Entretanto,
de uma macieira a outra, pisava quase em bicos de pés, fazia-me leve, o rasto um perigo que apaguei
no caminho para a estrada de terra.
Atentava no aviso de Esparguete, se te descobrem acaba-se tudo, fazem
queixa e somos castigados, deixamos a escola e passamos para o trabalho da
quinta que é uma andada; olha, prendem-nos cá dentro. E, se eu era incerto sobre o
querer, sabia o que não queria: ficar confinado à casa dos rapazes. Crescera na
liberdade da rua e nas voltas ao bairro, trazia o cheiro de pinheiros e eucaliptos
infiltrado no sangue e afogava o calor no correr quase parado da ribeira. E, se com a escola tinha acedido ao mundo das letras, a rua foi a
minha primeira mestra. Rua era tempo livre, lugar de prática e novidade.
Pensamentos desta natureza carburavam-me em nervos e reticências e animavam-me
a prosseguir com método. Método incapaz de inibir as mãos suadas e trementes estorvando a apanha dos frutos
que me escapavam e, contrariado, me apressava a retomar, revivendo tia Emília a
segredar marota, “mãos de aranha”. Qualquer brisa na
folhagem me soava a rumor de passos e estremecia de pavor. Então, desconfiava por cima de um ombro e do outro
enquanto deitava as maçãs na fralda da camisa que fingia de saco. No caminho
abandonado ao calor, só as cigarras. Da quinta, nem um ai. Desengalguei até ao
muro, mas lembrando avisos voltei atrás a apagar vestígios. Depois, fiz da
camisa um saco e enfiei as maçãs dentro dela. O problema surgiu quando tentei
subir o valado com a mão esquerda segurando a carga e a direita a escalar. Mau
grado o meu treino na barreira do bairro da Venezuela, avançava penosamente. De
quando em vez, ouvia uma maçã resvalar do saco improvisado e rolar valado
abaixo. E eu sem coragem de voltar sobre os passos para apanhá-las. A dada
altura pareceu-me que uns passos vindos dos lados das macieiras. Parei suspenso a
meio do muro, coração a galope e apurei o ouvido temendo virar-me e resvalar
até ao chão. O som de passos foi-se perdendo. Respirei. Talvez fosse apenas rumor de
vento. Reuni as últimas forças e fui calcando as saliências com cuidado a apoiar-me
nelas e a experimentar a firmeza para me içar ao passo seguinte ajudado pelo
braço que esticava até ao próximo arbusto. Tudo me doía e o suor solto pelo corpo
incomodava-me, sentia-o escorrer ao lado dos olhos e enviesar até ao nariz, as
maçãs a pesarem no braço esquerdo quase dormente do esforço, enquanto a barriga
media na pele as asperezas do muro.
Bolas que luta! Amei o texto!:)
ResponderEliminarBeijos. Boa noite!
Há gente a quem as coisas fáceis não acontecem, Cidália. Ou acontecem pouco:).
ResponderEliminarUm abraço
Hoje sonhei com o seu Carrossel. Não com as crónicas, nem com o putativo livro. Hoje sonhei com o seu filme.
ResponderEliminarSonhei que à entrada para a sala, onde havia um papagaio e não havia lugares marcados, as pessoas apinhavam-se, acotovelavam-se, empurravam-se, todos queriam entrar de supetão. Aos que vinham a sair da sessão anterior perguntava-se se o filme era bom, e sobre que tema era, se era um filme infantil - oh, não (oh, não, repetia o papagaio) - se era um musical - oh, não (oh, não, repetia o papagaio) - se era de fantasia ou um thriller. Ninguém sabia dizer; e nós que íamos entrando, entrávamos sem respostas e ficámos completamente às escuras. Um homem ao meu lado confidenciou-me que talvez fosse um filme de corridas. E o filme finalmente começou.
Sonhei com as múltiplas personagens, distintas e opostas, mas que puxavam na mesma direção, e que na sua fragmentação e diversidade, ofereciam unidade, que os atores suportaram muito bem, mas acima de tudo a direção de actores e a realização levaram para níveis de transcendência.
Não num sentido místico, mas do belo, de pura beleza formal, que tudo envolve e a tudo garante sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme.
A estrutura narrativa usou o espaço de um improvisado e abandonado lar-orfanato no Alentejo retinto, para, a partir dele, viajar num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do qual íamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores morais. A narrativa deslinearizada foi emergindo da densa malha de factos que se iam solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos.
Fragilidade, provocada pela infância interrompida numa via sinuosa de momentos de gravidade desvalida.
Nem o recurso a efeitos especiais no choque eléctrico de Mãozinha, nem a actores duplos na cena da bordoada da cozinheira, retirou valor à interpretação destes actores de palmo e meio.
Uma palavra para a mestria da cozinheira na cena do rolo da massa, para a qual chegou mesmo a receber treino intensivo no manuseio de matracas.
Comovente e trágico nas entrelinhas, melodioso e delicado na pauta, filme sem pressas, com um constante apelo ao passado, suspense quanto baste e um ritmo muito próprio.
Um filme a não perder.
5*
Em exibição em qualquer cinema Morfeu, perto de si.
Joauim, não quer reescrever a minha história, acho que ficaria bastante melhor:). Obrigada pelo sonho.
EliminarBolas, queria dizer Joaquim.
EliminarDeus me livre! A estrela é a Bea, eu sou um mero acólito (estas palavras vindas de um agnóstico até dão vontade de rir).
EliminarMas desde já lhe digo, prepare-se para o que aí vem... vai lhe dar trabalho, ó se vai!
Hoje vou contar a aventura do meu pai.
ResponderEliminarFoi colher medronhos no quintal do vizinho com os amigos.
E comeram muitos.
Muitos medronhos dão bebedeira.
E levou duas sovas - uma por colher fruta no quintal do vizinho e outra por estar grosso :)))
:)))). Pobre criança. E continuou a gostar de medronhos ou nunca mais pôde sequer prová-los?
ResponderEliminarOlá bea, continuo a seguir a história do nosso rapaz com interesse [história escrita, não o filme ;)], só espero que ele não leve uma chumbada na cabeça...
ResponderEliminarAté amanhã.
Muita chuva por aqui hoje :))
🌨☔
Não vai levar uma chumbada, Maria:). Já quase completei o episódio de roubar maçãs.
EliminarComeçou a chover agora e o sol, mesmo doente, já lá vem. Não sei por que razão não há-de chover mais onde tanto a água falta.
Visitando gostei muito de ler. Logo eu que adoro medronhos
ResponderEliminar.
Um dia feliz
Ainda anda no medronho? Agora são mais maçãs, Valério:)
ResponderEliminarBom dia também para si