas é incapaz de resolver.

        Já concluo: a boa velhice não é para todos, a velhice confortável e medianamente saudável é só para alguns. E, hélas! É muito casuística e democrática. Salva uns e afunda outros. Há vezes em que os afundados estão no grupo que melhor a prepara. Também acontece. Se sou pela dita preparação? Sou. Mas estou certa que a vida não se compadece na mesma. É como diz Sophia, “um barco que não cessa de seguir sem ti o seu caminho”.

domingo, 15 de setembro de 2024

Apontamento

  A vida oferece-nos uma amálgama de contradições por entre as quais vamos singrando melhor ou pior, de acordo com o temperamento e a situação, navegação quase toda de baixios,  erros e acertos à compita. Deixamos muita pele pelas esquinas, equimoses no flanco que descuidámos e  por onde caímos. Descuido ou falta de senso, chocamos com ângulos em agudo e lá vem a dor inesperada. Não se pense que emendamos para sempre, há equimoses pouco inteligentes, repetem escalavrados antigos, caminhos que prometemos a nós mesmos não palmilhar, buracos onde pensámos nunca voltar. 

    Quanto à vida em geral, perseveramos no erro, ou não fôssemos género humano. Particularizando, a questão cresce em complexidade. Temos os casos -  comuns a espécie e géneros - em que a vontade manda e o coração desmanda; ou aqueles em que as emoções e sua imediatez lavram caminho. E mais. Decidirmo-nos por uma via possível representa sempre o afunilar de possibilidades, uma determinação, e nunca saberemos se tomámos a mais certa (será melhor presumir que sim). Diria um colega das ciências exactas de quem discordo, "havia que esgotar todas as vias para sabermos qual nos serve". Mas a vida urge e não espera, e as decisões pessoais raro envolvem apenas um sujeito embora sejam da sua particular responsabilidade. Fora de serem mera reacção, as opções  requerem agilidade mental e, por parte de agente que não seja masoquista, comportam a preservação do eu. Se outros motivos não existissem, tal bastaria para nos fazer errar.  

    Contudo, aceitamos que a  errar também se aprende. Pois sim. Mas, se a origem respeita ao mais intrínseco de cada um, assenta em valores e convicções que fundamentam a acção global do sujeito e a sua conduta essencial,  não será aprendizagem fundamental. Nesse caso admitimos a repetição e, por tal motivo, voltar atrás, além de impossível seria mera inutilidade. Tudo o resto, parece-me, pode ser emendado, remendado, erradicado - ainda que possa originar novo erro; há quem afirme que se aprende a errar melhor, coisa que não sei o que seja. Aprendemos novos erros; os mesmos talvez se repitam menos vezes e podem conter tal força negativa que leve à evitação. Ou, como dizem os manuais, o erro pode ser transformado, substituído por actos de compensação positiva e que menos nos quilhem a existência pessoal e de conjunto. Nascemos inermes, mas fomos feitos para aprender, logo, também para o erro.

Creio no poder da linguagem, penso que justifica e facilita o viver comunitário e a consciência de si. Os erros ilustram a contingência e a diversidade que nos constitui; também a liberdade possível, sempre menor do que a pensámos. Suponho que as escolhas mais perniciosas sejam as que parecem abafar a voz da razão. A vontade de domínio elege-as para, deliberadamente, provocar o mal nos outros. Mau grado desembocarem na menorização humana e impedirem relações amistosas e comunitárias, essas escolhas atravessam a espécie e chegam à ignomínia que é tirar a vida e destruir o quotidiano de inocentes. Ignoro se existe resposta que controle este factor a que analistas, escritores e filósofos deram e ainda dão tamanha atenção. Sem esquecermos a religiosidade e mais suas interpretações teórico-práticas.


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Prosa do Tempo que Passa

       Morreu-lhe o marido e um filho com 20 anos. Mortes lentas e muito sofridas. A filha  que lhe resta tem doença rara e atrofiante que dá pelo nome de paralisia supranuclear progressiva. Não sabe já do que se passa senão em flashes de lucidez. E será isto uma sorte, benesse da vida ou de um deus que dela se apiedou.

Fez hoje  cem anos. Conhece-me de me ver por ali, sem me acertar o nome. E sempre me sorri. Contudo, lembra-se das rosas brancas do quintal e, se ajudada, vai num encanto olhá-las.  Mas raro reconhece a filha. Nunca lhe ouvi palavra acerca de marido ou filho e julga-se menina, quer voltar à sua terra, lugar onde afirma viver com pais e irmãos. A chamada da terra dá pelo nome de infância e fala muito da mãe.

Qualquer aragem, por mais leve, lhe dará o descanso que merece. Vai evaporando em delicadeza e finura e Deus a livre de um dia, por um momento que seja, ficar ciente do ser em que a sua menina se transformou e mais se irá transformando.

É um passarinho débil e delicado que desconhece o ninho. Não voa e mal se alimenta. 

Pergunto-me se é para isto que queremos ser bem velhinhos. Ou se vivemos a ilusão de que os anos nos não roubam de nós mesmos. O tempo não exige de nós. Exige-nos a nós.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Setembro

  Chegou Setembro. Não entendo bem como, mas olhem para ele, é bebé e já mexe. E eu a comportar-me como grávida que dá à luz contrariada e olha incrédula e enojada a peça que saiu de si. Nada sente além de estranheza, não há voz do sangue, não estende braços a examinar a criatura e que importa se é ou não perfeita, que sexo tem, ou a cor do cabelo seboso: não a quer. A natureza fez um trabalho que a vontade não deseja. Vai sair como entrou (não exactamente igual): sozinha e por seu pé; havendo meios, desembaraça-se  logo ali do estorvo. Deixa-o para trás como qualquer saco que se esquece (pensa ela). Assina papéis, dá-o para adopção. E eu igual com Setembro. Podendo.

A realidade factual de Setembro  deixa-me perplexa. Que diabo andei fazendo que me retirou de Agosto, ou até do tempo, sei lá. Agosto que me trouxe bons auspícios e me achegou companhias de tanto ano; e propiciou-nos o reconhecimento como se viéssemos de ontem, na certeza de até amanhã. AMIGOS.

  Entretanto, senti que Agosto esboroava, como a grávida deve ter sentido os primeiros movimentos da criança: nada podíamos contra a natureza. Como usa dizer meu primo, no pasa nada. São apenas dois meses, um atrás do outro, assim consta no calendário.

Contudo, esmiuçando melhor, Agosto trouxe consigo uma lua ímpar que espreitei durante dias até atingir o cume de superlua, no que me suponho bem pouco original, imagino que grande parte da população do hemisfério norte assim a festejou. Faltou a abundância de dias quentes sem um agitar de asa ou roçagar de saia, e tampouco sofremos o sufoco de noites esbraseadas e quietas, a terra numa exalação transpirada, adivinhando já a torreira gemebunda de todos os seres sob a canga do sol. Não houve o toque em móveis e niquelados mornos como se um fogo lento os consuma e entre por madrugadas exaustas. Faltou o calor que cansa sem motivo, as pernas que pesam, o suor a empapar camisas, soutiens e mais lingerie que, podendo, se aligeira, pudores sem voz que os salve. E há as casas de brancura a espargir na campina, cerradas como cubos, densas e dolorosas ao olhar, herméticas. Pelos caminhos do alcatrão que derrete e se agarra aos sapatos de quem ouse, rosnam brevemente os ares condicionados de um mundo a quatro rodas. E é só. Nada do som das fontes que não há, nada de verdes vibrantes. A natureza, para sobreviver, pende e semi morre. 

Por mais que o verão se tenha feito outro de si mesmo, qualquer alentejano é grato a essas noites fora da sua natureza, seguro contributo para a ilusão do verão que não houve e, pensávamos, viria ainda. É óbvio que os dias de praia, à luz deste Setembro sem disfarce, me surgem de estreiteza tamanha. Quando o presente devém passado tudo se altera: no mundo natural como no humano. Deixa-me pena a água que tão pouco me recebeu. Saudade levei, saudade trouxe. Que no último dia lhe senti a despedida nos cambiantes: perdida a tonalidade azul-anil coloria de um meio verde escurecido. Foi Agosto (custa dar ao meu mês um pretérito). Não havia ainda o crocitar das gaivotas exigindo a retoma, asas rasando a areia, espera paciente pousada junto às dunas enfeitadas de cardos marítimos, beleza arroxeada e tão nefasta ao toque como boa para os olhos.

Quem é Setembro? Não é ainda Outono, mas já se prepara e lhe segue as pisadas. A luz enviesou, os dias encolheram e talvez as cegonhitas da beira-de-estrada estejam de partida. No último dia estavam em seu poiso, quem sabe se intuindo a despedida que eu recusava; ou, em versão mais prosaica, os dias encurtaram e, donas de casa diligentes, preparavam a cama. 

Talvez no final do mês recomece a natação. Talvez seja aceite em alguns cursos, talvez tanta coisa que inda não sei e pode acontecer. Subtraídos dois dias, Setembro é quase todo futuro, um mês de incógnitas. Vou esperá-las com calma, a idade não me permite grandes alentos e nem já estou por eles.

Bem vindo Setembro! (enquanto escrevia o texto mudei de opinião; da ex grávida não tive notícia:)).


Nota: O uso de maiúscula no mês é propositado. 

sábado, 8 de junho de 2024

Tolentino

 (continuação)

A história dos grandes faz-se à custa dos pequenos (já não estou longe do materialismo dialéctico, cuidadinho) e depois, um lugar no céu tem de ter a sua divisa, o destaque de primeira bancada. Daí o afã, a necessidade de uma campa santificada no âmago da catedral. Mas (há sempre um mas), seriam eles, pela vida que viveram, dignos de tal? Não vou ser má propositada. Quem sabe, não deram livre curso ao humano propósito de permanecer. Seria razão de peso. É desejo de todos: permanecer. Em Burgos, fartei-me de ver estátuas jacentes de gente mitrada e outros altos dignitários da igreja. A esses santos homens(?) não bastou a vida que por ali gastaram. Seres prevenidos, garantiram a continuidade intra muros. Ou tinham grande apêgo ao lugar, ou desconfiavam da vida que consumiram. Belos cemitérios, as catedrais. Desconhecemos o propósito, mas o resultado é digno de ser visto.

Estive quase quase a acender-te uma vela igual à de Ravena. Mas em Ravena havia frades de capuz e corda à cintura, e havia a preguiera tão bonita. E Bach. Tomada pela simultaneidade destes elementos, acendi-te uma vela. Desta vez apenas ajoelhei. Nota que a preguiera só aconteceu de joelhos porque os genuflexórios estavam forrados de pele fofa (um sofá para joelhos, vá). Haja Deus! Finalmente alguém pensa nos joelhos. Minto, Eugénio de Andrade valorou-os. Portanto, permite-me o acrescento, "alguém pensou nos joelhos dos velhos". Du-vi-do que os poemas do Eugénio se dirigissem a esses. E tu, poeta, bem sabes que Eugénio criou um poema de pormenor e o dedilhou nuns precisos joelhos. Santificou-os. Diria uma amiga que usa a segunda pessoa do plural, "estais bem um para o outro".

Vejo-te deambulando pela biblioteca do Vaticano e, palavra, não encontro jeito ou maneira para te termos aqui, inteiro e  regressado. Esse teu destino embebe-te. Mas, se um dia fores papa e ainda eu viva e tenha pernas, prometo ir de excursão só para ver-te abençoar o povo que sou.  Se ocupares o cargo máximo da igreja, rezo para que a história não se repita e te não caia o tecto na cabeça.

Acredito sejas homem naturalmente tranquilo. As tuas batalhas navais são internas e vais conseguindo defender o porta aviões. Sempre que podes e as circunstâncias to permitem, amas as pequenas coisas, condição da felicidade possível.

O meu até sempre da ternura

 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Tolentino

        Destas cartas que te escrevo não terás conhecimento; dois mundos que não se tocam, mas, como disse Galileu e  António Gedeão poetizou, todos rodamos no espaço a igual e estonteante velocidade. Mesmo sem lembranças e recuerdos, é seguro que rodamos e não contam todas as vezes em que te vi e ouvi em missas, entrevistas, conversas  e conferências. Não vale sequer aquele teu olhar que captei/me captou, desconhecendo quem eras.

  Desconfio que nos esqueceste. É a vida. Tens aqueles quilómetros de livros para cuidar e não faço uma pálida ideia de como procedes. Vinha só falar-te do que sabes: Espanha é pródiga em catedrais. Mais que os palácios, são as guardiãs dos séculos, mostram uma ou várias épocas e contribuem para a memória colectiva do país; encaminham o povo ilustrando percursos da arte humana. Que o futuro, sendo novo no tempo, faz-se sempre de passado. O que foi nunca deixa de sê-lo. Mas, sem raízes, quem seríamos. E é isto verdade para o mundo em geral e cada um em particular: à espera do olhar, ali se encontram de mão dada a arquitectura, a pintura, a escultura, a ourivesaria, o requinte do talhe na madeira, no ferro ou na pedra. Não serão obras eternas, mas face à efeméride humana, permanecem. Lembrei-me de ti. Que pensas daquela descomunal grandeza da arte, que refina o gosto e chama a estética do penitente e dos que entram por curiosidade e terminam em rendida apreciação do belo? Maravilha-te a luz coada dos vitrais mas pesa-te o excesso de riqueza? Pensas como eu na carrada de gente sem direitos, morta à sombra daquelas paredes e tectos? Ou  admiras mais o engenho humano que ergueu tais magnificências com rudimentos de maquinaria. Mas reparo - calcula tu -, nas incongruências da religião católica. Reparo nas comparticipações de grandes senhores, a fim de usufruírem de túmulo numa catedral. Julgavam que assim lhes seria mais certo e requintado o assento eterno. Como é que eles liam os evangelhos. Diz-me. Explica-me. Cristo aproximou as crianças e os mais pobres da vida eterna. Mas nenhum - e este é um raciocínio probabilístico -, digo que nenhum, ou muito poucos entenderam que é preciso cultivar a inocência que acredita; e ainda menos foram os que, sendo ricos, se fizeram pobres para agradar a Deus, distribuindo os bens próprios pelos desvalidos. Não foi e nunca será assim.

(cont.)

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pressupostos

  Estive lendo a entrevista de Guta Moura Guedes na Visão da semana passada, que a vida me anda num atraso que só visto. Devo dizer que  não me move qualquer simpatia pela dita senhora, cuja desconheço na sua quase totalidade; deve, pois, ser preconceito, o que instaura forte possibilidade de erro no juízo. Ou, dizendo-o de forma mais velada, a senhora vive num mundo que desconheço, de que oiço falar e sei que existe, mas orbito em dimensão distinta, onde defeitos e desaires pessoais e familiares abundam e se herdam. Não há quartos que se recordem nem avós com manias coloridas; há camas e enxergas que recordo em todo o lugar ressalvando a cozinha.  Das avós, uma era amorfa  mona, jamais cultivando o sorriso (nem compreendo como chegou a encontrar par); a outra encarnava o invés - atravessava-a uma genica sentenciosa e sorridente que a remetia à acção contínua, tanta vez de moral relativa e muito pessoal. Quanto ao meu avô, não tocava carrilhões, mas harmónio, e só o ouvi tocar num brinquedo de meu primo - adquirir harmónio verdadeiro era um impossível. Pontapés e murros, que eu saiba, nunca deu, nem em sinos nem em qualquer ser animado ou inanimado -  era um pacifista e objector de consciência nato, embora desconhecendo a nomenclatura. Sinto por ele amor incomensurável.

De acordo com o que li, Guta é especialista em design e cofundadora e directora artística de Terra Foundation que vai actuar entre a Comporta e Sines. Não entendi se Tróia ficou de parte propositadamente, se aquilo já está tão danificado que os ambientalistas - que, suponho, a dita fundação integre - andem em frente e já está. Fui investigar a organização e os rudimentos do meu inglês (não me apeteceu o tradutor do google) apenas retiveram  que é organização que pretende harmonia entre humanos e não humanos; fauna e flora conjugadas. E que construíu uma residência artística para poetas e outros artistas, cujos já fizeram pelo menos um concerto de música clássica, na zona do Carvalhal. Por costume e experiência, duvido destas organizações que pretendem endireitar o que está torto. Nutro ampla desconfiança por pessoas que tendem a desculpar os autarcas dos municípios que permitiram e permitem tanto atropelo ambiental. Foram erros deles, sim. Erros pelos quais arrecadaram bastante. E, se o não fizeram, então alguém o fez por eles. Que nunca como hoje houve tanto quadro superior nas Câmaras Municipais. Logo, errar ambientalmente é coisa propositada. 

Posto isto, pesando embora o factor residência artística ao qual sou sensível, e à educação em música clássica do povo (terá sido o povo a beneficiar ?!), desconheço como se chegou à escolha das áreas e dos artistas beneficiados. Posto isto, dizia eu, e para além da estação climática que construíram já numa duna, ficam por aqui na zona do Carvalhal?! 

Bem sei que leio mal o inglês. E é verdade que a música une os homens. Mas não consigo deixar de desconfiar. Espero bem que seja infundada a minha desconfiança acerca de mais um projecto que de facto protege o ambiente, mas apenas acessível aos de sempre. Temo que seja uma continuação do mesmo; resorts extraordinários para os donos disto tudo. E oxalá me engane e Dona Guta seja, afinal, o invés do que imagino. A ser assim, depressa mudarei de opinião.

Digam de vossa justiça

quarta-feira, 29 de março de 2023

Intervalo

 

Por vezes abre-se-me uma vontade de parar a realidade. Não me apetece mais futuro que depois se torna presente; sem descanso, é preciso continuar a projectar para que o presente se instale com suas surpresas no pensado futuro que, presentificado,  é sempre alteridade. E ainda dizem que há monotonia. Ai o tédio (deve ser doença de rico, o tédio). Queria parar a cansativa roda do tempo. Viver pode ser milagroso, bonito de verdade, mas cansa.  Mesmo se essa realidade se cinge ao que escrevo. É ficção, portanto.

Não me entendo. Pois se sou eu quem decide o quê das personagens, por que demoro e as abandono na história, quais crianças perdidas numa floresta de palavras. Que não são. A todo o momento posso retomar-me de Deus e traço-lhes o destino, faço com elas o que bem entenda. Mas não é exactamente assim: a resolução não depende apenas do meu ser metamorfoseado em divindade ficcional. A certo ponto da história - qualquer história -, os personagens aprendem a volição, querem isto e mais aquilo. E há a ambiência condicionante. Então – é o caso -, paro. E é como se dê um tempo àqueles dois que se pensam escondidos do mundo e estão ainda embrenhados um no outro, alheios às dificuldades em que os homens e a vida são pródigos. E isto é tudo o que, na minha condição de portuguesa chapada e alentejana de raiz, consigo oferecer. Se eu fosse sul americana, não inventava tão impossíveis e dificultosos amores. Ou inventava, mas também os resolvia por recurso a certas artes mágicas que muito admiro. Lembro-me por exemplo do que acontece logo no início de um romance que julgo ser “Como água para chocolate”, mas pode ser outro. Não tenho presente senão a ideia de que há alguém que derrama tanta lágrima que depois de evaporadas enchem a cozinha de sal e há alguidares  pejados com o sal das lágrimas. E isto é um demais que me encanta. Por ser muito visual. E porque tem certo ar das histórias que me contavam em criança e onde tudo era possível.  OU no livro, “A triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada” em que há um anjo com ar de ave desengraçada que cai numa capoeira de galinhas. E logo filas de mirones.  Paga-se bilhete para ver o anjo no galinheiro, chega gente de todo o lugar para lobrigar aquela triste ave, envelhecida e  acocorada sem pose ou auréola. Queria ter essa arte e envolver os meus dois amantes em magia narrativa. E de tal forma os enlaçava que, salvífica,  os erguia acima do mundo e os colocava no maravilhoso das histórias infantis que me habitam. Mas o fado dita que sou portuguesa e não sul americana. E por mais que admire aquele imaginário voador, fico-me pelos trilhos terrestres onde tanta vez me engano. E paro.  E volto atrás. E dou uns necessários passos. Gabriel Garcia Marquez inventou a história do anjo.  Mas, em cada vez que se me para a mente, encarno o anjo que ele inventou. Está tudo ligado.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Este Pequeno Mundo

 

Os dias já começaram a emagrecer. Nota-se no leve oblíquo dos raios solares que, nas mesmas horas, expõem à luz o  que antes resguardavam na sombra; ou o inverso. Vê-se na calma triste que se apossa do viço em flores sazonais e que iniciam o fim de ciclo; talvez se repare no voo de gaivotas sôfregas que reclamam o seu espaço e chegam mais cedo à praia; pela tarde, sobrevoam o reino que cedem aos homens no palpitante calor do estio. Sente-se no frio ligeiro das madrugadas, quando o corpo insatisfaz na frescura dos lençóis. Rebrilha no olhar dos regressados, ainda povoado de sonho e  isento da mordida dos relógios, um vagar de gestos que lhes vem do repouso que houve. E no entanto, a mente não pára de impor a realidade e desenha as pressas de sempre, os compromissos, a vida quotidiana quase elidida.

Mas, enquanto o espírito se prepara para o outono, lá longe há um inferno hiante e os sons da desgraça sobressaltam, martelam-nos a mente transbordante de gritos e perdas, que o fogo é malvado e galga feroz  por todo o lugar. Estorrica os pobres animais acorrentados que a aflição dos homens esqueceu ou foi incapaz de soltar, leva no ardor os malogrados bichos que encurralou e não podem ou não sabem como fugir-lhe. Que são tão inocentes como os homens que o sofrem. Mata a floresta de árvores centenárias, os bosques verdes, as espécies rasteiras que a terra alimenta e necessita. Traga o oxigénio do ar e todo o que as espécies vegetais nos dariam. Compromete-nos o futuro. Portugal é tão pequeno mas bate records,  é o terceiro país da Europa com mais terra ardida. Os bombeiros fazem o que podem perante o inimigo mortífero e arrasador. Mas estes fogos sucessivos, este Portugal a arder anualmente, não desperta governos? Não haverá alguém capaz de declarar guerra aberta ao fogo e a quem o alimenta? Homens e mulheres choram os haveres perdidos. Choro com eles, que pouco haverá no mundo das coisas que seja capaz de ultrapassar o valor de um lugar de pertença e de descanso, que, para a maioria, foi conquistado a palmo e a poder de suor. E, se há idades em que o recomeço surge como nova oportunidade, outras existem em que já não há tempo, em que se deseja apenas acabar dentro do mundo que se criou. Para muitos já não será possível. Choro todas as perdas. Choro pelo Portugal verde que vai desaparecendo, ano após ano. Choro pelos vindouros que não vão encontrar um país independente e capaz de lutar por si mesmo. Porque o deixamos inerme, incapaz de defesa.  

quinta-feira, 31 de março de 2022

Ao Correr da Pena

 

         Talvez tenha razão quem escreveu que um dia ainda chega ao erva príncipe e, em grande alarvidade (digo eu; que o será, sem dúvida), tenho um poema pespegado na página (original, meu). Ainda que eu mesma o não creia, quem sabe se acerta. Ressalvo: estou duvidosa qb. E entrou-me esta dúvida a substituir a negação rotunda, por obra do volte face que a seguir contarei.

Acontece que não apreciava ver séries na tv. Faltava-me paciência para esperar o episódio seguinte - em geral, só daí a oito dias -, entretanto esquecia-o e não podia voltar atrás, como ora sucede. Por esses anos, tinha um amigo apologético - ainda conto tê-lo - que afirmava taxativamente que hoje existem séries de qualidade superior a muito filme e que os actores até são os mesmos.  Como qualquer incréu que se preza, não acreditava e nem sequer me dava ao descaso de ver um episódio dos recomendados. Tinha as minhas certezas, filmes é que era. Mas, talvez pelo confinamento, talvez por outras razões que não vêm ao caso, a rtp play serve-me algumas séries que papo sem pestanejar. E outras que são apenas evasão. Bom, há ainda outras que me recuso a ver. E mais umas que começo, dou-lhes entre 15 e 30 minutos de atenção, e zás, corto-as da lista. As séries são os meus folhetins. Desejo que chegue a hora de me sentar a vê-las e “sigo o romance” qual velhota de antanho a seguir o folhetim do Tide, cujo eu pensava ser um homem e quando aprendi a soletrar descobri um detergente. Sempre as letras são grande coisa. Aliás, todos os nomes masculinos desconhecidos, eram antropomórficos, homens de nome estrambólico; e já está. Sempre resolvi os meus problemas do lado de lá, o mal nunca está do meu lado. Os pensos modess eram homens que me baralhavam um bocadinho porque nos Caprichos de minhas tias, a verve brasileira acrescentava, “modess pétala macia”, coisa que eu não achava que ficasse bem a um homem e por mais que procurasse, pétalas não havia por ali. Mas as garotas do anúncio apareciam engalanadas e vestidas de festa, ou com as sainhas curtas do ténis. E a crer na revista, “saíam seguras e confiantes com modess pétala macia”. Um daqueles rapazes que aparecia a dar-lhes o braço era de certeza o modess (pétala macia). E ficava satisfeita porque os nossos rapazes eram só Francisco, Zé Carlos, António, João; não havia cá pétalas macias, ora essa.

Pronto, já me perdi do assunto. Ora bolas. Pois, mas é que eu hoje tirei o lugar ao meu amigo e vinha mesmo fazer a apologia de duas séries que acho uma maravilha. Uma é diária (até agora) e nórdica; espero que não termine para já, gosto dela a valer. Chama-se “A mulher do meu marido”. Só a vejo no lugar que sabem, mas calculo que esteja na programação da rtp2 (é um cálculo); começou há pouco tempo.  A outra é espanhola e retrata a vida numa escola, centrando-se no professor de filosofia - uma figura. Tem o nome do professor, “Merli”. É muito actual e boa de ver; neste momento, passa apenas uma vez por semana (já foi diária). Está na terceira temporada; no entanto, acredito que se possam ver todos os episódios na rtp play (também me parece material da rtp2).

Ficam as sugestões. Propósito cumprido.

sábado, 22 de janeiro de 2022

A Involuntária Leveza da Imagem

Imaginando que tenho uma sósia e me encontro com ela na rua, creio que não me reconheceria.  Diariamente, o espelho cumpre, dá-me aquela imagem despenteada e tanta vez insone, árduos papos a sustentar olhos de problema que o dia olvida. Essa, sou eu. Um eu que não reconheço verdadeiramente. Se o encontre na rua não sei quem é, não estranho, “aquela sou eu”, como estranhei quando um dia me vi fotografada – e penteada, diga-se – em revista de tricot. Tirei a prova inquirindo de amigas e conhecidas, com quem a achas parecida, e todas, contigo. O facto estranho é que hoje não tenho imagem, nunca me apareço seja onde for e, pior, desconfio que não me reconheceria. Bom, ainda me reconheço nas fotos. E tal certeza orienta-me. Talvez se encontrasse a das fotos me lembrasse de mim e, em disparo de mola me saltasse a descoberta, “ah, tão parecida comigo”. É que não me agrada o talvez, mas não posso, em honestidade, afirmar o indubitável reconhecimento. Já me acontece há anos com o que escrevo: releio-me e penso que aquela pessoa acerta pensamento e palavra comigo, mas não me ocorre a pertença. Como em certo cartão de Natal que enviei e reli na casa do destinatário.  Pergunto-me como é que nem reconheci a letra, era manuscrito.  As palavras tomaram-me e  lembro-me de pensar que gostaria de ter sido eu a escrevê-las, invejei a autoria. Como cantou o poeta, serei “qualquer coisa de intermédio”, daí a dificuldade no acerto.

No entanto, algo me salva do completo desconhecimento. Em certo aniversário natalício de há pouco tempo (sendo de há muito, não valia) uma amiga criativa, de longos e afuselados dedos - uma pessoa daquelas com unhas pretas ou azuis, enfeitadas de brilhantes e o mais que a originalidade inventa -, ofereceu-me um quadro artesanal, feito com colagens de revista. Gosto bastante dele, tenho-o no meu quarto “se não fora eu ter-te assim/ sempre à beirinha de mim…”. Quando desembrulhei a prenda e ao primeiro olhar me saltaram as duas figuras repetidas n vezes, saiu-me, “estas somos nós duas”. Não somos, é claro. Mas é mesmo como se. Conclusão: ainda não está tudo perdido. Um dia encontro-me por aí e abraço-me contente à aparência de mim😊.


domingo, 5 de dezembro de 2021

Higiene Dentária

 

No cinema actual, muitas conversas ocorrem enquanto os protagonistas escovam os dentes. Bem sei que o cinema imita a vida, que é sintoma de quotidiano (os filmes antigos não tinham destas madurezas), mas que raio se conversa de escova na boca é coisa que não entendo; já me deitei a experimentar e não é discurso que se apresente, é que, se tal sucede, realmente, a uma pessoa, adia-se a conversa por uns minutos. A gente tira por segundos a escova e diz qualquer coisa como, um momento, estou a acabar de lavar os dentes. Mas eles não, eles vêm até onde está a outra pessoa, escovando sempre e mantendo o diálogo; ou vão dialogando enquanto se olham no espelho, a escova sempre a fazer o seu trabalho. A agravante é que dou em reparar que aquela gente não deve usar pasta dentífrica, vão mexendo, viram e reviram a escova dentro da boca e nada de pasta, nem um fio branco lhes espreita ou escorre. De saliente, só os altos da escova na bochecha, para cá, para lá. Pronto, é verdade que às vezes param só para dar a entender que a outra pessoa tocou com as suas palavras um ponto nevrálgico, pôs dedo em ferida. E fica aquele alto na bochecha, a mão parada no cabo da escova. Hão-de reparar, eles bochecham, bochecham, e sai só água. Oa isto dá que pensar. Será que ensinei mal os meus filhos, que aprendi errada a lição de escovar os dentes e sou só eu a olhar o espelho e achar-me apalhaçada, boca de bolhas e brancura de sabão em debrum. 

Ná, não me convencem.