quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Invariâncias do Acaso

 

Estão mortas. Ambas escritoras e inglesas. Amaram-se na primeira metade do séc XX. Dez anos mais velha, Virgínia foi a primeira a desaparecer e, na altura em que foram apresentadas e não foram simpáticas uma à outra, Vita era mais conhecida. Lidas as cartas, ficamos sabendo mais sobre a personalidade das duas, embora só uma interesse realmente. Nas missivas, a prosa de ambas é arrebatada e terna, culta e de extraordinária beleza.  Acontece nos livros o que acontece na vida, o amador e o ser amado vivem da relação. As cartas são a história de um amor desde o princípio de simpatia mútua e possível atracção posteriores aos primeiros contactos, até à paixão amorosa com tudo o que a faz ganhar peso; mas Virgínia usa de palpável leveza e contenção. À fase da paixão seguiu-se uma provável amizade que as juntou esporadicamente e de que não existirão cartas. Vita terá continuado a borboletear vida fora. De Virgínia pouco sei sob tal aspecto. Mas em tudo o sentimento amoroso me pareceu muito igual a qualquer outro: ali estão a constância no desejo do outro; as pequenas ternuras; a procura da intimidade não apenas física, há muitos encontros a sós para almoçar, jantar, lanchar, e não apenas na casa de uma ou de outra; a integridade peremptória de Virgínia que desde o início rejeitou presentes da amante rica e de berço fidalgo, a par da sua fidelidade ao trabalho na editora como fonte de rendimento. Porém, o certo é que Vita escreveu o que hoje se chamariam best sellers e que a Hogarth Press passou a ser a sua editora. As vendas permitiram aos editores a compra de um carro e outros artefactos que decerto aliviaram as contas de Virgínia e lhe aligeiraram a vida.

Imagino que Vita foi mais em/para Virgínia que o inverso. Mas que sabemos nós do que vai no coração dos outros. Talvez Vita encontrasse em Virgínia uma espécie de pérola rara ainda fechada em sua concha. Existiram. Houve um tempo que foi delas. Isso sabemos.

         O que a gente gosta nos outros, santo Deus. Virgínia tinha fascínio pelas pernas de Vita, suspendia-se-lhe o pensamento (imagino) na sua vitalidade, colunas de alabastro de onde o tronco emergia. Ambas lésbicas. Ambas casadas. Mas o amor é sempre o mesmo, a homossexualidade só no acto físico se faz diversa. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Invariâncias do Acaso

 

Em minha casa desagua tudo que os filhos não querem, não precisam, desgostam ou a que não vêem utilidade. A mãe guarda. A mãe não atira fora. Quando a mãe desapareça vão decerto maldizê-la pela tralha que guardou. As fotos de/com antigas namoradas de que a mãe continua a gostar, mas os filhos desgostaram; as poucas cartas que existem e me estenderam desprendidos: "atira fora" -  cartas com letrinha escolar e que os sms substituíram inflados de novidade e superficial leveza, isentando o arquivo. Nas cartas - folhas A4 pautadas ainda com sinais de dossiê de argolas -, estão as mágoas, o ciúme adolescente, os pedidos de desculpa e o "môr" repetidíssimo. E é isto, faz parte da função parental.

Há uns meses ficou a criar lastro uma caixa de livros.  Olhando-os por alto, assim como quem não quer nada, vi "Cartas de Amor, Virgínia Woolf e Vita Sackville-West".  Retirei-o para leitura pressurosa.

 Aprecio a escrita de Virgínia, o seu Diário não desmente a raridade da escritora. E gosto da pessoa - com ou sem Vita. Fiquei sabendo pelas cartas que Orlando é Vita chapadíssima. Chapadíssima, não; antes animada pelo amor de Virgínia. Não diria que foi um amor casto, mas Virgínia é recatada até na paixão; e não é necessário chegar a meio do livro para sabermos que Vita é explosiva e livre no verbo enquanto Virgínia é deliciosamente frágil e sucinta. Mas aprendemos também que o "queridíssima criatura" tem nela uma fundura de sentimento que sobrepõe a verve torrencial de Vita.    Além do mais, constitui factor de sedução ler uma mulher que viveu e criou obra tão à frente da época. Nem por isso bonita mulher. Mas, entre outros factores apelativos, saliento o facto de sempre ter trabalhado; e, por fidelidade a si mesma e às suas convicções, nos livros e outros escritos, deu voz a minorias e também à que, sendo adiposa maioria, era -  ainda é - tratada pela lei e pelo costume dos homens como qualquer minoria: a das mulheres. 

Virgínia escrevia apesar da constância na dor de cabeça e da tenacidade da loucura, talvez duas metades do mesmo problema. O tempo gasto a escrever era gosto a consumi-la, aproximava a doença. De resto, admiro também Mister Woolf, Leonard, companheiro de vida que a entendia como ninguém e com quem Virgínia partilhou o trabalho de edição na editora comum, a Hogarth Press. Comovem-me as tarefas normais na editora a que se dedicavam sem falhas e com prazos a cumprir, os passeios que davam pelos campos, Leonard a tentar distraí-la de si mesma como quem espanta corvos; a justeza das contas no dia a dia e que Virgínia controlava. Virgínia é em mim personagem de romance, só que existiu realmente, tinha um corpo, desejos, saturação disto e daquilo, amores, grandes desalentos e tristezas, a doença mental sempre entrevista e causa do suicídio. Sentindo o aproximar de nova crise e conhecendo que lhe seria fatal em termos de sofrimento e perda de lucidez, Virgínia decidiu parar de sofrer. Esta pessoa, não é a Virgínia Woolf  do meu imaginário. Mas também é. Afinal, mesmo lendo diários e cartas e romances, o que sabemos nós dos outros senão que existem? Quase tudo o resto é imaginário, nós mesmos, sempre nós mesmos.

(cont.)

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Raio de Sol

  "A vida é o que nos acontece quando não esperamos que aconteça". Não sei se li a frase, se é apenas a ideia com que fiquei de expressão bem mais bonita e completa que este remendo da memória. Pode pertencer a livro, filme ou série. Ou a página de revista onde os meus olhos atraíram. A vida surge-me como um todo, não se restringe ao inesperado. Mas existem inesperados que importam, são os cotovelos da vida, mudam-lhe o sentido e dão-lhe dimensão. Há os que oferecem caminho plano, cheiroso, de amplas sombras; e os que não têm caminho, por vezes inóspitos, ferindo o bandeirante que ousa atravessar. Para certos desconcertos temos armas naturais e puxamos delas no emaranhado de ramos ou pedras. Mas quem se sinta desarmado deixa para trás pedaços de tecido, é vergastado por ramos que desprendem, os espinhos fazem-no sangrar. E tanta vez não consegue abrir vereda onde outros passem com menos dano. Nunca fui a África, mas julgo que passamos grande parte da vida à catanada, a vencer resistências próprias e de outrém, no intuito de nos cumprirmos como seres gregários. Contudo, solitários. E tão paradoxais.
Abundam cotovelos para que não existem armas. Lutar com eles é sempre aceitar perder alguns pedaços. Amorfizei num, rasteiro balão que perdeu o hélio. Na minha frente, por entre espinhos e troncos que o dilaceram, o meu terno bandeirante trauteia baixo uma canção. E entendo a cobardia de não ser companhia nos cotovelos que o esperam.
É previsível a existência de períodos em que desapareço da escrita. Mas espero sempre reincidir:)
Bem hajam