domingo, 14 de setembro de 2025

Um Dia Atrás do Outro

 

        Passou uma semana desde o último post. A mania de contar o tempo pertence-nos. Ignoro se inscrita no ADN ou fruto de aprendizagem. Verdadeiramente, parece-me que o tempo não é de passar e somos nós quem dentro dele começa e acaba. Nós o inventámos para contar a brevidade da vida, alinharmos afazeres, conversarmos assentes sobre os tempos de haver tempo: passado, presente e futuro; esta estratificação do que em si mesmo não é senão um continuum, organiza-nos o discurso, orienta-nos o pensamento simples e a reflexão mais elaborada, situa-nos.

        Sei. É tempo de escrever. Mas nestes dias de tudo, de uma guerra iminente, da inércia culpada ou das hesitações que apontam a pérfida fraqueza e o desejo de colo, nestes tempos em que o continente mais antigo se porta como uma criança, mas não é senão um velho senil agarrado a sonhos impossíveis, confesso: perco a vontade.

        Fico-me a olhar a gata que é seta disparada na minha frente e lembro o mercado biológico na Herdade de Freixo do Meio, o pão de bolota que nem aprecio, mas tem muita freguesia e é feito por alguém com forte acento estrangeiro; a senhora – possivelmente inglesa - que vende colares e gargantilhas tão bonitos e baratos, garantindo que não faz dois iguais; os vendedores de mel e de batata doce que lhes apregoam a doçura; o holandês que vende queijos da sua produção artesanal; as meninas com olhar de poço profundo junto às essências, vestindo árabe discreto, altas, um moreno estonteante. E singram lindas, num admirável roçagar de sedas, pulseiras em braços de serpente misteriosa. Também o público que compra detém elementos insólitos: aquele senhor de farto rabo de cavalo que chega descalço, a dama que usa um colar que lhe chega aos joelhos, os garotos de pés nus e perna ao léu que se refrescam livremente no tanque que foi bebedouro de bestas. E mais.

        Almoçamos: mesas e bancos corridos, dois pratos em escolha prévia e sempre de produtos da herdade. Gosto destes almoços em que parecemos conhecer-nos uns aos outros por refeiçoarmos juntos. O certo é que, mesmo sentados lado a lado, não estamos senão com aqueles que trouxemos. A dar o tom ao almoço, o grupo de cante da minha terra - um dos elementos junta-se comigo na peixaria e quando fiz referência ao mercado adiantou, “estamos sempre lá; a gente gosta daquilo”. Ali pontuam alunos que tive há mais de vinte anos e onde já os filhos fazem uma perninha. Há até uma raridade que poucos conhecem: um francês reformado que veio há poucos anos viver por cá e canta alentejano como os melhores; diz ele que foi a forma de aprender a língua. Espero eu que o seu português seja diverso do de minha cunhada, inglesa de gema, que chama o filho mais velho de Joséi.

        Aos solavancos na estrada de terra, a última surpresa: o bambi dos desenhos animados despedia-se olhando-nos fixo e sem surpresa, estátua plantada nas suaves curvas da savana empoeirada do Alentejo. Uma meiguice líquida no olhar, como que a prometer, até à próxima.

        Não sei do futuro, tento pensar que só o presente existe em verdade e circunstância. Sei que particularidades desta natureza me agradam e sustentam num mundo de homens cada vez mais alienados do seu ser.

domingo, 7 de setembro de 2025

Manhã de Domingo

 

        Não sei que agradável dor nos invade às primeiras chuvas do verão que, tranquilo, se despede. Este é o tempo em que deslizam rosto abaixo doces lágrimas de nuvem, alegria líquida e mansa que nada iguala. E se a cinza do céu é desejada, a melancolia, essa, infiltra-se sem apelo por toda a fresta humana. Como se o ar a produza ou apenas cumpra o destino, satisfaz os deuses descendo sobre a tristonha penumbra que aterrou na manhã. Os domingos são dias desabitados, salas vazias e sem voz que lhes quebre o jejum. São os dias do Senhor, razão suficiente para que nunca nos pertençam, somos visita sempre tolhida e estranha. Estamos neles sem à vontade, abúlicos, canhestros. uns monos. Dos domingos aproveita-se o descanso e pouco mais.

        Lá fora, a poeira assentou e nos campos os animais retoiçam com vigor redobrado, o cheiro a terra molhada a entrar-lhes pelas ventas. O gado gosta de chuva, não se constipa, não resfria.

        A cidade é flor suspensa em hipnose de vácuo, quieta, isenta de som. Quem sabe a rotação e translação da Terra, arrastando fadiga de séculos, também descansem nos domingos. Não há o tracejado de uma conversa de passagem, ruídos de quem bole pelos quintais, um motor que acorde a estrada. Que mistério guia as manhãs de domingo e as faz tão silenciosas. 

        E o que acontece dentro das casas, por detrás dos olhos fechados das janelas?! Muitos aproveitam e dormem, descansam; abençoado seja o seu sono. Há os que fazem o amor de domingo, com tempo e bom humor; e benditos sejam por conservarem e animarem a chama. Mas há os que não têm domingo, trabalham por turnos e folgam quando calha, fingem domingos às quartas ou sextas feiras, a vida gira-lhes ao contrário da outra gente; oxalá se habituem ou apenas encontrem novo emprego, sem diacronias com o resto do mundo. Alguns estarão a ler, outros no telemóvel ou nas redes sociais a cuscar. Muitas mães estão a pé ou já estiveram – puseram a máquina da roupa a lavar, alimentaram os animais, fizeram uma sobremesa, engomaram as peças que os filhos desejam vestir. Há os que velam, são os anjos da guarda dos humanos. Não são bombeiros de piquete, nem médicos de Banco, nem trabalham por turnos. São os que dormem pouco e contam as horas até ser manhã; pensam-se talvez inúteis, mas a inutilidade de uns é a utilidade de outros. Eles formam a teia protectora que abriga e mantém os adormecidos deste mundo. O seu desejo de adormecer condensa no sono dos outros.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Busca de Sentido

 

        Gasta-se a vida em busca de sentido. Do sentido que temos dentro dela. Não do sentido da vida em geral, mescla de seres animados e inanimados que povoa este mundo que para muitos é de Deus e para tantos será outra coisa. Sentido que nos pertença como homens, o sentido de cada um no mundo pequeno que lhe coube, ou conquistou, ou. E que foge. Se transmuta. Perde-se e readquire-se. Em cada mutação há um florescer por entre pedras, progressiva força ou debilidade, mas sempre afirmação vital. Quanta gente cresce e envelhece sem que a questão lhe aflore a mente. Há uma ignorância feliz, robusta, que se nega o mais que pode ao sofrimento alheio. E vêm as desculpas, não posso ver; sou muito sensível; faz-me mal. Acontece muito com a experiência da morte ou a sua proximidade. Mas quem vê, quem “sabe” do sofrimento alheio; quem, por bem querer, assiste filhos, pais, cônjuges, amigos, gente que se não despega do afecto. Esses, que sentido encontram, que processo os levará a refazer o círculo sempre incompleto do sentido?! Não sei, mas é certo que hão-de levantar-se; depois da tempestade, a bonança.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Tempus Fugit

 

        Se colocamos em perspectiva os males de ontem, parece-nos quase sempre que os de hoje, que doem e fazem mossa no presente, são mais fortes, piores, crescem-lhes garras e cadeias de tormento. Ora, ainda que diverso disto, um dos grandes males de sempre é a luta insana e contra relógio que comanda a vida dos homens. Acontece demasiadas vezes a toda a gente. 

        Andava eu a apreciar as novas entradas no CAM, a experimentar entrar e sair; a sair para observar em pormenor o tecto da célebre pála, dando um soslaio para as várias cadeiras de plástico branco espalhadas na clareira em frente e onde algumas pessoas descansavam concentradas em si e parecendo satisfeitas com isso; e ia eu entrando de novo e descendo as escadas de mármore tão bonito agora tapadas com um metal que deve estar na moda, já que a entrada da Casa da Música também assim é, eu ressoando escada abaixo e aqueles bancos de pedra corrida a virem-me à memória - ainda estão no mesmo lugar -, eu sentada perto de adultos com crianças que comiam bolachas ou só vinham perguntar alguma coisa e retornavam à relva e à brincadeira; onde pares de namorados paravam para atacar os sapatos, ou apenas decidir se iam à biblioteca ou se estendiam na relva. Pensava nisso e nas cadeiras plásticas. A sério: apetece-vos ir para a Gulbenkian sentar numa cadeira plástica que podem mover no sol ou na sombra do terreiro?! Talvez apeteça ter uma peça móvel para sentar em modo unipessoal, já que várias estavam ocupadas. Retomando o assunto, é claro que no final da escadaria não estava o wc de sempre, mas outra coisa qualquer. E subi, pom, pom, pom. Fui comprar a entrada no museu e salta-me o jovem, a senhora quer mesmo entrar? É que daqui a um quarto de hora o museu fecha. E eu para dentro, mas quem me manda a mim andar a passaricar sem ver as horas?! Do lado de fora, sorri-lhe à simpatia e prometi voltar noutro dia. Ainda não era o dia de convívio com Paula Rego. Ora bolas!

        Semanas passadas, lá me pespeguei. Lembrada de que não encontrara o wc, resolvi investigar-lhe o paradeiro. Não sei se consigo encontrá-lo de novo, tanto corredor branco baralhou-me, senti-me, ao vivo, num filme de ficção científica - julgo que tudo em mármore, mas preciso confirmar, atordoei um bocado. Com ajuda, atingi o objectivo. Satisfeita a primeira condição, marchei contente ao museu. Ia disposta a sentar-me em contemplação, Paula Rego é alguém que admiro e gosto-lhe dos temas. Mas qual contemplação?! Os quadros estavam lá na sua inteira realidade, na feiúra bela em que Paula os concebeu. Algumas figuras parecem querer sair da pintura, apostrofar-nos; aquelas mulheres-homens cheias de músculo, o sofrimento de tantas, a ingenuidade daquela, a amargura nos vincos de rostos endurecidos. E o simbolismo de tudo: Portugal a derramar-se sem espartilho. Enfim, eu queria mesmo era ver em pormenor e com tempo – fui cedo e tudo. Mas não havia onde sentar-me e a minha acção contemplativa não transige: só funciona na posição de sentada. É forçoso. Portanto, vi-os sim senhor, mas não contemplei. Gostei da sensibilidade que soube juntar Paula Rego com Adriana Varejão, gerações diferentes e parecidas. Admirei os rasgões de Adriana lembrando carne lacerada e outros golpes. Até achei bonita a disposição das pinturas em pequenas salas de faz de conta. Mas quem é que, num museu reconstruído, se lembra de expor pinturas e lhe retira o sentar?! Será também uma nova técnica?! É que o único banco que vi, curiosamente, estava nas costas das paredes onde as obras estão instaladas, espaço que, a bem falar, já não é exposição. O que pensaria disto Rui Mário Gonçalves, crítico de arte e professor universitário, que, como primeiro trabalho, pedia aos alunos que olhassem um quadro do MAC durante meia hora para depois escreverem as suas impressões.

        Será que a concepção da exposição, ao preferir as divisões de casa falsa, retira a distância necessária à contemplação? Pode ser preconceito, conservadorismo elevado à última potência, mas ausência de todos os assentos?! Todos, todos?!

domingo, 24 de agosto de 2025

Tempus Fugit

 

        Durante anos visitei com regularidade o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. Penso que o descobri por mim, nem sei como; imagino que através de referências sobre as pinturas de Amadeo, por exemplo. Levei lá carradas de alunos. Gostava-lhe da situação e tinha preferência pelo serviço de restaurante. Envelheci com aquela gente: no princípio dominava em nós o tom natural de cabelo, sobrancelha, bigode (havia um senhor muito simpático e de bigode) e terminámos grisalhos ou atintados. Coisas. Não que os visse muito, mas havia naquela sala alguma coisa de familiar que me atraía. Seria a simpatia na recepção, a qualidade do atendimento que não se eximia de sugerir se nos descortinava indecisão, o conforto de mesas e cadeiras, a cultura de falar baixo, a diversidade de pratos quentes e frios, os sumos naturais e a variedade de sobremesas, a eficiência delicada na retirada de tabuleiros. E, lógico, a qualidade de tudo. Ali estive com amigos(as) e tanta vez só, para lanche ou almoço. Próximo do meu local de consultas e de um cinema, havendo tempo, passava para olhar o verde no meio da cidade, sentir o trânsito lá fora, sentar-me num banco a contemplar a vida em câmara lenta, o cheiro a relva molhada oferecendo certezas simples. Todos os sentidos à superfície. Só depois rumava ao destino, alma leve.

        Amei com vigor o museu, vulgo CAM. Quando a entrada era gratuita para professores entrava sempre e geralmente ficava-me pela primeira sala. Sentava-me a olhar os quadros de Amadeo e o fabuloso retrato de Pessoa axadrezado em vermelhos, branco e negro, divina pintura de Almada Negreiros. Fazia-me bem ao espírito contemplá-los. Punha um pé na Gulbenkian e o meu eu diário suspendia.

        Entretanto, aconteceram as obras no CAM e o covid, amplas restrições aos passeios pela Gulbenkian. Não que os deixasse de todo. Mas o ponto que mais me interessava manteve-se demasiados anos encerrado ao público. Vi exposições no museu do edifício principal, assisti a concertos e conferências, sentei-me no mesmo banco a observar o vagar com que a vida por ali se derrama. E os muros altos continuavam a cercar o CAM. Até que foi notícia de telejornal: o CAM reabrira. Não fui a correr. Sou a cada dia mais conservadora e saudosista, parou-me o receio de não gostar da célebre pála e nem do resto. E depois fui adiando, adiando, quase até ao esquecimento. Adiei tanto que deixei mesmo de passar nos jardins de que tanto gosto, tenho devoção contemplativa por Gonçalo Ribeiro Teles um dos criadores daquela maravilha. E nem é preciso citar que o senhor Gulbenkian tem lugar cativo no meu coração.

        Bom. Há cerca de dois a três meses enchi-me de coragem e fui ao Centro de Arte Moderna. E sucedeu o que pensara: não achei que a célebre pála merecesse o dinheiro que ali se gastou. Mas pronto, está lá, tem um ar moderno, deve ser obra de arquitecto iluminado. Espreitei o restaurante. Oh! Perdeu todo o ar familiar. Ganhou individualismo minimalista e perdeu em qualidade. Talvez tenham um chef ou algo parecido, mas espreitei as iguarias e não só não apareceram, como faltava sedução aos arranjos(taças de inox?) em que se encontravam alguns alimentos. Bom, junto à janela panorâmica ainda há resquícios de antigamente (para os saudosistas), mas tudo ocupado. Da empresa e da simpatia eficiente dos funcionários de antes não há sinais. O mundo está sempre a mudar. Aceito. Só receio que esta actualidade severa e cool não deixe memórias. Mas a minha amiga dilecta está encantada com a mudança e mais sua beleza; portanto, será inadaptação da minha pessoa, cuja perdeu um lugar de almoços e lanches. Paciência.

        O mais que me aconteceu conversamos noutro dia.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

À Beira da Cal

 

        Estudei que a memória nos carimba a identidade, possibilita o conhecimento qualquer que ele seja, permite recordar voluntária ou involuntariamente episódios, pessoas, o que ouvimos ou vimos, reconhecer cheiros, paladares, enfim, satisfaz um inumerável de necessidades humanas. E eu que retomo lentamente - muuuuiiito lenta e com vastas falhas – o hábito antigo de caminhar um pouco no fresco da manhã, sigo ainda em peregrinação. Sei o lugar de onde avistava o velhote e os dois sítios onde nos encostávamos ou sentávamos falando de nada. Passo onde o vi pela última vez, admirada do incomum onde se sentara extenuado. Atravessei a estrada e sentei-me a seu lado. E ele, é o coração, vim mais cedo, pela fresca, e deixei a cadela em casa; mas isto cansa-me, tive de parar aqui. E eu que já não o via desde o acidente e soubera que uma filha o levara consigo para outra cidade, eu que nem julgava voltar a vê-lo por ali, não perguntei se estava melhor, disse parvamente que já tinha saudade dos nossos encontros. E ele virou-me olhos de impotência onde li também saudade. Perguntei se queria ajuda para chegar a casa e abanou a cabeça, isto vai. Ficámos um bocadinho a olhar o silêncio da manhã com ovelhas ao fundo. Quando lhe notei intenções de partir, pus-lhe a mão no ombro e saiu-me uma mentira sem graça, tem de descansar o resto do dia e amanhã cá estamos. Ele, olhinhos mirrados no fundo de um poço de rugas, pele baça e amarelada, levantou-se trôpego e descrente de todo, e silabou, pois, amanhã. E eu colaborando, até amanhã. Atravessei a estrada e virei-me a olhá-lo na subida, passinho de bebé. Para nós dois não havia outro dia. Isso sabíamos.

        Entretanto, faço caminho. Passo pelo gato preto adormecido ao sol ligeiro, o cão que me refila possivelmente do outro lado da casa. Na beira de estrada ressalta a brancura cuidada dos muros caiados no estio, e na zona de vivendas há mudanças, os novos proprietários têm outra concepção de casa. Numa delas há um letreiro “vendem-se ovos”. É uma vivenda em tons laranja, barras brancas e várias paredes de vidro. Apesar do muro, vislumbro o conforto e até bom gosto de uma das salas. Um dia destes vou saber a razão de a senhora vender ovos. Talvez comprar alguns.

        À esquina do caminho de terra batida, um campo de ovelhas. São muitas e de idade diversa: carneiros velhos e gordos que se deslocam como reis, a passo, e ovelhas de igual porte; mas a maior parte do rebanho é constituído por animais jovens correndo lestos, aqui e ali; e há a ternura saltitante dos cordeiros novos, contentes da vida. Digo-lhes olá da estrada e eles, cada um em seu passo, aproximam-se a balir, e chegam à rede de arame que nos separa. Ficam ali balindo e faz de conta que somos velhos amigos que se reencontram depois de longa ausência. A quem os oiça e não conheça a espécie, não parecerá que acabámos de travar conhecimento. Dou-lhes as costas e eles com o focinho meio fora da rede, em cacho cerrado, mééé, mééé, mééé. E logo me vem à memória meu pai. Mal ouvia o nome de x, cuja incompetência detestava, saía-lhe escarninho, é uma ovelha, uma ovelha é o que ele é. E se nós, ó pai deixe lá isso, ele mastigava convicto e vingativo, uma ovelha, mais burro que uma ovelha.

        Dado o que me foi presente, meu pai tem razão acerca da inteligência dos ovinos. Mas que querem! Soube-me bem a corrida à rede apenas por cumprimentar. O que quer que lhes diga, acorrerão. E depois?!

domingo, 17 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        O predomínio do trabalho feminino no tecido social não é novidade. Na vida como no livro, o bem estar caseiro sempre dependeu das mulheres. Na casa dos outros como na sua, se havia buraco a que chamar seu. Nem sempre sucedia, as criadas eram como as coisas, permaneciam no local de trabalho. Dos objectos, que apenas cumpriam a sua função, digo que, caso pensassem, seriam os mais felizes. Que elas estavam para todo o serviço e disponíveis a qualquer hora. Como é que esta gente que sustinha uma casa com o corpo, e trabalhava da alvorada até noite alta, não era bem paga?! Mas não era. Tudo que conquistaram foi à dentada (força de expressão; por muito que lhes apetecesse, não mordiam ninguém) e por força braçal. Que eu saiba, os excessivos de limpeza e zelo não as enriqueceram, antes perpetuaram a pobreza.

        O teu livro, Eliane, escorre suor de fêmea sem tempo para sexo ou amores, exala cansaço de mulher e um imenso nojo do cheiro dos brancos. Também cheira ao bafo masculino a aguardente, vulgo cachaça. A cachaça iguala os homens e só o trabalho os distingue. Há os que trabalham e bebem depois; e os que só bebem. Todos fazem mau viver caseiro. Tia Olma convicta, “os maridos sempre são um peso na vida da gente, os homens são sempre um peso na vida da gente”. Se a vida era/é aquilo, está coberta de razão.

        E depois fazes enumerações sem vírgulas, Também elides alguns pontos, e encomendaste a Deus palavras que o dicionário não tem e expressões como “pés enferidados”. Para além da junção de palavras que tanto utilizas para referires membros da família louceira. Por exemplo, minhatia; o expaimeu. Num repente, escreves em espanhol  - vivias/vives(?) na fronteira Brasil Uruguai. E li que usas também o iorubá (serão as expressões e vocábulos que sublinhei e para que não encontro resposta). Desta mistura que adoças com o sotaque brasileiro, sai escrita bem original e interessante. Outra nota de diferença é o nome das cidades onde viveste ou viveram os teus cacos ora partidos – são a cidade com nome de santa; a cidade com nome de ana; e por aí. Nem uma cidade surge com o seu nome natural.

        Há mesmo uma referência a Pessoa (ou julgo eu que o seja) entre as páginas 197/198. Não me parece lisonjeira, mas é bem capaz de ter alguma verdade quanto ao que está encerrado na sua arca que nunca mais esgota. Acho eu que é arca sem fundo. És crítica, muito crítica mesmo; e não só acerca dos negros. Fazes referência a livros e não li sequer um deles; dizes estar enfartada das palavras dos brancos e mudaste a agulha para as dos negros. Mas a literatura é uma só e não tem cor, tem sim particularidades do autor e do que conhece, além do modo pessoal de interpretar a vida que escreve singularmente. Ou talvez eu esteja por demais habituada à leitura de escritores brancos. Mas tu és de cor. Negra. E gostei muito de te ler. Faz de conta que me bateste à porta com este livro e eu digo cá dos fundos, Avante!


Dois excertos a lembrar o teu jeito:


Nenhuma geração negra foi ou é completamente livre. A lei que libertava o ventre do corpo determinava que as crianças permanecessem em poder dos senhores de suas mães até os oito anos de idade. Depois poderiam entregá-las ao governo com direito a indenização ou utilizar seus serviços até os 21 anos. Também nunca aconteceu. Temos senhores ainda hoje. Dentro de nossas próprias casas”


aos dez anos tia Firmina foi internada pela minhavó numa instituição para crianças tortas na cidade do chapéu. (…) Tratava-se de um orfanato. Sinto vergonha de dizer que minha avó que me levava leite e bolachinhas na cama pela manhã, mandou minha tia para um orfanato onde as freiras exigiam que ela fosse uma menina quieta cristã tímida resignada silenciosa ordeira limpa disciplinada ingénua submissa, que fosse um não alguém ou alguém que desejasse viver o mínimo e morrer o máximo. Os desejos que o expaimeu desejava a mim, as freiras dirigiam à tia Firmina.”




sábado, 16 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        De forma nada original, o meu aniversário acontece uma vez em cada ano. Casualmente, tive uma surpresa agradável: deram-me “Louças de Família”, o primeiro livro de Eliane Marques, uma linda e cuidada mulher Afro-brasileira. As escritoras de hoje são assim: reúnem beleza, talento e aptidões várias. Esta jovem, que ganhou um prémio com a obra, é poeta, tradutora, psicanalista e coordena duas editoras. Como arranja tempo para tanto, só ela sabe.

        “Louças de família”, portentosa denúncia da subalternidade do mundo negro, narra a inglória vida das mulheres negras desde o presente racista e musculado até recuadas épocas de escravatura das tetravós. A trama, por analepse e outras figuras de estilo, desenrola a genealogia da trabalhosa e humilhante negritude familiar por lado de mãe e pai; e os homens ficam muito mal na fotografia. Tal condição bastaria para despertar o meu interesse. Reconheço o talvez preconceito: agradam-me obras de mulheres que denunciam a bota masculina sempre pronta a espezinhar (a despropósito, lembrei o quadro de Paula Rego onde uma criança de olhar meio perverso limpa a bota do pai, um possível GNR). Mas Eliane faz mais, muito mais que dar a ver o que ela julga pertença da relação masculino-feminino entre negros e é afinal coisa muito mais vasta e espalhada pelos quatro cantos do mundo, qualquer que seja o credo ou a cor da pele. O benefício sempre escolhe o lado do mais forte, é da História.

        O título, “Louças de família”, recorda uma telenovela brasileira, “Laços de família”. E induz em erro: a gente repara-o e pensa em louças talvez bonitas e valiosas, uns limoges de estimação, por exemplo; ou, em ímpeto nacionalista, peças de Vista Alegre com pergaminho e as inevitáveis rachaduras a fazer pendant; os monárquicos pensarão em loiça fina, heráldica - brasonada ou mesmo com coroa, onde um possível rei teria arrotado bifes do lombo e outras mordomias de ignaro nome. Nada disso. As louças de família são as empregadas pretas que passam de pais para filhos. Ai Eliane, Eliane, pensas tu que só às negras acontecia. Sabes lá o que se passava no mundo só de brancos de que tanto escarneces - ignoras mesmo, ou é assunto extra livro?!; sabes lá tu quanto branco de obediência feito fica fora desse coágulo de senhorinhas e doutores que nada fazem além de mandar e ser senhores. A “loiça” de Eliane são as negras que vão junto com o enxoval, se e quando a “menina” ou o “menino” casam. “Loiça”, são essas criaditas que nasceram na casa (ou quase), filhas legítimas ou ilegítimas de criadas mais velhas, seres que crescem sem escolaridade, mas vão buscar os meninos ao colégio e aprendem cedo a obediência à tirania infantil como se a dos senhores não bastasse. Utensílio imprescindível, seguem com eles para a vida de casados. Ocupadíssimas a criar filhos e filhos de filhos, muitas ficam solteiras. Dão por si velhas, os patrõezinhos mais novos crescidos e sem as quererem por perto que só estorvam. Mas elas, que nunca foram mães, guardam no coração os ternos momentos em que eram para eles o que as mães não foram. Algumas não guardam nada, Eliane, vê tu a perfídia que a tua colega escritora concebeu emCanção Doce”.

        Curioso é a protagonista do teu livro ser também uma odienta, uma insatisfeita que cresce do lado da fuga, do não querer ser como as outras mulheres da família. Mas não é uma “Canção Doce”, antes denuncia e rema contra toda a corrente que acarrete a sujeição humilhante de que foge desde cedo. Matar um pai asqueroso não é igual a matar duas crianças inocentes. Digo eu.

        Posso estar enganada, mas encontrei tanta semelhança entre as tuas negras e as minhas brancas que não sei mesmo, se igual dom nos bafejasse, qual de nós duas faria a história mais pungente sobre as mulheres que lhe pertencem. Tu inventaste as tuas. Eu vivo com as minhas.

(cont.)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A Alma Que Não Sei Se Tenho

 

        Há uma espécie de trégua de tudo nas horas de calor intenso: circulam poucos automóveis, o ar torra e estremece em ondas; no quintal, os vivos estão de orelha derrubada. Durante as tardes de calma, após o almoço e coisas de cozinha, e o mais que as mulheres antigas sempre trazem à ilharga, sento-me pesadamente desejando que o cansaço não parta a cadeira que tanto me agrada e comprei para um filhote. Sentada, liberto pés e mente – sendo dois extremos, experimento uma ponta de liberdade. Sinto os dedos suspirosos a expandir enquanto a mente evolve na procura de um agrado pensável, sem anotação de tempo ou outro destino que o habitar-me pacificamente.

        Troco os pés sobre os sapatos abandonados e sem graça. Observo a suculenta que estremece brevemente na vibração do ar condicionado. A violeta, mais afeita a ser flor, não bole uma folhinha sequer. A minha violeta tão velha e que vou mudando de vaso em cada ameaça de morte. As flores são assim, avisam. Dizem, ou tratas-me ou morro. Em silêncio, enconcham folhas, esbranquiçam, ganham piolho, o tronco desenraizando numa súplica, salva-me. Replantei-a, mudei-lhe a casa e o lugar, reparo-a todas as tardes (ou quase). Parece outra, jovem de pele, folhas em pose, tal bailarina em pontas, reverdecidas e cobertas de ligeira penugem cetinosa por onde passeio dedos de vagar e cuidado, admirando (oh!) o vigor dos músculos vegetais que a projectam. As três. Mudas e quedas. 

        Abro o portátil e elas sabem que vou permanecer. Antes disso, são dubitativas. Por qualquer razão, a suculenta tem o meu ar despenteado, uma data de filhos felizes da vida, virados uns para um lado, outros para outro, pontas a revirar. Ah, se eu tivera cabelo verde! Ou roxo, como a Menina do Mar, bonita como só ela, tão pequenina que cabia num baldinho de praia. A Menina do Mar foi o conto que o professor de psicologia nos deu a conhecer lendo extractos numa aula (sei, já contei isto). Também o li muita vez e a muita gente. Quem sabe, alguém que o ouviu o tenha guardado; alguém que também o leu ou contou aos filhos e mesmo a outras crianças; alguém cujo espírito acordou para a beleza das palavras de Sophya e o maravilhoso das suas histórias. Alguém que, sonho eu, se tornou melhor e mais belo(a) sem se dar conta e nesse espírito abriu portas a outros.

        Penso coisas assim quando me anexo às duas companheiras. Mas hoje não consigo desligar do exausto suplício de bombeiros esbraseados, dos fogos, do flagelo das árvores, seres vivos sem pés que se movam ou possam tentar a fuga; dos animais que as chamas mataram e dos que perderam o habitat; da vida de tanta gente sem lugar de pertença, apartada de casa por receios feito línguas incandescentes que de tudo se alimentam, haveres tragados pelo fogo. Os mais velhos, sem herança nem coragem para o recomeço, descoroçoados de todo, lembrados hoje nos media e logo esquecidos no seu infortúnio de amargura. 

        Vi na TV gente que, como eu, quer descansar na sua cadeira, mesmo que não seja sua; quer adormecer na cama que tem o colchão moldado pelo corpo; quer o canto de onde vê a rua, a janela que abre todas as manhãs adivinhando a paisagem que ora perdeu, o cão, o gato, a vaca ou o que seja que lhe era companhia e mesmo sustento; quer a vida que lhe pertencia e ganhou com esforço, que o pobre, se sobe e é honesto, deixa a pele e muito suor nos degraus. Vi em directo, no impudor que tudo mostra, a aflição gritada de moradores esfumaçados que regam e voltam a regar os quintais na esperança de estancar a irracionalidade descontrolada do dragão hiante. E a minha alma é cinza e negritude. Vejo correr os populares de mangueira na mão, os bombeiros incapazes e sem meios que bastem para acudir a tamanho inferno. E, no meio de tudo isto, ouço que algum fogo(s?) começou por volta da meia noite. Foi talvez a trovoada seca. Dizem-me que os fogos maiores começam de noite. Não asseguro que seja verdade. Sou um bocado lerda, palerma mesmo. Mas intriga-me que um fogo comece na serra e quando alguma frescura lhe chega. Sei que existem outros motivos e muito lapso humano.

        O que é que paga a dor que vemos nos rostos exaustos e desesperançados desta gente?! Quem repõe a ordem natural do planeta e as suas condições de habitabilidade, quando todos os anos são destruídos milhares de hectares de floresta?! Não há planeta que resista. Bom, o planeta é capaz de continuar. Sem nós.

domingo, 10 de agosto de 2025

Rabugem

 

        Quando criei este blogue – já não sei se este, se outro que tive e perdi no inúmero volátil das palavras -, propus-me a um optimismo que não me pertence: escreveria sobre assuntos diversos de amarguras e tristezas, faria uso de termos e sentidos edificantes como tanto leio noutras janelas onde passeio e daí que por detrás suponha pessoas extraordinárias, condição a que nunca acederei; elas não se desnudam, escrevem sobre o mundo; e o que pensam é invariavelmente muito à frente do que eu mesma sei ou imagino. Os seus propósitos são próximos ou coincidem com o dever ser. Dão-me a ver gente de boa índole mental. Que tudo o resto, e mesmo isso, é um “supônhamos”.

        Regressando ao assunto, propus-me discorrer criticamente sobre aquilo que menos me move neste meio: os desmandos e deformações do mundo em geral, mais a loucura de seus ocupantes. E, óbvio, contava histórias. De tudo que me propus, o que mais fiz foi contar histórias; e dessas, também a minha. Devo ser a pessoa (ou das pessoas) que mais se desnuda na escrita. Talvez me invente um bocado: a família não crê em quase nada do que digo, se conto factos que não presenciaram. Este anátema persegue-me, ainda que seja verdade integral, levam tudo por conta do meu imaginário. Parece agradável? Não é. Negam-me verdades à descarada; e desdizem-me peremptórios, afirmam mesmo não terem dito o que disseram e tenho presente. “Inventaste!”, é escolho que serve muito tema e sempre me pica.

    Uma das manas proibiu-me sem delicadezas a repetição: “já contaste isso, por que é que não te calas? Tens esse hábito de contar tudo mais de uma vez e com todos os pormenores, assuntos que não interessam nada”. E eu, cordata e sob o silêncio geral, prometi que não conto mais e vou ter cuidado com as repetições. Mas fico a pensar em quantas vezes ouvi dela as mesmas histórias e nem aflorei que já as ouvira. Porquê? Por achar natural que tal aconteça; avalio serem assuntos que a moem e se tornam mais leves se os contar de novo; ou penso ter-se esquecido que já os sei e ouvi-los não me faz, sinceramente, qualquer diferença (por temperamento é mais calada que eu, se conta, quase agradeço). Embora dentro da esfera familiar, manifesta-se sempre publicamente e fico um bocadinho sem reacção; fiz por ela o mais que consegui e voltaria a fazê-lo se fora necessário. Falar demais será defeito meu a que a circunstância dá uma mão – gasto a maior parte dos dias sozinha. Creio que também ela envelheceu, que a vida lhe foi difícil e a idade a está fazendo intolerante aos defeitos e feitios de cada um. Não duvido que me estime, embora sempre tenha pensado – quiçá orgulhosa e erradamente – que gosto mais dos meus amores que eles de mim. E um destes dias disse-me, de novo em família alargada e quando interrompi uma conversa para contar algo a propósito, “tu és sempre assim, também já te aconteceu tudo que contamos e tens sempre que meter a tua história, mas ninguém te perguntou, por que é que te metes? Tens esse defeito.” Respondi que tal observação me desagradava, mas, calmamente, dei-lhe razão e fiz, faço e farei propósito de emendar o comportamento. E ela – na presença dos vários e mudos terceiros -, nem entendo por que é que te aborrece, eu gosto que me digam os meus defeitos, assim posso emendar. Pensei que ora me encontra e expõe defeitos em demasia (há outros que não vale a pena citar) e que sem eles eu seria uma perfeição de pessoa, o que não me interessa um chavo.

        Acontece ter posição diversa: levo-lhe as características (as que me parecem menos agradáveis) à conta do respeito pela sua maneira de ser, e julgo haver muito mais para admirar nela; portanto, aceito sem crítica. E pensei ainda que, desde a adultícia, nem uma vez a critiquei; será ela perfeita?! Ou erro de novo em não criticar aquilo que é nela mais característico e nem considero defeito, embora não aprecie grandemente?! É que não sei mesmo. Sei o que não farei. Posso aconselhar isto ou aquilo. Não tenho arte para mais.

        Portanto, vou ter cuidado na sua presença: não lhe interrompo conversas com achegas ou histórias e tento não repetir nada. Prometi. Cumprirei enquanto conseguir morigerar-me. É mais um cuidado dos tantos que já tenho – cada dia nos tornamos menos livres no contacto com os mais próximos; se calhar tem que ser assim mesmo. Vamos acabar mudos como texugos (serão mudos, eles?!)

        A idade transforma-nos. A mim debilita-me o físico e pelo visto, faz-me ainda mais faladora do que sempre fui (queria morrer gasta - encontro-me em processo de aceleração contínua). A outras pessoas debilita a mente. A uns torna débil a paciência. Outros tornam-se intolerantes à lactose e a terceiros. Sabemos lá nós para o que estamos guardados! Urge encontrar um meio termo entre a liberdade que nos falta e o respeito pelo que os outros desejam que sejamos. Viver é complicado até ao fim. Mas, já perto do final, aprendemos coisas que gostaríamos de ignorar:))

Beijinhos e desculpem o desabafo


Nota: tenho a gata adormecida a meus pés. Só (n)as madrugadas nos pertencem(os).

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Phatos

 

        É vulgar as mulheres gostarem de gatos. Não sei explicar o porquê, mas é assim. Se dissecar o meu gosto por estes animais - também eu vulgaríssima -, reparo que a afinidade me veio da célula familiar. Em tempo salazarista e de miséria popular, parcialmente criada por avós maternos, veio-me o hábito da gataria. Meus avós tinham vários bichanos (era assim que os chamavam) e a Bibi - mãe e mulher de todos – reinava em abençoada promiscuidade e era a única a dar por nome próprio. A Bibi idolatrava meu avô e, no regresso do trabalho, muito antes de passar o portão, já ela se postava de sentinela - portão é modo de dizer, tudo no exterior da casa de meus avós eram flores, só elas distinguiam festivamente sectores e distâncias. Lembro-a sentada e calma sob o arco da trepadeira, na certeza da proximidade que nós não discerníamos, eu a tentar os longes com a minha miopia ignorada e ela imbuída de intuições sentimentais. Jamais se enganou. No tempo de em mim não haver horas, a gata era-me relógio, e reconheço hoje a semelhança de ambas na quase adoração a meu avô. Contudo, mal o lobrigava, eu desatava a correr até ele; ela, imperturbável, era estátua inamovível. Tenho ampla certeza do amor grande de meu avô; mas também sei do afecto vivo pela Bibi que, entrado o portão, não o largava mais. Meu avô deitava-se cedo e cedo partia. Ninguém conseguiu jamais retirar a Bibi da porta do quarto; a Bibi nocturna era o anjo da guarda de meu avô; adiava a caça aos ratos, outros gatos e nem sequer os procurava no tempo do cio. As noites eram dedicadas a meu avô, coincidiam nos sonos. Tudo o resto se desenrolava durante o dia ou na madrugada escura em que meu avô partia; minha avó contava que a Bibi o acompanhava até ao dito portão inexistente. Não conheci até hoje gato mais dedicado a seu dono que a doce Bibi.

        Desconheço quantas Bibis houve na vida de meus avós, mas existiram decerto, minha mãe tinha paixão por gatos pretos e desde que me lembro, houve pelo menos um em nossa casa. Dizem que gatos pretos dão azar; minha mãe não foi bafejada pela sorte. Em fatal invariância, os nossos gatos, mais cedo ou mais tarde, desertavam para a herdade que estrema ainda hoje com a nossa quintinha pequena. Por vezes regressavam e, tornados selvagens, arranhavam os meus irmãos mais novos que os recebiam e queriam, num contentamento de saudade, pegar-lhes ao colo como antes. Eu regressava à tarde e tinha pela frente, estendidos para mim, uns bracinhos de mercurocromo, vítimas incautas dos nefastos animais a que eu ganhava de imediato má vontade se bem que, no fundo do meu ser relampejasse certa ideia vaidosa: gostavam mais de mim e, se fora eu, não me fariam o mesmo, deixavam-se mimar. Mas a verdade é que me chegou a vez, fizeram de mim uma pele vermelha só de braços e logo me arrasaram a vaidade.

        No prolongamento da tradição familiar, já tive vários gatos. Vivendo na beira de estrada, pouco duram. Ficou-me a gatinha de olho azul, a de maior longevidade; inteligente em seus passeios e cruzamento da estrada. E o gatito branco recém nascido, que encontrei na beira de estrada e aos primeiros dias me mostrou a sua morte – mal andava e já ele queria a estrada.

        Os gatos fazem-me falta. Seja lá pelo que for. Este ano a prenda de um filho foi uma gata do gatil. Pena ser já adulta. Chegou ontem e ainda não me gosta, mas já me segue. Chama-se como todas as outras: Gata (no boletim diz June, mas não ligo a esses pormenores). Não posso deixá-la ir à rua o que me constrange, mas sendo adulta e inda sem ligação afectiva, logo nos fugia. Não é bonita nem um pouco (a meu filho disse que é linda), o pelo é de um preto fulvo com laivos arruivados, tem olho amarelo de lince, aspecto de quem não deseja ser domada, rejeita abraços e colo, mas roça-se nas nossas pernas e acompanha-me pela casa; neste momento olha da minha janela aberta para a noite que se despede. Que verá?! Li um dia que os gatos não vêem igual a nós. Mas ela ali continua, absorta na paisagem que vê diferente.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Dulce Maria Cardoso

 

        De novo fui ouvir Dulce Maria Cardoso. Quando a conheci no CCB, fazia par com Fernando Pinto Amaral e já não recordo o assunto que estava sobre a mesa. Dulce vestia cetim, tinha um ar muito cuidado, o cabelo bastante curto; parecia uma mulher-garota de luxo. Então, julguei-a uma menina-bem que eu distinguia nas letras portuguesas aceitando-lhe sem reservas a qualidade. A assistência era minimalista, quase tive pena dos oradores. A Dulce que agora escutei era outra: o cabelo grisalho e meio ondulado e a pele limpa e sem rugas espelhavam a humanidade próxima que não conseguira detectar no nosso primeiro encontro. Acresce que transpirava serenidade. Digo sem certezas, pareceu-me ter laivos de nostalgia.

        Anos volvidos, a Dulce voltou à minha vida, publicava de vez em quando na Visão a sua “autobiografia não autorizada” que comparei às crónicas de Lobo Antunes e me agradavam da mesma forma. Era outro estilo, mas luzia nelas a qualidade de primeira água. Guardei ambos em dossiers antigos que antes serviram a testes e lições. Um dia, se para tanto haja tempo, vou relê-los.

        Bom, em verdade, a Dulce não me abandonava. Comprava-lhe os livros e a minha amiga dilecta ofereceu-me um (falta-me o primeiro). E ficava a braços com mulheres tão iguais a nós, tão cheias de serem comuns, corriqueiras, tão eu noutra pele, a vulgaridade sempre presente. Confundia-me a sua capacidade para recriar ambientes que conjugavam na perfeição com gente de carne e osso que cruzamos nos corredores da vida. Comovia-me a análise desapaixonada, certeira nos gestos como no pensamento, a descrição de lugares onde cabemos, de pessoas em que defeitos e manias estão sempre de mão de fora. Comovia-me e ainda me comove. Os livros da Dulce são um exercício do sofrimento feminino acerca do qual não faz conversa, mas plasma em escrita corrida de quotidianos repletos de mas. Quase tudo que conheço na obra da Dulce me soa a denúncia e desencontro. Ah! O sonho! Sempre o sonho de quem quer endireitar o mundo pela palavra.

        Desta vez, entrevistada por Maria Flor Pedroso, a Dulce foi muito crítica – parece-me até que a veia crítica lhe aguça o engenho para melhor descrever as suas mulheres e os problemas que as extravasam, quiçá as originam tal como são. Ser sujeito crítico exige ampla visão de conjunto, e ela tem-na. Instada, discorreu sobre a impreparação do povo para a democracia que foi “à portuguesa” e cujos frutos são hoje mais ou menos amargos. Contou uma ou outra história engraçada como é de tom fazer em sessões desta natureza. Inquirida sobre um novo livro, respondeu apenas que não faz livros a metro, não é uma autora de muitos livros. Que, embora “Eliete” suponha uma continuação, ela ainda não existe, vai ter de pensar tudo de novo, já que, no interregno, o mundo mudou e os seus personagens são do mundo. E justificou, “acompanhar a mãe com demência, ser sua cuidadora até à morte, não é compatível com a escrita de um livro; depois disso, eu mesma tive que me recriar, viver a situação, esgotou-me” (lembrei o termo exaurida). Julgo ter entendido melhor o olhar que a Dulce tem agora e é tão mais bonito.

        Foi uma sessão extraordinária. A autora apresentou sem subterfúgios o seu modo de ver o mundo e abordar os problemas; tocou brevemente em algumas memórias bem humoradas; mostrou-se humana e íntegra. Já não encontrava isto há tanto tempo!


sábado, 19 de julho de 2025

Bolas de Sabão

 

        Nos dias e momentos em que nada apetece, tenho por hábito picar aqui e ali, blogs a que pouco me prendo e leio por desfastio enquanto penso no a seguir. Creio ter sido assim que cheguei a “A Gata Christie”. Bom, fui muito pelo nome: é bem humorado e lembra-me autora que admiro e de quem, em meu tempo de literatura policial, li tudo que havia a ler.

        O que “A Gata” escreve sobre terapia! Cara mas importante. Um salva vidas de iate, digo eu.

        A terapia parece-me período de actividade paga de atenção ao outro; coisa muito mental. Não aparenta ser de dificuldade assinalável que justifique os preços irrisórios a que se guinda. Portanto: somos um largo conjunto de desajustados a nível mundial e os/as terapeutas, e mais a sua eterna proposta de auto conhecimento, mantêm resultados restritos. Elitistas, digo. Gostaria sinceramente de saber se os beneficiados se tornaram melhores pessoas. São melhores para os outros? Têm maior e melhor capacidade de doação? Fazem melhor o mundo desde que a terapia lhes entrou na vida? Apesar da máxima socrática (o filósofo), “conhece-te a ti mesmo”, o sentido parece-me diverso. O certo é que as surpresas vindas de outrem – boas e menos boas – me determinam bastante (pode ser falta de análise?). Vou-os e vou-me neles aprendendo, actividade sempre inconclusa. 

        No abraço da velhice, aprendo o desprendimento; afrouxo laços – o mundo dos velhos vai-se estreitando e vamo-nos despindo e despedindo à medida do entendimento da nossa perda de importância. Os anos e a circunstância restringem-nos ao essencial e a isso somos gratos, perdida a elasticidade que nos disparava para diversos campos. Afastados do mundo da necessidade, por certo ficam alguns amigos, mas já sem premência; fica a família, mas sem ilusões; ficam amores e seu caudal (minguado ou não). Ainda que o presente nos exista, tudo vale mais no que fomos.

Descartados os terapeutas de ofício, o que resta ao extenso mundo que os não frequenta?! O mesmo que a todos os analisados e aos próprios analistas: viverem da forma mais propícia que conseguirem. Ou, no caso da Gata, ir passando a ferro e dando abraços, e amizades e isso, que um dia também há-de mudar. É bem mais nova que eu, essa menina. Ainda lhe faltam umas coisas, tal qual me faltaram a mim:).

Enquanto haja, é tudo vida.


quarta-feira, 16 de julho de 2025

Flash de Verão

 

        Estar na praia requer certa sabedoria. Não a rara sabedoria das palavras que se utilizam com pinça, qual mecanismo de relojoaria, mas tão só o reconhecimento de que, sem parede ou muro, todo o discurso se faz audível. É evidente, ninguém está na praia para cuscar e ouvir vizinhos de algumas horas, mas cumpre ouvi-los se não segredarem ou emudecerem.

        Bem cuidadas, modernas, as duas mulheres rondariam a minha idade. Plantaram o guarda sol nos arredores do meu – não se entende porquê, a praia é enorme – e, além de apanharem sol, conversaram sobre a vida. Ouvi da prole já com família constituída, do que serão imbróglios de heranças, de queixas pequenas e comentários tutti frutti, como é próprio entre pessoas que se conhecem e vêm de mundo comum. Uma delas sabia de tudo sobre tudo e denotava preocupação com o aspecto: ensinou a amiga a colocar o pareo, sugeriu que se enfeitasse com um lenço no cabelo (a outra preferiu chapéu de aba larga como ora se usa) e dependurou o telemóvel no guarda sol de modo a fotografar ambas com o mar em fundo. Estiveram que tempos a fotografar e apagar fotos até obterem o produto desejado. Deitei uns soslaios ao duo. A mais calada era alta, simples e ligeiramente triste. A colega tinha pulseiras quase até ao cotovelo, um atado de seda no cabelo bem tratado – não reparei se brincos, mas talvez – um pareo semitransparente e de laço alçado no altar das mamas; viajava-lhe em torno um postiço tom de tia. Repetiu várias vezes que o mar tinha uma cor apetecível, mas tudo nela repelia a água. A tristinha tomou coragem e foi ao banho uma vez. Pensei que, se estivera a sós, iria muitas mais e lhe faria bem às meninges. Quando as deixei, miravam o bronzeado mútuo, contentes de dois dias de praia e já “um tom” lhes passear na pele.

        E o mar ali tão perto...

domingo, 13 de julho de 2025

Flores no Caminho

 

        Alguns jovens são assim, livres e desprendidos. Procuram fora a concretização de sonhos que o país, ou talvez a concretude de vizinhos e conhecidos, lhes impede sem que saibam do impedimento. A educação traça fronteiras falsas, mas difíceis de arrasar. Portanto, derrubam muros em modo silencioso e de ausência: partem.

        Conheci-a muito pequena. Na praia amedrontava da mansidão das ondas, pézitos a recuar, os dentinhos de leite num receio. A torto e a direito temia tsunamis que só a TV lhe dera a conhecer.

        Cresceu simples e direita, embelezou. Cultivou passageiros e nebulosos namorados. Trabalhou afincada por um tecto de pertença. Não realizou todos os sonhos, que muitos terá ainda em espera. A vida guarda-lhe em secreto canudo metade da bandeira, há ainda tanto por desvelar. Quanto espinho e alegria estão por vir!

        Hoje tem um tecto de abrigo, aconchego a que chama seu; comprou um gato de pelo fofo e olho azul; encontrou companheira que lhe serve no pé como os namorados nunca conseguiram.

        Mantém o porte simples e flutuante de anjo que se não prende aos emaranhados comuns. Está contente de si e da opção que, bem o sabe, é condição. Passa por mim na rua e é leve e solta; nela, até a sombra tem recorte angelical.

        Mãos dadas, ambas enfrentam o mundo sem reserva. Ganharam o lugar. Não ignoram que ajudam a estilhaçar o cinzentismo monocórdico das expectativas. Tão pouco desconhecem as dificuldades que o falso mundo igualitário lhes reserva. Mas quando passam, paira entre elas simbiose tão natural e perfeita, um amor tão entretecido de quotidiano, que ficamos gratos só por olhar. E oxalá nada as desanime na procura.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Sal da Terra

 

        Era mestiça e jovem, longamente encaracolada; vestia sem preconceitos alguma coisa que lhe escorria corpo abaixo, cavas bem largas, alardeando ausência de soutien. Num movimento de onda suave mas determinada esgueirou-se para a carruagem de Metro quando já soava o sinal de partida. O corpo oscilou-lhe com o arranque e mal teve tempo de lançar mão ao varão central. O comboio embalava para a estação seguinte na chiadeira de quem prefere a imobilidade, mas é obrigado ao movimento. Foi quando retomava equilíbrio que reparou: a mulher de meia idade e braço ao peito tentava, sem êxito, agarrar o varão falho de espaço livre ao seu alcance. Ouviu-lhe a voz baixa e arrastada de conformismo, queixa que não chega a sê-lo, “eu só queria segurar-me, tenho de ter cuidado com este braço que foi operado pela segunda vez”. Fixou-a: tinha o ar gasto de quem carrega muita vida nas costas, olhos de tanto se me dá, a pele amarelava e as rugas corriam a desejo; a aparência não lhe entrava nas preocupações. A garota relanceou os olhos pelo mar de cabeças na carruagem à cunha e tentou proteger o braço lesado da outra com o próprio corpo. Quando o metro parou, e no sair e entrar matinal ninguém cedeu lugar à mulher ou sequer se preocupou com ela. Elevou a voz, “alguém que dê o lugar a esta senhora que fez uma cirurgia”. E apenas um adolescente africano, talvez quinze ou dezasseis anos, se endireitou de lancheira na mão. Nos quatro bancos repletos ninguém mais lançou sequer um soslaio à mulher. E ela, observando a outra a sentar-se num murmúrio grato, abriu um sorriso breve e endereçado, caracóis saltitando sobre a testa. E da brancura dos dentes saiu-lhe um “obrigada” musical.


sexta-feira, 4 de julho de 2025

A Canção da Cerejeira

 

        “Na Primavera disse Deus: Ponham a mesa às lagartas. E a cerejeira cobriu-se de folhas, milhões de folhas verdejantes e fresquinhas”… Era assim o início da lição que a nossa inocência preferia e a mente guardou. Nesse tempo de haver tempo, contávamos as atentas lições que faltavam para chegar ao prazer de coisa tão bonita. “A canção da cerejeira” era objectivo comum de leitura, embora só alguns – os eleitos pela mestra – lessem alto breve trecho; a voz dela, “continua o X; e depois, continua o Y; e assim por diante até à última linha. E nós anelantes, cada um desejando ouvir o nome próprio e saborear o prazer de reler para todos um bocadinho do texto que quase sabíamos de cor. Portanto, antecipávamos, escolhíamos e discutíamos a parte sonhada nossa.

        Visto à distância, parece-me que nunca me foi dado o ensejo de. Mas subia-nos o desejo das cerejas, crescia na proporção do imaginário que amadurecia os frutos. Conhecíamos a árvore, existia uma a meio de um vedado pomar, olhos de hortelão vigilante a truncarem planos de pequenos larápios e pássaros, a cerejeira tão engalanada de espantalhos como os barcos de pesca na procissão deslizante das festas de Nossa Senhora da Boa Viagem. Vislumbrávamos de longe parte da copa do objecto desejado, impossibilitados de entrever os frutos vermelhos.

        Entre nós, um único garoto tudo arriscara para as provar; o Faísca, rápido como um gato, conseguira iludir o cão de fila do hortelão: esgadanhou-se cerejeira acima e encheu os bolsos. Porém, ao pular para o chão, logo foi filado e abanado, as indiscretas cerejas caindo em cadeia dos bolsos esgarçados, linhas em fim de vida descosendo de exaustão. O velho afivelou-lhe as tenazes dos dedos e, num relâmpago, anulou o prazer que a boca antecipava. E, no momento breve da surpresa paralisante, o Faísca ganhou velocidade com um pontapé no fundilho dos calções, acrescido de impropérios habituais, desfaço-te as fuças se tornares; ou, monto a ratoeira das raposas e sais daqui com uma perna a menos. Vocabulário simpático, siamês de olhos carrascos e fosforescentes.

        O garoto contava e recontava a façanha revivendo a aventura. Arqueava o lábio superior num sorriso de triunfo que lhe chegava à melena namorada do nariz e frisava, Mas provei-as! O velho esqueceu-se de uma; era encarnadinha e redonda que parecia mesmo um coração. Tão docinha! E nós impressionados dele e da cereja, mas sem lhe conhecer o gosto.   É assim o palavreado, um gosto que não é, se a experiência ausente.

        Quantos anos medearam até provarmos cerejas! Tantos. Enquanto esperávamos, a cerejeira do pomar envelheceu, deixou de dar frutos e os espanta pardais lá no cimo, desconcertados e tortos, cada vez mais desconjuntados, que fazemos aqui?! Mas Deus esquecido das quatro estações mais seus efeitos na cerejeira do pomar. Deus talvez atento a outros lugares, talvez revendo-se no espectáculo de milhões de flores nas cerejeiras novas que tanta falta fazem às abelhas, cujas muito nos faltam a nós. Deus absorvido no pormenor dos recomeços.

        Só na nossa memória colectiva as cerejas surgem de cambulhada com uma lição do livro de leitura e uma cerejeira que alguém deitou ao lixo ou queimou num inverno de lareira. Essa é a nossa cerejeira. Enlaça-nos em cada estação. E onde um dia regressaremos. Talvez. Entretanto, hélas!, vamos comendo cerejas.

domingo, 29 de junho de 2025

Comentário

 

        A sorte não me bafejou com uma fé inabalável. Cristã e católica, incluo-me, segundo algumas perspectivas, no grupo dos que, de vez em quando, não praticam um ou outro mandamento. Naquele grupo – ouvi esta afirmação na rádio – que é julgado de conveniência, quase um “assim também eu” pois assume o catolicismo mas desliga, aqui e ali, de alguns dos seus mandamentos. Teve a sua piada ouvir de um agnóstico, em jeito de mofa, qualquer coisa como “dizem-se católicos, mas também que não são praticantes” (não estou a ser fiel à textualidade da afirmação que entretanto esqueci). Ora, eu que isto ouvi, fiquei a repontar. Pareceu-me mal. Dir-me-hão que só abespinho por fazer parte de tal grupo. Nada contra o agnóstico – cada um assume o que mais lhe quadra e com que se identifica. Mas gostaria de apontar que os católicos não praticantes se dividem - pelo menos – em dois grandes grupos. O grupo dos “católicos só de nome”, ou seja, são católicos porque foram baptizados, casaram pela mesma igreja, fizeram em seu tempo de alunos catecismo e comunhão por obrigação escolar; para eles, de forma geral, a religião resume-se a tais actos simbólicos. E há um outro grupo, a que creio pertencer – que não olha igualmente para os dez mandamentos da sua igreja e nem lhes obedece de pés juntos; que até, perdoe-se o alarvismo, cumpre alguns interpretando-os. Mas se esforça. Que pode não “guardar os domingos e dias santos” ou seja, não frequenta as missas de domingo e dias santos e trabalha indiferentemente nuns dias e noutros. Se for uma mulher antiga como eu - velha, vá -, trabalha sempre porque o acumular de tarefas será pior para ela. Adiante. 

        Sempre me senti católica e não totalmente praticante com algum orgulho. É o mesmo que dizer que tenho algum orgulho nos “pecados” que assumo e são desobediência às leis divinas. E vem este senhor desmandar. O que não significa que ele ou eu tenhamos inteira razão. Por minha parte, advogo que não cumprir linearmente os mandamentos é humano e normal; sinal de que se pensa neles e, em circunstância, se opõe algum bom senso aos preceitos criados há mais de dois mil anos e supostamente entregues por Deus a Moisés. A mim me basta o primeiro mandamento “Amar a Deus sobre todas as coisas”. Se isto acontecesse, os restantes nove preceitos poderiam desaparecer; como dizem nuestros hermanos, “no hace falta”. Mas como alguém (Deus?!...) deve ter intuído que este mandamento é um ideal – e é mesmo -, tratou de informar mais nove corolários de ordem prática a fim de orientar a acção humana isenta de mal. Ora a grande verdade é que não somos isentos de mal, as leis divinas, por serem morais e um “dever ser” deixam-nos a liberdade de não as cumprir. Não me parece que deixemos de ser católicos por sermos humanos, a infracção faz parte de nós. E quem não tiver pecado, atire a primeira pedra. Quanto ao primeiro mandamento, transformo-o em “Amar os outros como a si mesmo”, coisa tão impossível como o que afirma a primeira tábua de Moisés. Mas é que não sei amar um conceito, pura abstracção. Os outros são concretos e sei o que fazer no sentido de. Mesmo se o não faço.

        E é isto. Biépi.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Tempo entre Parêntesis

 

        A força da vida vegetal vê-se a olho nu, pode mesmo sujeitar-se a medição e, se assim procedermos, saberemos o tempo em que a natureza é capaz de submergir um jardim, sufocá-lo de ervas que brotam enclavinhadas umas nas outras, vindas da humidade da terra. Já o filósofo de Mileto observava: tudo que é vivo precisa do húmido para existir. Na primavera a terra enfeita-se como para uma festa e se déssemos livre curso aos enfeites, devinha intransitável. Por vezes imagino esse mundo natural num crescendo de tudo cobrir, repleto de pequenos animais esquisitos e venenosos que onde tocam deixam bolha, maleita, mau estar. Penso em aranhas reboludas e babosas, ventre em felpa engandora, mosquitos vorazes, e o mais que vive indómito na imaginária natureza abandonada a si mesma. A seiva rebenta e corre pelo chão, os campos viram arco íris, beleza que o gado não vê, mas sente no estômago, que é como quem diz, baldeia na pança ou bandulho. O gado remói a beleza que já não é ela, tanto arrota florinhas breves como ramos de esteva e roamaninhos, lagartos que não fugiram a tempo (será?), talvez até ratos do campo bem pequeninos que marcharam enrodilhados no ervaçal. É claro que se os pobres não conseguirem fugir daquelas bocarras, talvez elas dêem por eles e os deixem escorrer pelos beiços, misturados com um cuspinho esverdeado e alguma haste seca que lhes cai da boca ou espreita lugar lá dentro. A vida interna de um mamífero é mecanismo sincronizado de várias estruturas interligadas. Como é que poderíamos não morrer?! Máquinas que vêm à vida têm de avariar. E vão avariando. Trabalham a remendos até um dia. Assim os humanos mamíferos.

        Bom, veio tudo isto a propósito de ter observado na praia – com muita ternura, esclareço – essa força vital que a natureza dos seres vivos traz consigo. Foi o caso do raiozinho de luz que vou contar. Estava eu olhando a água que sem acaso não é do meu mar, quando dei por eles. Estavam próximos de meus sisudos pés mergulhados em soalheira letargia. O meu olhar perdia-se tão na distância que os saltara. Faziam parte da família que, sem apercebermos, nascera perto do nosso guarda sol. Havia um juvenil pai adormecido deitado na sombra; uma mãe fotógrafa ao minuto, sempre rondando as crias para mais um recuerdo; e os dois garotos, completamente alheios aos adultos, entretidos no seu mundo. A mais velha teria uns quatro anos no máximo e talvez que ele nem dois – metidos em fatinhos de banho de padrão igual, a curiosidade da fralda espreitando na cinturinha dele. E eu que pensava na morte da bezerra, dei conta das crianças. Com a pá, a garota escavara um buraco e saltava-lhe para dentro para depois se içar ao exterior– a fundura tapava-lhe as pernas e o princípio do tronco. Entretanto, o garoto olhava muito atento. Ela repetiu várias vezes o movimento sempre seguida pelos olhos dele. A dada altura, ele arriscou pisar a elevação de areia escavada que aglomerava na borda e, perninhas bambas, quase se desequilibrou e caiu no buraco. A mãe fotógrafa não sei onde andava, sei que me sentei repentina na toalha, pronta a agarrar o bebé. Mas equilibrou-se enquanto a mana ia e vinha, buraco dentro, buraco fora. Captei o anseio no olhar, desejava imitar a irmã. Aguardei. Em menos de um minuto, atirou-se. Saiu-me uma interjeição, mas semi descansei ao vislumbrar a cabecita bandeando ao choque dos pés na terra. Caíra de pé. Pensei, agora fica ali até que a irmã o puxe. Qual! De repente vi a perninha curta tentando a borda sem conseguir, era quase só um pézito e um bocadinho de perna procurando apoio. E repetiu. E voltou a repetir. E ainda outra vez. Sem sucesso. A irmã não ajudou, não deu conselhos, a irmã continuava a jogar o fora-dentro, fora-dentro que o incentivava. À quarta vez, não sei bem como, apareceu um joelho pequenino e parte da coxa. Senti-lhe o esforço de alavanca que durou o que me pareceram vários minutos de músculos retesados, mas podem ter sido segundos. Num repente, estava cá fora. Não chamou ninguém, nada disse, mas o sorriso de vitória gloroficava o rostinho pequeno; parecia ter crescido. E logo se atirou de novo ao buraco. Quanto aqueles musculozinhos pequeninos se esforçavam na subida! Pensei no macaco da psicologia e mais no cacho de bananas. Seria a mesma coisa?! Nem que fosse. Na criança, o esforço é de uma ternura comovente. E não foi assim que muito aprendemos, por esforço e imitação?!

        Quando saí da praia, o abençoado pai mantinha a postura de sono solto, a mãe retomara a fotografia e os rebentos eternizavam o sobe e desce. Inenarrável aquela pernita titubeante, o pé como que pedindo ajuda à areia que desmoronava. A muda tenacidade do garoto. Nas minhas mãos, o formigueiro receoso, os meus gritinhos de velha tonta de cada vez que ele se atirava despedido e sem dar por mim.

        Foram momentos de espontânea beleza, ternura natural exposta à luz. Quanto o desejo nos motiva!

domingo, 15 de junho de 2025

Tempo entre Parêntesis

 

        Há uma idade em que os planos solares que fizemos, se acaso chegam à concretização, se mudam em dia inglês: têm as quatro estações. Na concepção, eram assombrosos; na realidade, são assombrados. Nublam-se por mau estar que esperava a hora de afirmação: percalço de uma queda; um desaforo intestino; uma alergia súbita; um dente esparvoado; um sabe Deus o quê a retirar-nos do éden em que não nos lembrámos de incluir os vários desmancha-prazeres em que o corpo se desdobra. Não é mau de todo, empresta algum movimento à roda da vida e redobra o valor beatífico de “um dia por outro” sermos como nos lembramos de nós, facto que é passado, mas de que nos custa muito despegar (termo que me lembra o sempre nítido “deslarga-me” de Lobo Antunes), portanto, o presente, nesta circunstância, é pouco usado; raro contamos com a realidade do que somos. Se padecer em férias é pior que sofrer fora delas, é, contudo, melhor que não as ter. E é isto. Vamos vivendo.

        Jamais o meu ser tinha experimentado férias de praia que não metessem ao barulho supermercados, fogões, idas à praça do município...coisas de quem não descansa nunca, sina da maior parte das mulheres portuguesas. É claro que excluo as mulheres que têm casa própria em qualquer estância e em casa uma Maria que lhes faz tabuleiros de carne assada; bacalhaus à isto e aquilo; arrozes e o mais que segue congelado se acaso a dita Maria não vai atrás agarrada às geleiras e a aparar as garotices dos pimpolhos. Está para todo o serviço, sacudir toalhas e aspirar a areia, vestir e despir a garotada, fazer mochilas e lanches, lavar e passar a ferro, ir às compras e encarregar-se das refeições, pôr a casa em ordem. Pois é, mas desta vez, mesmo sem Maria, consegui. Digamos que paguei a várias Marias. E gostei de fazer vida de porco, comer, dormir, tomar banhos de mar em água menos fria que a da minha praia. Porém, concordo com minha irmã: aquela água não nos liberta a mente, falta-lhe a frescura que nos leva as mágoas, senão todas, grande parte. Diria que não cheguei à catarse. Mas almejo. Compreendi – finalmente – quanta coisa a meus olhos se fechava (o trabalho mostra resmas de factos e impossibilita outros mais; tudo é como tem de ser). Gente desocupada de funções tem tempo para ver mais, pensar melhor, observar pormenores que escapam ao corre-corre. E descansar.

        Não me desagradou a vida de animal preguiçoso. Sentava-me na varanda a assistir ao despertar da outra gente, quando tudo era quieto e uma breve claridade antecipava o sol. Descia e o pequeno-almoço tinha pouca gente e pão muito fresco; diariamente bendizia aquele pão ainda morno que não tinha de buscar na padaria e me sabia a maravilha enquanto os pardais esvoaçavam à minha volta. Um ou outro passaricava nas costas da cadeira a meu lado e logo batia asas rumo à largueza das janelas abertas. Sem horário e tão perto da praia, seguia leve, desobrigada de carregos. Isto enquanto a maior parte do pessoal amontoava piscinas fora, à torra na respectiva espreguiçadeira, escutando as quedas de água fingidas (caso pudesse ouvi-las, que a gritaria de miúdos e graúdos desentraitados nos escorregas, era enorme). E a eterna mania da conversa ao telemóvel. O que deixará esta gente por dizer?! Talvez quase tudo seja ruído, barulho, nada. Tanto de nós é nada em vida tão curta como rara. Que estranhos somos.

(cont.)

quinta-feira, 5 de junho de 2025

B-MAD

 

        Numa tarde desta primavera atípica - era a véspera do dia dos museus -, resolvi visitar o MAD (Museu de Art Déco). Não entendo a razão de tanta demora quando sei que me agradam os ingredientes deste tipo de arte. Mas pronto, lá fui até ao Calvário depois de uma prévia olhadela ao google maps que tem a virtude de indicar o percurso consoante o meio de transporte; pelo que sou muito grata à dita ferramenta.

        Ao invés do que me sucede quase sempre – lá diria Aristóteles que o necessário é o que acontece sempre ou quase sempre -, cheguei, sem premeditação, uns dez minutos antes da última visita guiada. Comprei o bilhete e já está. Por ser a única portuguesa, a guia dissertou em inglês. No problem, era inglês para iniciados como eu, com a vantagem de perguntar em português se não entendesse. A garota era jovem e principiante, estava um tanto nervosa. Mas portou-se lindamente, foi simpática e sabia a lição. No final, os falantes da língua inglesa deram-lhe parabéns pela boa pronúncia e o mais. No meu caso, agradeci o facto de ter respondido – em português - às várias questões que me suscitou a visita (sou um bocadinho chata).

        Pois é, o museu pertence à Bacalhoa que é como quem diz a Joe Berardo, e, no final da visita, houve prova de vinhos que recusei por tal néctar não ser do agrado das papilas gustativas que me pertencem. Pensam vocês que não entro no mundo do paladar divino e talvez seja verdade, de vinho desgosto e ambrósia não sei o que seja. Mudando de assunto: estou aqui a pensar, desconheço se os seis euros do bilhete incluíam a prova ou seria um extra. De qualquer modo, não provei nem comprei a bebida. Mas saí do Calvário completamente ressuscitada; não as pernas, não a mente, inteirinha, da ponta dos cabelos à ponta dos pés, ténis e tudo.

        Amei aqueles objectos delicados, originais e de desusado requinte. Candeeiros e lustres, os primeiros convidando intimidades penumbrosas e ciciantes em seus vidrinhos coloridos; os segundos, num apelo ao glamour intemporal da belle époque, afectivos polvos em abraço de beleza esfuziante, modelados em cristal e brilho. Perpassei, milimétrica, a elegância das peças de louça. Linda, a mostra-o jarra de Bordalo Pinheiro refinado e de chapéu alto, aligeirou o popular e surge de fraque, usa laço e talvez monóculo, faz-se citadino cingindo a si a bengala de castão dourado; e a sua obra não desmerece. Ali brilha um Picasso feito vaso, vários Laliques com sua ternura delicada e contundente a entranhar-se, imorredoura, na sensibilidade de quem os repara. 

        O MAD é uma viagem ao pormenor e pareceu-me muito feminino. Ou tão só uma homenagem à Mulher como nos sugere a amostra na entrada. Uma parte existe dedicada às bailarinas. Nela, as estatuetas das ditas senhoras abundam. E é admirar-lhes a elegância do gesto, a breve curva das mãos, o arco tenso do tronco, a pose de dedos, a leve asa de pés. Olhando-as, bibelots pequenos e frágeis, é impossível não as aliar ao artista que lhes deu o ser, de certeza com amor. Só é possível criar coisa tão fiel ao original, se esse trabalho reproduz o acto amoroso entre criador e criação. E ainda: existe uma sala dedicada à mulher, talvez seja um quarto ou o quarto de vestir, já não recordo. E é infinitamente feminina, tão bonita que apetece. Ainda que saibamos não ter hoje habitações onde caiba tal gineceu (talvez o mesmo que Virgínia Woolf referia como “um espaço que seja seu”), é agradável e até saudável saber que alguém o teve assim, repleto de pormenores delicados. Ou muito semelhante. Digo eu, proletária convicta a quem beleza das coisas atrai como a luz à borboleta. É que não haja dúvida, isto foi movimento de gente endinheirada, para aí uma burguesia que precisava gastar o que tinha e apostou no glamour estiloso. Parece que o movimento nasceu em França (bem se vê pelo nome, não é?), logo universalizado pelo interesse que suscitou. Explodiu, qual grito triunfal, entre os anos vinte e trinta do século passado. Está pois a fazer cem anos.

        Bom. Para finalizar: eu não diria que que o MAD é inteiro em Art Déco. Antes afirmo, daquilo que conheço, que mistura Art Déco com Arte Nova. O mobiliário não é todo de linhas direitas. Há várias peças (pareceram-me em abundância) que são pródigas em enfeites florais e também nas curvas tão sugestivas da Arte Nova. A Guia não o citou e pode nem ser verdade o que digo, amparo-me ao senso comum. Mas, seja um único, ou dois estilos, a conjugação resulta: é autêntica pérola. O próprio espaço, uma casa fidalga de dois pisos, cujo primeiro proprietário foi o conde de Abrantes, sofreu remodelações e passou por várias mãos; contudo, guardou a traça inicial e mantém originários pormenores, arquitectónicos e de natureza doméstica. Mas tudo isto e muito mais vos dirá o/a guia. E já basta para abrir o apetite.

domingo, 1 de junho de 2025

Minudências

 

        Já passou bem mais de um mês sobre o passeio à ilha de S. Miguel nos Açores. Talvez tenha perdido o interesse. Mas, só pelo facto de conseguir teclar quase normalmente, vale a pena escrever. Voltar a ele. Dizer o de toda a gente: que é uma ilha divina, tanta beleza natural faz-nos ajoelhar sentindo uma enorme gratidão pelo que nos é dado a ver e por sermos nós a estar ali. E, em simultâneo, a mágoa por tantos sem a chance, a quem S. Miguel é impossível qualquer que seja o tempo verbal que usemos.

        Fica muito por dizer. Não falei das plantações de chá Gorreana e Porto Formoso, lugares de ruas e casas lindas e cuidadas. Não escrevi das funcionárias que vimos a trabalhar, dos instrumentos reluzindo novidade e dos mais antigos e baços e históricos, mas que não perdem beleza. Quanto o chá necessita para ser delícia a fumegar nas nossas chávenas!

        Bebemos chá nas varandas aprazíveis como noutras épocas, em senhoriais e delicadas chávenas. E nós debruçadas nas varandas, mirando a plantação em esquadria perfeita, oferecida ao olhar como sendo nossa – o que vemos e trazemos é nosso. Que ninguém traz apenas o chá em pacote, recadam-se os cheiros, o verde a perder de vista, a altura rasourada da plantação, a inclinação do terreno, o relógio antigo na varanda, o olhar das funcionárias, mãos sempre trabalhando e o pensamento, “mais uns mirones, só empatam” ou “andam de passeio a ver quem trabalha; fraco gosto”. Lembro-me de cogitar que, sentadas àquela mesa comprida – o chá a meio -, ainda assim não podiam atirar conversa fora, os visitantes, sempre novos, passavam a todo o momento. E tive pena daquelas mulheres sisudas, sentadas e silenciosas rodeando a mesa, todas mãos e dedos maquinais nas dobras de pacote. Mulheres que não podiam dizer uma graça, contar uma anedota, falar do almoço ou do jantar, desabafar uma tristeza. Mulheres trabalhando conjuntamente e em completo silêncio. Deve ser mau.

        Da plantação de ananases pouco sei. Não recordo o nome da que visitámos, eu e os ananases não conectámos. Apreciei bem mais o variegado jardim de orquídeas no Hotel do Parque Terra Nostra: eram flores, sobre flores, sobre flores. A perfeição em estado floral.

        Que dizer das cascatas?! Não as vi todas, mas as da Ribeira dos Caldeirões passei-as a pente fino. Se algumas houve com que deparei sem esperar, desbundando lá do alto, as da Ribeira são esplêndidas; por elas mesmas - beleza espectacular – e pelos caminhos e circuitos floridos e verdes que as rodeiam. É paisagem idílica e imagino que seja uma espécie de céu (se lhe retirarmos a loja de souvenirs) a que os antigos moinhos, ora recauchutados, dão certo ar de família. Já não recordo nomes – excepção feita ao véu da noiva – mas guardei as gotas húmidas na pele, o cheiro misturado da água nas pedras e na vegetação molhada. E não esqueço o encantamento que notei em alguns olhos. Porque vemos e sentimos nas mesmas coisas, coisas e sentimentos e emoções diversos. Contudo, entre nós havia uma comunhão espontânea despoletada pela natureza. Agradável, a ideia de me sentir internamente de mãos dadas a gente desconhecida, sermos capazes de experimentar sensações e pensamentos idênticos. E lembrei-me, imaginem, de Kant. Segundo julgo, este filósofo afirmava que era no juízo de gosto que os homens se encontravam. Quem sabe se não teria razão. Mas, por várias razões, nem todos os homens têm na beleza o seu ponto de encontro com os outros.

        Garanto: não vos maço mais com a única ilha que visitei na vida. Até porque hoje é o dia da criança - em parte será sempre o meu dia -  e tenho de ir celebrar.

        Queiram dar-se à fortuna de uma boa semana