sábado, 16 de agosto de 2025

Louças de Família

 

        De forma nada original, o meu aniversário acontece uma vez em cada ano. Casualmente, tive uma surpresa agradável: deram-me “Louças de Família”, o primeiro livro de Eliane Marques, uma linda e cuidada mulher Afro-brasileira. As escritoras de hoje são assim: reúnem beleza, talento e aptidões várias. Esta jovem, que ganhou um prémio com a obra, é poeta, tradutora, psicanalista e coordena duas editoras. Como arranja tempo para tanto, só ela sabe.

        “Louças de família”, portentosa denúncia da subalternidade do mundo negro, narra a inglória vida das mulheres negras desde o presente racista e musculado até recuadas épocas de escravatura das tetravós. A trama, por analepse e outras figuras de estilo, desenrola a genealogia da trabalhosa e humilhante negritude familiar por lado de mãe e pai; e os homens ficam muito mal na fotografia. Tal condição bastaria para despertar o meu interesse. Reconheço o talvez preconceito: agradam-me obras de mulheres que denunciam a bota masculina sempre pronta a espezinhar (a despropósito, lembrei o quadro de Paula Rego onde uma criança de olhar meio perverso limpa a bota do pai, um possível GNR). Mas Eliane faz mais, muito mais que dar a ver o que ela julga pertença da relação masculino-feminino entre negros e é afinal coisa muito mais vasta e espalhada pelos quatro cantos do mundo, qualquer que seja o credo ou a cor da pele. O benefício sempre escolhe o lado do mais forte, é da História.

        O título, “Louças de família”, recorda uma telenovela brasileira, “Laços de família”. E induz em erro: a gente repara-o e pensa em louças talvez bonitas e valiosas, uns limoges de estimação, por exemplo; ou, em ímpeto nacionalista, peças de Vista Alegre com pergaminho e as inevitáveis rachaduras a fazer pendant; os monárquicos pensarão em loiça fina, heráldica - brasonada ou mesmo com coroa, onde um possível rei teria arrotado bifes do lombo e outras mordomias de ignaro nome. Nada disso. As louças de família são as empregadas pretas que passam de pais para filhos. Ai Eliane, Eliane, pensas tu que só às negras acontecia. Sabes lá o que se passava no mundo só de brancos de que tanto escarneces - ignoras mesmo, ou é assunto extra livro?!; sabes lá tu quanto branco de obediência feito fica fora desse coágulo de senhorinhas e doutores que nada fazem além de mandar e ser senhores. A “loiça” de Eliane são as negras que vão junto com o enxoval, se e quando a “menina” ou o “menino” casam. “Loiça”, são essas criaditas que nasceram na casa (ou quase), filhas legítimas ou ilegítimas de criadas mais velhas, seres que crescem sem escolaridade, mas vão buscar os meninos ao colégio e aprendem cedo a obediência à tirania infantil como se a dos senhores não bastasse. Utensílio imprescindível, seguem com eles para a vida de casados. Ocupadíssimas a criar filhos e filhos de filhos, muitas ficam solteiras. Dão por si velhas, os patrõezinhos mais novos crescidos e sem as quererem por perto que só estorvam. Mas elas, que nunca foram mães, guardam no coração os ternos momentos em que eram para eles o que as mães não foram. Algumas não guardam nada, Eliane, vê tu a perfídia que a tua colega escritora concebeu emCanção Doce”.

        Curioso é a protagonista do teu livro ser também uma odienta, uma insatisfeita que cresce do lado da fuga, do não querer ser como as outras mulheres da família. Mas não é uma “Canção Doce”, antes denuncia e rema contra toda a corrente que acarrete a sujeição humilhante de que foge desde cedo. Matar um pai asqueroso não é igual a matar duas crianças inocentes. Digo eu.

        Posso estar enganada, mas encontrei tanta semelhança entre as tuas negras e as minhas brancas que não sei mesmo, se igual dom nos bafejasse, qual de nós duas faria a história mais pungente sobre as mulheres que lhe pertencem. Tu inventaste as tuas. Eu vivo com as minhas.

(cont.)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

A Alma Que Não Sei Se Tenho

 

        Há uma espécie de trégua de tudo nas horas de calor intenso: circulam poucos automóveis, o ar torra e estremece em ondas; no quintal, os vivos estão de orelha derrubada. Durante as tardes de calma, após o almoço e coisas de cozinha, e o mais que as mulheres antigas sempre trazem à ilharga, sento-me pesadamente desejando que o cansaço não parta a cadeira que tanto me agrada e comprei para um filhote. Sentada, liberto pés e mente – sendo dois extremos, experimento uma ponta de liberdade. Sinto os dedos suspirosos a expandir enquanto a mente evolve na procura de um agrado pensável, sem anotação de tempo ou outro destino que o habitar-me pacificamente.

        Troco os pés sobre os sapatos abandonados e sem graça. Observo a suculenta que estremece brevemente na vibração do ar condicionado. A violeta, mais afeita a ser flor, não bole uma folhinha sequer. A minha violeta tão velha e que vou mudando de vaso em cada ameaça de morte. As flores são assim, avisam. Dizem, ou tratas-me ou morro. Em silêncio, enconcham folhas, esbranquiçam, ganham piolho, o tronco desenraizando numa súplica, salva-me. Replantei-a, mudei-lhe a casa e o lugar, reparo-a todas as tardes (ou quase). Parece outra, jovem de pele, folhas em pose, tal bailarina em pontas, reverdecidas e cobertas de ligeira penugem cetinosa por onde passeio dedos de vagar e cuidado, admirando (oh!) o vigor dos músculos vegetais que a projectam. As três. Mudas e quedas. 

        Abro o portátil e elas sabem que vou permanecer. Antes disso, são dubitativas. Por qualquer razão, a suculenta tem o meu ar despenteado, uma data de filhos felizes da vida, virados uns para um lado, outros para outro, pontas a revirar. Ah, se eu tivera cabelo verde! Ou roxo, como a Menina do Mar, bonita como só ela, tão pequenina que cabia num baldinho de praia. A Menina do Mar foi o conto que o professor de psicologia nos deu a conhecer lendo extractos numa aula (sei, já contei isto). Também o li muita vez e a muita gente. Quem sabe, alguém que o ouviu o tenha guardado; alguém que também o leu ou contou aos filhos e mesmo a outras crianças; alguém cujo espírito acordou para a beleza das palavras de Sophya e o maravilhoso das suas histórias. Alguém que, sonho eu, se tornou melhor e mais belo(a) sem se dar conta e nesse espírito abriu portas a outros.

        Penso coisas assim quando me anexo às duas companheiras. Mas hoje não consigo desligar do exausto suplício de bombeiros esbraseados, dos fogos, do flagelo das árvores, seres vivos sem pés que se movam ou possam tentar a fuga; dos animais que as chamas mataram e dos que perderam o habitat; da vida de tanta gente sem lugar de pertença, apartada de casa por receios feito línguas incandescentes que de tudo se alimentam, haveres tragados pelo fogo. Os mais velhos, sem herança nem coragem para o recomeço, descoroçoados de todo, lembrados hoje nos media e logo esquecidos no seu infortúnio de amargura. 

        Vi na TV gente que, como eu, quer descansar na sua cadeira, mesmo que não seja sua; quer adormecer na cama que tem o colchão moldado pelo corpo; quer o canto de onde vê a rua, a janela que abre todas as manhãs adivinhando a paisagem que ora perdeu, o cão, o gato, a vaca ou o que seja que lhe era companhia e mesmo sustento; quer a vida que lhe pertencia e ganhou com esforço, que o pobre, se sobe e é honesto, deixa a pele e muito suor nos degraus. Vi em directo, no impudor que tudo mostra, a aflição gritada de moradores esfumaçados que regam e voltam a regar os quintais na esperança de estancar a irracionalidade descontrolada do dragão hiante. E a minha alma é cinza e negritude. Vejo correr os populares de mangueira na mão, os bombeiros incapazes e sem meios que bastem para acudir a tamanho inferno. E, no meio de tudo isto, ouço que algum fogo(s?) começou por volta da meia noite. Foi talvez a trovoada seca. Dizem-me que os fogos maiores começam de noite. Não asseguro que seja verdade. Sou um bocado lerda, palerma mesmo. Mas intriga-me que um fogo comece na serra e quando alguma frescura lhe chega. Sei que existem outros motivos e muito lapso humano.

        O que é que paga a dor que vemos nos rostos exaustos e desesperançados desta gente?! Quem repõe a ordem natural do planeta e as suas condições de habitabilidade, quando todos os anos são destruídos milhares de hectares de floresta?! Não há planeta que resista. Bom, o planeta é capaz de continuar. Sem nós.

domingo, 10 de agosto de 2025

Rabugem

 

        Quando criei este blogue – já não sei se este, se outro que tive e perdi no inúmero volátil das palavras -, propus-me a um optimismo que não me pertence: escreveria sobre assuntos diversos de amarguras e tristezas, faria uso de termos e sentidos edificantes como tanto leio noutras janelas onde passeio e daí que por detrás suponha pessoas extraordinárias, condição a que nunca acederei; elas não se desnudam, escrevem sobre o mundo; e o que pensam é invariavelmente muito à frente do que eu mesma sei ou imagino. Os seus propósitos são próximos ou coincidem com o dever ser. Dão-me a ver gente de boa índole mental. Que tudo o resto, e mesmo isso, é um “supônhamos”.

        Regressando ao assunto, propus-me discorrer criticamente sobre aquilo que menos me move neste meio: os desmandos e deformações do mundo em geral, mais a loucura de seus ocupantes. E, óbvio, contava histórias. De tudo que me propus, o que mais fiz foi contar histórias; e dessas, também a minha. Devo ser a pessoa (ou das pessoas) que mais se desnuda na escrita. Talvez me invente um bocado: a família não crê em quase nada do que digo, se conto factos que não presenciaram. Este anátema persegue-me, ainda que seja verdade integral, levam tudo por conta do meu imaginário. Parece agradável? Não é. Negam-me verdades à descarada; e desdizem-me peremptórios, afirmam mesmo não terem dito o que disseram e tenho presente. “Inventaste!”, é escolho que serve muito tema e sempre me pica.

    Uma das manas proibiu-me sem delicadezas a repetição: “já contaste isso, por que é que não te calas? Tens esse hábito de contar tudo mais de uma vez e com todos os pormenores, assuntos que não interessam nada”. E eu, cordata e sob o silêncio geral, prometi que não conto mais e vou ter cuidado com as repetições. Mas fico a pensar em quantas vezes ouvi dela as mesmas histórias e nem aflorei que já as ouvira. Porquê? Por achar natural que tal aconteça; avalio serem assuntos que a moem e se tornam mais leves se os contar de novo; ou penso ter-se esquecido que já os sei e ouvi-los não me faz, sinceramente, qualquer diferença (por temperamento é mais calada que eu, se conta, quase agradeço). Embora dentro da esfera familiar, manifesta-se sempre publicamente e fico um bocadinho sem reacção; fiz por ela o mais que consegui e voltaria a fazê-lo se fora necessário. Falar demais será defeito meu a que a circunstância dá uma mão – gasto a maior parte dos dias sozinha. Creio que também ela envelheceu, que a vida lhe foi difícil e a idade a está fazendo intolerante aos defeitos e feitios de cada um. Não duvido que me estime, embora sempre tenha pensado – quiçá orgulhosa e erradamente – que gosto mais dos meus amores que eles de mim. E um destes dias disse-me, de novo em família alargada e quando interrompi uma conversa para contar algo a propósito, “tu és sempre assim, também já te aconteceu tudo que contamos e tens sempre que meter a tua história, mas ninguém te perguntou, por que é que te metes? Tens esse defeito.” Respondi que tal observação me desagradava, mas, calmamente, dei-lhe razão e fiz, faço e farei propósito de emendar o comportamento. E ela – na presença dos vários e mudos terceiros -, nem entendo por que é que te aborrece, eu gosto que me digam os meus defeitos, assim posso emendar. Pensei que ora me encontra e expõe defeitos em demasia (há outros que não vale a pena citar) e que sem eles eu seria uma perfeição de pessoa, o que não me interessa um chavo.

        Acontece ter posição diversa: levo-lhe as características (as que me parecem menos agradáveis) à conta do respeito pela sua maneira de ser, e julgo haver muito mais para admirar nela; portanto, aceito sem crítica. E pensei ainda que, desde a adultícia, nem uma vez a critiquei; será ela perfeita?! Ou erro de novo em não criticar aquilo que é nela mais característico e nem considero defeito, embora não aprecie grandemente?! É que não sei mesmo. Sei o que não farei. Posso aconselhar isto ou aquilo. Não tenho arte para mais.

        Portanto, vou ter cuidado na sua presença: não lhe interrompo conversas com achegas ou histórias e tento não repetir nada. Prometi. Cumprirei enquanto conseguir morigerar-me. É mais um cuidado dos tantos que já tenho – cada dia nos tornamos menos livres no contacto com os mais próximos; se calhar tem que ser assim mesmo. Vamos acabar mudos como texugos (serão mudos, eles?!)

        A idade transforma-nos. A mim debilita-me o físico e pelo visto, faz-me ainda mais faladora do que sempre fui (queria morrer gasta - encontro-me em processo de aceleração contínua). A outras pessoas debilita a mente. A uns torna débil a paciência. Outros tornam-se intolerantes à lactose e a terceiros. Sabemos lá nós para o que estamos guardados! Urge encontrar um meio termo entre a liberdade que nos falta e o respeito pelo que os outros desejam que sejamos. Viver é complicado até ao fim. Mas, já perto do final, aprendemos coisas que gostaríamos de ignorar:))

Beijinhos e desculpem o desabafo


Nota: tenho a gata adormecida a meus pés. Só (n)as madrugadas nos pertencem(os).

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Phatos

 

        É vulgar as mulheres gostarem de gatos. Não sei explicar o porquê, mas é assim. Se dissecar o meu gosto por estes animais - também eu vulgaríssima -, reparo que a afinidade me veio da célula familiar. Em tempo salazarista e de miséria popular, parcialmente criada por avós maternos, veio-me o hábito da gataria. Meus avós tinham vários bichanos (era assim que os chamavam) e a Bibi - mãe e mulher de todos – reinava em abençoada promiscuidade e era a única a dar por nome próprio. A Bibi idolatrava meu avô e, no regresso do trabalho, muito antes de passar o portão, já ela se postava de sentinela - portão é modo de dizer, tudo no exterior da casa de meus avós eram flores, só elas distinguiam festivamente sectores e distâncias. Lembro-a sentada e calma sob o arco da trepadeira, na certeza da proximidade que nós não discerníamos, eu a tentar os longes com a minha miopia ignorada e ela imbuída de intuições sentimentais. Jamais se enganou. No tempo de em mim não haver horas, a gata era-me relógio, e reconheço hoje a semelhança de ambas na quase adoração a meu avô. Contudo, mal o lobrigava, eu desatava a correr até ele; ela, imperturbável, era estátua inamovível. Tenho ampla certeza do amor grande de meu avô; mas também sei do afecto vivo pela Bibi que, entrado o portão, não o largava mais. Meu avô deitava-se cedo e cedo partia. Ninguém conseguiu jamais retirar a Bibi da porta do quarto; a Bibi nocturna era o anjo da guarda de meu avô; adiava a caça aos ratos, outros gatos e nem sequer os procurava no tempo do cio. As noites eram dedicadas a meu avô, coincidiam nos sonos. Tudo o resto se desenrolava durante o dia ou na madrugada escura em que meu avô partia; minha avó contava que a Bibi o acompanhava até ao dito portão inexistente. Não conheci até hoje gato mais dedicado a seu dono que a doce Bibi.

        Desconheço quantas Bibis houve na vida de meus avós, mas existiram decerto, minha mãe tinha paixão por gatos pretos e desde que me lembro, houve pelo menos um em nossa casa. Dizem que gatos pretos dão azar; minha mãe não foi bafejada pela sorte. Em fatal invariância, os nossos gatos, mais cedo ou mais tarde, desertavam para a herdade que estrema ainda hoje com a nossa quintinha pequena. Por vezes regressavam e, tornados selvagens, arranhavam os meus irmãos mais novos que os recebiam e queriam, num contentamento de saudade, pegar-lhes ao colo como antes. Eu regressava à tarde e tinha pela frente, estendidos para mim, uns bracinhos de mercurocromo, vítimas incautas dos nefastos animais a que eu ganhava de imediato má vontade se bem que, no fundo do meu ser relampejasse certa ideia vaidosa: gostavam mais de mim e, se fora eu, não me fariam o mesmo, deixavam-se mimar. Mas a verdade é que me chegou a vez, fizeram de mim uma pele vermelha só de braços e logo me arrasaram a vaidade.

        No prolongamento da tradição familiar, já tive vários gatos. Vivendo na beira de estrada, pouco duram. Ficou-me a gatinha de olho azul, a de maior longevidade; inteligente em seus passeios e cruzamento da estrada. E o gatito branco recém nascido, que encontrei na beira de estrada e aos primeiros dias me mostrou a sua morte – mal andava e já ele queria a estrada.

        Os gatos fazem-me falta. Seja lá pelo que for. Este ano a prenda de um filho foi uma gata do gatil. Pena ser já adulta. Chegou ontem e ainda não me gosta, mas já me segue. Chama-se como todas as outras: Gata (no boletim diz June, mas não ligo a esses pormenores). Não posso deixá-la ir à rua o que me constrange, mas sendo adulta e inda sem ligação afectiva, logo nos fugia. Não é bonita nem um pouco (a meu filho disse que é linda), o pelo é de um preto fulvo com laivos arruivados, tem olho amarelo de lince, aspecto de quem não deseja ser domada, rejeita abraços e colo, mas roça-se nas nossas pernas e acompanha-me pela casa; neste momento olha da minha janela aberta para a noite que se despede. Que verá?! Li um dia que os gatos não vêem igual a nós. Mas ela ali continua, absorta na paisagem que vê diferente.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Dulce Maria Cardoso

 

        De novo fui ouvir Dulce Maria Cardoso. Quando a conheci no CCB, fazia par com Fernando Pinto Amaral e já não recordo o assunto que estava sobre a mesa. Dulce vestia cetim, tinha um ar muito cuidado, o cabelo bastante curto; parecia uma mulher-garota de luxo. Então, julguei-a uma menina-bem que eu distinguia nas letras portuguesas aceitando-lhe sem reservas a qualidade. A assistência era minimalista, quase tive pena dos oradores. A Dulce que agora escutei era outra: o cabelo grisalho e meio ondulado e a pele limpa e sem rugas espelhavam a humanidade próxima que não conseguira detectar no nosso primeiro encontro. Acresce que transpirava serenidade. Digo sem certezas, pareceu-me ter laivos de nostalgia.

        Anos volvidos, a Dulce voltou à minha vida, publicava de vez em quando na Visão a sua “autobiografia não autorizada” que comparei às crónicas de Lobo Antunes e me agradavam da mesma forma. Era outro estilo, mas luzia nelas a qualidade de primeira água. Guardei ambos em dossiers antigos que antes serviram a testes e lições. Um dia, se para tanto haja tempo, vou relê-los.

        Bom, em verdade, a Dulce não me abandonava. Comprava-lhe os livros e a minha amiga dilecta ofereceu-me um (falta-me o primeiro). E ficava a braços com mulheres tão iguais a nós, tão cheias de serem comuns, corriqueiras, tão eu noutra pele, a vulgaridade sempre presente. Confundia-me a sua capacidade para recriar ambientes que conjugavam na perfeição com gente de carne e osso que cruzamos nos corredores da vida. Comovia-me a análise desapaixonada, certeira nos gestos como no pensamento, a descrição de lugares onde cabemos, de pessoas em que defeitos e manias estão sempre de mão de fora. Comovia-me e ainda me comove. Os livros da Dulce são um exercício do sofrimento feminino acerca do qual não faz conversa, mas plasma em escrita corrida de quotidianos repletos de mas. Quase tudo que conheço na obra da Dulce me soa a denúncia e desencontro. Ah! O sonho! Sempre o sonho de quem quer endireitar o mundo pela palavra.

        Desta vez, entrevistada por Maria Flor Pedroso, a Dulce foi muito crítica – parece-me até que a veia crítica lhe aguça o engenho para melhor descrever as suas mulheres e os problemas que as extravasam, quiçá as originam tal como são. Ser sujeito crítico exige ampla visão de conjunto, e ela tem-na. Instada, discorreu sobre a impreparação do povo para a democracia que foi “à portuguesa” e cujos frutos são hoje mais ou menos amargos. Contou uma ou outra história engraçada como é de tom fazer em sessões desta natureza. Inquirida sobre um novo livro, respondeu apenas que não faz livros a metro, não é uma autora de muitos livros. Que, embora “Eliete” suponha uma continuação, ela ainda não existe, vai ter de pensar tudo de novo, já que, no interregno, o mundo mudou e os seus personagens são do mundo. E justificou, “acompanhar a mãe com demência, ser sua cuidadora até à morte, não é compatível com a escrita de um livro; depois disso, eu mesma tive que me recriar, viver a situação, esgotou-me” (lembrei o termo exaurida). Julgo ter entendido melhor o olhar que a Dulce tem agora e é tão mais bonito.

        Foi uma sessão extraordinária. A autora apresentou sem subterfúgios o seu modo de ver o mundo e abordar os problemas; tocou brevemente em algumas memórias bem humoradas; mostrou-se humana e íntegra. Já não encontrava isto há tanto tempo!


sábado, 19 de julho de 2025

Bolas de Sabão

 

        Nos dias e momentos em que nada apetece, tenho por hábito picar aqui e ali, blogs a que pouco me prendo e leio por desfastio enquanto penso no a seguir. Creio ter sido assim que cheguei a “A Gata Christie”. Bom, fui muito pelo nome: é bem humorado e lembra-me autora que admiro e de quem, em meu tempo de literatura policial, li tudo que havia a ler.

        O que “A Gata” escreve sobre terapia! Cara mas importante. Um salva vidas de iate, digo eu.

        A terapia parece-me período de actividade paga de atenção ao outro; coisa muito mental. Não aparenta ser de dificuldade assinalável que justifique os preços irrisórios a que se guinda. Portanto: somos um largo conjunto de desajustados a nível mundial e os/as terapeutas, e mais a sua eterna proposta de auto conhecimento, mantêm resultados restritos. Elitistas, digo. Gostaria sinceramente de saber se os beneficiados se tornaram melhores pessoas. São melhores para os outros? Têm maior e melhor capacidade de doação? Fazem melhor o mundo desde que a terapia lhes entrou na vida? Apesar da máxima socrática (o filósofo), “conhece-te a ti mesmo”, o sentido parece-me diverso. O certo é que as surpresas vindas de outrem – boas e menos boas – me determinam bastante (pode ser falta de análise?). Vou-os e vou-me neles aprendendo, actividade sempre inconclusa. 

        No abraço da velhice, aprendo o desprendimento; afrouxo laços – o mundo dos velhos vai-se estreitando e vamo-nos despindo e despedindo à medida do entendimento da nossa perda de importância. Os anos e a circunstância restringem-nos ao essencial e a isso somos gratos, perdida a elasticidade que nos disparava para diversos campos. Afastados do mundo da necessidade, por certo ficam alguns amigos, mas já sem premência; fica a família, mas sem ilusões; ficam amores e seu caudal (minguado ou não). Ainda que o presente nos exista, tudo vale mais no que fomos.

Descartados os terapeutas de ofício, o que resta ao extenso mundo que os não frequenta?! O mesmo que a todos os analisados e aos próprios analistas: viverem da forma mais propícia que conseguirem. Ou, no caso da Gata, ir passando a ferro e dando abraços, e amizades e isso, que um dia também há-de mudar. É bem mais nova que eu, essa menina. Ainda lhe faltam umas coisas, tal qual me faltaram a mim:).

Enquanto haja, é tudo vida.


quarta-feira, 16 de julho de 2025

Flash de Verão

 

        Estar na praia requer certa sabedoria. Não a rara sabedoria das palavras que se utilizam com pinça, qual mecanismo de relojoaria, mas tão só o reconhecimento de que, sem parede ou muro, todo o discurso se faz audível. É evidente, ninguém está na praia para cuscar e ouvir vizinhos de algumas horas, mas cumpre ouvi-los se não segredarem ou emudecerem.

        Bem cuidadas, modernas, as duas mulheres rondariam a minha idade. Plantaram o guarda sol nos arredores do meu – não se entende porquê, a praia é enorme – e, além de apanharem sol, conversaram sobre a vida. Ouvi da prole já com família constituída, do que serão imbróglios de heranças, de queixas pequenas e comentários tutti frutti, como é próprio entre pessoas que se conhecem e vêm de mundo comum. Uma delas sabia de tudo sobre tudo e denotava preocupação com o aspecto: ensinou a amiga a colocar o pareo, sugeriu que se enfeitasse com um lenço no cabelo (a outra preferiu chapéu de aba larga como ora se usa) e dependurou o telemóvel no guarda sol de modo a fotografar ambas com o mar em fundo. Estiveram que tempos a fotografar e apagar fotos até obterem o produto desejado. Deitei uns soslaios ao duo. A mais calada era alta, simples e ligeiramente triste. A colega tinha pulseiras quase até ao cotovelo, um atado de seda no cabelo bem tratado – não reparei se brincos, mas talvez – um pareo semitransparente e de laço alçado no altar das mamas; viajava-lhe em torno um postiço tom de tia. Repetiu várias vezes que o mar tinha uma cor apetecível, mas tudo nela repelia a água. A tristinha tomou coragem e foi ao banho uma vez. Pensei que, se estivera a sós, iria muitas mais e lhe faria bem às meninges. Quando as deixei, miravam o bronzeado mútuo, contentes de dois dias de praia e já “um tom” lhes passear na pele.

        E o mar ali tão perto...