De forma nada original, o meu aniversário acontece uma vez em cada ano. Casualmente, tive uma surpresa agradável: deram-me “Louças de Família”, o primeiro livro de Eliane Marques, uma linda e cuidada mulher Afro-brasileira. As escritoras de hoje são assim: reúnem beleza, talento e aptidões várias. Esta jovem, que ganhou um prémio com a obra, é poeta, tradutora, psicanalista e coordena duas editoras. Como arranja tempo para tanto, só ela sabe.
“Louças de família”, portentosa denúncia da subalternidade do mundo negro, narra a inglória vida das mulheres negras desde o presente racista e musculado até recuadas épocas de escravatura das tetravós. A trama, por analepse e outras figuras de estilo, desenrola a genealogia da trabalhosa e humilhante negritude familiar por lado de mãe e pai; e os homens ficam muito mal na fotografia. Tal condição bastaria para despertar o meu interesse. Reconheço o talvez preconceito: agradam-me obras de mulheres que denunciam a bota masculina sempre pronta a espezinhar (a despropósito, lembrei o quadro de Paula Rego onde uma criança de olhar meio perverso limpa a bota do pai, um possível GNR). Mas Eliane faz mais, muito mais que dar a ver o que ela julga pertença da relação masculino-feminino entre negros e é afinal coisa muito mais vasta e espalhada pelos quatro cantos do mundo, qualquer que seja o credo ou a cor da pele. O benefício sempre escolhe o lado do mais forte, é da História.
O título, “Louças de família”, recorda uma telenovela brasileira, “Laços de família”. E induz em erro: a gente repara-o e pensa em louças talvez bonitas e valiosas, uns limoges de estimação, por exemplo; ou, em ímpeto nacionalista, peças de Vista Alegre com pergaminho e as inevitáveis rachaduras a fazer pendant; os monárquicos pensarão em loiça fina, heráldica - brasonada ou mesmo com coroa, onde um possível rei teria arrotado bifes do lombo e outras mordomias de ignaro nome. Nada disso. As louças de família são as empregadas pretas que passam de pais para filhos. Ai Eliane, Eliane, pensas tu que só às negras acontecia. Sabes lá o que se passava no mundo só de brancos de que tanto escarneces - ignoras mesmo, ou é assunto extra livro?!; sabes lá tu quanto branco de obediência feito fica fora desse coágulo de senhorinhas e doutores que nada fazem além de mandar e ser senhores. A “loiça” de Eliane são as negras que vão junto com o enxoval, se e quando a “menina” ou o “menino” casam. “Loiça”, são essas criaditas que nasceram na casa (ou quase), filhas legítimas ou ilegítimas de criadas mais velhas, seres que crescem sem escolaridade, mas vão buscar os meninos ao colégio e aprendem cedo a obediência à tirania infantil como se a dos senhores não bastasse. Utensílio imprescindível, seguem com eles para a vida de casados. Ocupadíssimas a criar filhos e filhos de filhos, muitas ficam solteiras. Dão por si velhas, os patrõezinhos mais novos crescidos e sem as quererem por perto que só estorvam. Mas elas, que nunca foram mães, guardam no coração os ternos momentos em que eram para eles o que as mães não foram. Algumas não guardam nada, Eliane, vê tu a perfídia que a tua colega escritora concebeu em “Canção Doce”.
Curioso é a protagonista do teu livro ser também uma odienta, uma insatisfeita que cresce do lado da fuga, do não querer ser como as outras mulheres da família. Mas não é uma “Canção Doce”, antes denuncia e rema contra toda a corrente que acarrete a sujeição humilhante de que foge desde cedo. Matar um pai asqueroso não é igual a matar duas crianças inocentes. Digo eu.
Posso estar enganada, mas encontrei tanta semelhança entre as tuas negras e as minhas brancas que não sei mesmo, se igual dom nos bafejasse, qual de nós duas faria a história mais pungente sobre as mulheres que lhe pertencem. Tu inventaste as tuas. Eu vivo com as minhas.
(cont.)